segunda-feira, 19 de setembro de 2011 By: Fred

Lançamento Arcanjo Micael - Solo Sagrado - Barbara Wood


BARBARA WOOD

SOLO
SAGRADO

Tradução de MARIA DOS ANJOS SANTOS ROUGHH

Editora Record
2002

Este livro é dedicado com amor ao meu marido,
George

Capítulo Um

Érica agarrou o volante enquanto o veículo de tração nas
quatro rodas subia a estrada de terra, desviando de grandes
pedras e passando por buracos. Sentado ao seu lado, pálido e
ansioso, estava seu assistente Luke, um estudante graduado
pela UCSB que trabalhava na tese de seu doutorado. Na casa
dos vinte anos, cabelos louros e compridos presos num rabo-
de-cavalo, Luke usava uma camiseta que dizia Arqueólogos
Escavam Mulheres Antigas.
— Ouvi dizer que está uma confusão, Dra. Tyler — disse ele,
enquanto Érica manobrava o carro, subindo a estrada que
serpenteava perigosamente. — Parece que a piscina
desapareceu dentro do chão. Assim, sem mais nem menos
— prosseguiu, estalando os dedos. — Disseram no noticiário
que o buraco do afundamento se estendeu por todo o
comprimento da mesa, e sob as casas dos astros de cinema, e
daquele cantor de rock que esteve no noticiário, e daquele
jogador de beisebol que fez todas aquelas jogadas no ano
passado, e de um famoso cirurgião plástico. Sob as casas
deles. Então você sabe o que isso significa.
Érica não sabia o que isso significava. Sua mente estava
voltada para uma única coisa: a descoberta espantosa que fora
feita.
Na hora do desastre ela estava na região norte trabalhando
em um projeto para o estado. O terremoto, ocorrido há dois
dias e medindo 7.4, fora sentido tão ao norte quanto San Luis
Obispo, tão ao sul quanto San Diego e tão a leste quanto
Phoenix, sobressaltando milhões de habitantes do sul da
Califórnia. Fora o maior tremor de que se tem lembrança e o
que pode ter provocado, um dia depois, o desaparecimento
súbito e espantoso de uma piscina de trinta metros,
trampolim, tobogã e tudo o mais.
Um segundo evento espantoso se seguira quase
imediatamente: quando a piscina afundou, a terra a recobriu,
expondo ossos humanos e a abertura de uma caverna que
não se conhecia.
— Esta pode ser a descoberta do século! — declarou Luke,
tirando os olhos da estrada por um instante para olhar para a
chefe. Ainda estava escuro e não havia luz ao longo do
caminho montanhoso. Érica acendeu a luz interior do carro,
iluminando os cabelos castanhos e brilhantes, levemente
ondulados, que roçavam seus ombros, e uma tez bronzeada
pelos anos de trabalho sob o sol. A Dra. Érica Tyler, com
quem Luke trabalhara nos últimos seis meses, estava na casa
dos trinta, e, embora não a achasse linda, Luke a achava
atraente de um modo que era sentido mais nas entranhas de
um homem do que nos olhos. — Uma descoberta e tanto
para algum arqueólogo sortudo — acrescentou ele.
— Por que você acha que nós violamos todas as normas de
trânsito para chegar até aqui? — disse ela com um sorriso,
depois de olhá-lo de relance, e voltou sua atenção para a
estrada a tempo de desviar de uma lebre assustada.
Eles chegaram ao topo da mesa de onde as luzes de Malibu
podiam ser vistas à distância. O resto da vista — Los Angeles
a leste e o oceano Pacífico ao sul — estava bloqueado por
árvores, picos mais altos e mansões de milionários. Érica
manobrou o carro pelo congestionamento de carros de
bombeiro, carros de polícia, caminhões municipais, vans de
reportagens e a fileira de carros estacionados ao longo da fita
amarela que cercava o sítio. Curiosos se sentavam nos capôs
e capotas dos veículos para observar, beber cerveja e falar
sobre desastres e seus significados, ou talvez apenas para ser
entretidos por algum tempo, apesar dos avisos, transmitidos
aos gritos pelos megafones, de que a área era perigosa.
— Ouvi dizer que toda essa mesa era um tipo de retiro
comandado por uma espírita maluca na década de 20 — disse
Luke quando o carro parou. — As pessoas costumavam subir
até aqui para falar com os fantasmas.
Érica lembrou ter visto cinejornais mudos de irmã Sarah,
uma das personalidades mais pitorescas de Los Angeles, que
costumava fazer sessões espíritas para a realeza de
Hollywood, como Rodolfo Valentino e Charlie Chaplin.
Sarah fizera sessões para multidões em teatros e auditórios e,
quando os seus seguidores totalizaram centenas de milhares,
veio para estas montanhas e construiu um retiro chamado de
A Igreja dos Espíritos.
— Sabe como este lugar era chamado originalmente? —
prosseguiu Luke, enquanto desafivelavam os cintos de
segurança. — Quer dizer, antes que ele fosse da médium?
Antigamente — disse ele, a palavra "antigamente" evocando
pergaminhos com lacres de cera e homens duelando ao
amanhecer. — Cahon de Fantasmas — entoou ele, provando
as palavras empoeiradas em sua língua. — Cânion mal-
assombrado. Parece assustador! — concluiu, estremecendo.
— Luke — disse Érica, rindo —, se você quiser ser um
arqueólogo quando crescer, não vai poder ter medo de
fantasmas.
Ela mesma vivia diariamente com fantasmas e assombrações,
espíritos e duendes. Eles povoavam seus sonhos e suas
escavações arqueológicas, e, embora os fantasmas pudessem
iludi-la, confundi-la, provocá-la e frustrá-la, nunca a
assustaram.
Quando Érica saiu do carro e sentiu o vento da noite no
rosto, olhou enfeitiçada para a cena horripilante. Já tinha
visto fotos nos jornais e ouvido relatos de testemunhas sobre
o acontecimento — como o terremoto de algum modo
desestabilizou o solo sob a comunidade fechada de Emerald
Hills Estates, um enclave exclusivo nas montanhas de Santa
Mónica, causando o afundamento repentino de uma piscina
e ameaçando o resto das casas com o mesmo destino. Mas
nada a preparara para o que os seus olhos contemplavam
agora.
Embora a leste o céu estivesse começando a clarear, a noite
ainda era um manto escuro e refratário sobre Los Angeles,
tanto que tiveram que trazer luzes de emergência. Sóis feitos
por homens, colocados a intervalos em torno do perímetro
do sítio, iluminando um quarteirão do bairro superelegante
onde as casas sobressaíam como templos de mármore na lua
leitosa. No centro dessa cena surrealista havia uma cratera
negra — a boca do diabo que engolira a piscina do famoso
produtor de cinema Harmon Zimmerman. Helicópteros
zumbiam no céu, projetando círculos de luzes que cegavam
os topógrafos montando seus equipamentos, geólogos
chegando com brocas e mapas, homens com capacetes
aquecendo as mãos em copos de café enquanto esperavam
pelo amanhecer, e policiais tentando evacuar os residentes
que se recusavam a sair.
Mostrando a carteira que a identificava como antropóloga do
Instituto Arqueológico do Estado, Érica e seu assistente
receberam permissão para transpor a faixa amarela que
mantinha a multidão afastada. Eles correram para a cratera,
onde os bombeiros do condado de Los Angeles estavam
inspecionando a borda do desmoronamento. Érica procurou
rapidamente pela entrada da caverna.
— É aquilo ali? — perguntou Luke, apontando com o braço
comprido para o outro lado da cratera. Érica pôde apenas
divisar, uns dois metros e pouco abaixo do nível do chão,
uma abertura na lateral da escarpa. — Parece perigoso, Dra.
Tyler. Está pensando em entrar?
— Já entrei em cavernas antes.
— Que diabos você está fazendo aqui!
Érica virou-se rapidamente para ver um homem alto com
uma juba grisalha vindo a passos largos em sua direção, com
uma expressão severa no rosto. Sam Carter, o principal
arqueólogo estadual do Instituto de Preservação Histórica da
Califórnia, um homem que usava suspensórios coloridos e
falava com voz ruidosa. E que claramente não estava feliz em
vê-la.
— Você sabe por que estou aqui, Sam — disse Érica,
enquanto tirava o cabelo do rosto e olhava para o caos em
volta. Moradores das casas ameaçadas estavam discutindo
com a polícia e se recusando a deixar suas propriedades. —
Fale-me da caverna. Já foi lá dentro?
Sam notou duas coisas: que os olhos de Érica brilhavam com
uma febre interior e que seu suéter estava abotoado errado.
Era óbvio que ela largara tudo e viera de Santa Barbara como
se estivesse pegando fogo.
— Ainda não estive lá dentro — disse ele. — Há um geólogo
e uma dupla de especialistas explorando a caverna neste
momento para verificar a estabilidade estrutural. Assim que
eles derem permissão, vou dar uma olhada. Agora que Érica
estava aqui, não seria fácil livrar-se dela. A mulher grudava
feito cola quando punha alguma coisa na cabeça. — E o
Projeto Gaviota? Imagino que você o deixou em mãos
apropriadas?
Érica não o escutou. Estava olhando para a fenda na encosta
e pensando nas botas pesadas calcando a delicada ecologia da
caverna. Rezou para que não tivessem destruído evidências
históricas preciosas inadvertidamente. A arqueologia nestas
colinas já era bastante insignificante, apesar do fato de
pessoas terem vivido aqui por dez mil anos. As poucas
cavernas encontradas renderam muito pouco, porque no
início do século XX tratores e dinamites destruíram estas
montanhas selvagens para abrir caminho para estradas,
pontes e o progresso humano. Sítios cemiteriais foram
cobertos com arado, montes de aldeias aplainados, todos os
traços de antigas habitações humanas obliterados.
— Érica? — chamou ele.
— Preciso entrar — disse ela.
Ele sabia que ela referia-se à caverna.
— Érica, você sequer devia estar aqui.
— Designe-me para o trabalho, Sam. Você vai fazer a
escavação. E ossos foram encontrados, disseram no
noticiário.
— Érica...
— Por favor.
Frustrado, Sam girou sobre os calcanhares, atravessou o
jardim pisoteado dos Zimmerman e voltou para uma área no
fim da rua onde um centro de comando improvisado fora
criado. Pessoas segurando pranchetas e falando em telefones
celulares circulavam em torno de cadeiras e mesas de armar
onde foram montados rádios de emissão e recepção,
monitores de vigilância e um quadro de avisos para mensa-
gens. Um caminhão, fornecedor de comida, estacionado
perto estaca sendo freqüentado por pessoas com insígnias e
uniformes variados: Companhia de Gás do Sul da Califórnia,
Departamento de Agua e Energia, DPLA, Serviço Municipal
de Controle de Emergência. Havia até alguém da Sociedade
Humanitária tentando reunir os animais perdidos da área
evacuada.
— Então, o que aconteceu, Sam? — perguntou Érica,
alcançando seu chefe. — O que fez a piscina afundar de
repente no chão?
— Engenheiros municipais e arqueólogos vêm trabalhando
sem interrupção para determinar a causa. Aqueles rapazes
que estão lá — disse ele, apontando para a rua, onde homens
montavam equipamentos de perfuração sob fortes holofotes.
— Eles vão fazer testes com a terra para descobrir sobre o
que exatamente este bairro está.
Sam passou a mão robusta sobre os mapas topográficos e
levantamentos geológicos espalhados sobre as mesas, com as
pontas presas por pedras.
— Isto nos foi enviado pela prefeitura há poucas horas. Este
aqui é um estudo geológico de 1908. E aqui tem um de 1956,
quando a área estava sendo apresentada para um projeto
residencial que nunca foi levado adiante.
Os olhos de Érica passearam de um mapa para o outro.
— Eles não são iguais.
— Parece que o construtor atual não testou o solo de cada
terreno de construção, o que não lhe foi exigido. Os testes
que ele fez mostraram terra firme e alicerce rochoso. Mas
isso fica nas fronteiras norte e sul da mesa, o que vem a ser as
duas arestas cingindo o cânion. Lembra da irmã Sarah nos
anos vinte? Este era o seu retiro religioso ou algo assim e
parece que ela mandou aterrar o cânion sem nunca obter
permissão ou informar a prefeitura. Parece que o trabalho foi
feito fora dos padrões de procedimento de compactação e
muito do aterro, que era orgânico — madeira, vegetação, lixo
—, acabou apodrecendo.
Os olhos privados de sono de Sam examinaram a rua, onde
fontes e árvores importadas decoravam os gramados
ricamente cultivados.
— Essa gente tem vivido sobre uma bomba-relógio. Eu não
ficaria surpreso se a área toda estivesse prestes a desabar.
Enquanto falava, Sam observava Érica, que estava com as
mãos nos quadris, mudando de um pé para o outro como um
corredor ansioso para a corrida começar. Ele a vira desse
jeito antes, quando ela estava "atrás" de alguma coisa. Érica
Tyler era uma das mais apaixonadas cientistas que ele já
conhecera, mas, às vezes, seu entusiasmo podia ser sua ruína.
— Eu sei por que você está aqui, Érica — disse ele, fatigado.
— E não posso lhe dar o serviço.
— Sam — disse ela batedo os pés, o rosto afogueado —, você
me pôs para contar conchas de madrepérola, pelo amor de
Deus!
Sam era o primeiro a admitir que encarregar Érica de um
amontoado de moluscos era desperdiçar sua inteligência e
talento. Mas depois do desastre do naufrágio um ano antes
achou melhor que ela acalmasse os ânimos com um trabalho
discreto. Então ela passara os últimos seis meses escavando
um monte recentemente descoberto que veio a ser o lixo de
índios que viveram ao norte de Santa Barbara há quatro mil
anos. O trabalho dela era separar, classificar e datar com
carbono 14 os milhares de conchas de madrepérola
encontrados lá.
— Sam — insistiu ela, pondo a mão em seu braço. — Eu
preciso disso. Preciso salvar minha carreira. Preciso fazer as
pessoas esquecerem Chadwick...

— Érica, o incidente com Chadwick é exatamente o porquê
de minha recusa. Você simplesmente não é disciplinada. É
impulsiva, e não possui a objetividade e a imparcialidade
científicas necessárias.
— Eu aprendi minha lição, Sam — disse Érica. Ela queria
gritar. O Naufrágio de Érica Tyler, que as pessoas do meio
chamaram de o fiasco de Chadwick. Será que devia pagar por
isso o resto de sua vida? — Serei supercuidadosa.
— Érica — disse ele, franzindo as sombracelhas —, você
levou meu departamento ao ridículo.
— Eu já pedi desculpas milhões de vezes! Sam, seja razoável.
Você sabe que eu estudei todos os exemplos de arte rupestre
deste lado do rio Grande. Não há ninguém com melhor
qualificação. Quando vi a pintura naquela caverna no
noticiário, tive certeza que este trabalho era para mim.
Sam correu os dedos grossos pela cabeleira. Era um
comportamento tão típico de Érica simplesmente largar
tudo. Será que ela ao menos se preocupou em deixar o
Projeto Gaviota com outra pessoa?
— Ora, vamos, Sam. Ponha-me para trabalhar fazendo aquilo
que eu nasci para fazer.
Ele olhou dentro de seus olhos cor de âmbar e viu desespero
neles. Sam não sabia como era ser desacreditado na própria
profissão, ser o alvo de riso dos colegas. Ele só podia
adivinhar o que esses últimos doze meses representaram para
Érica.
— Vamos fazer o seguinte — disse ele. — Um membro da
equipe de Busca e Resgate se ofereceu para voltar lá e tirar
fotografias. Elas devem chegar aqui a qualquer momento.
Você pode dar uma olhada nelas e ver o que descobre nos
pictogramas.
— Busca e Resgate?
— Depois que a piscina afundou, ficaram sabendo que a filha
de Zimmerman estava desaparecida. Então o xerife do
condado ordenou uma busca por ela em toda essa confusão.
Foi assim que a pintura na caverna foi descoberta.
— E a garota?
— Ela apareceu mais tarde. Parece que estava em Vegas com
o namorado na hora do terremoto. Escute, Érica, não faz
sentido você ficar por aqui. Eu não vou colocar você no
caso. Volte para o Gaviota.
Mesmo enquanto dizia isso, Sam sabia que ela não acataria
ordens. Depois que Érica Tyler punha algo na cabeça, era
impossível dissuadi-la. Foi o que aconteceu no ano passado,
quando Irving
Chadwick descobriu o barco naufragado submerso e disse
que se tratava de um antigo barco chinês na costa da
Califórnia, provando sua teoria de que as pessoas da Ásia não
tinham vindo apenas pelo estreito de Bering, mas em barcos
também. Érica já era uma apaixonada pela hipótese de
Chadwick. Portanto, quando ele a convidou para autenticar a
cerâmica encontrada no barco afundado, já estava certa de
que isso era prova de fato.
Sam tentara na época dissuadi-la de tomar decisões
precipitadas, convencê-la a agir com calma e cautela. Mas a
característica predominante de Érica era a exuberância.
Prosseguira com o anúncio público de que a cerâmica era
genuína, e durante algum tempo ela e Irving Chadwick
aqueceram-se nas luzes dos holofotes. Mais tarde, quando
ficou provado que o barco naufragado era um logro, e que
Chadwick confessara ter planejado a fraude, era tarde demais
para Érica Tyler. Sua reputação estava arruinada.
— Eles disseram no noticiário que foram encontrados ossos
— disse ela. — O que descobriu sobre isso?
Sam pegou uma prancheta, sabendo que ela queria ganhar
tempo.
— Tudo o que temos são pequenos fragmentos, mas eles
foram encontrados com pontas de flechas, o que foi motivo
suficiente para pedir o auxílio do meu departamento. Aqui
está o relatório do médico-legista.
Enquanto Érica passava os olhos pelas descobertas, Sam
disse:
— Como pode ver, conforme o teste de Kjeldahl, a
quantidade de componentes nitrogenados no osso é inferior
a quatro gramas. E o teste de acético-benzina não mostrou
evidência de material albuminado.
— O que significa que os ossos têm mais de cem anos. O
médico-legista conseguiu determinar quantos anos a mais?
— Infelizmente, não. E não podemos saber através da análise
do solo, já que não temos como determinar exatamente em
que solo os ossos estavam depositados. Este cânion foi
aterrado há setenta anos, e então no ano passado o solo foi
perturbado durante a escavação para a piscina. Quando a
terra abaixo se liquefez e cedeu por causa do terremoto,
fazendo a piscina afundar, a terra em volta desmoronou. Está
tudo misturado, Érica. Mas nós encontramos pontas de fle-
chas e ferramentas toscas de pedra.
— O que aponta para um cemitério indígena — disse ela,
devolvendo-lhe a prancheta. — Suponho que a CHAN tenha
sido notificada? — perguntou ela, olhando em volta à
procura de rostos que pudessem ser da Comissão para a
Herança dos Americanos Nativos do Estado da Califórnia.
— Sim, eles foram notificados — disse Sam num tom irônico.
— Na verdade, já estão aqui. Ou melhor, ele está aqui.
— Jared Black? — perguntou Érica, lendo o olhar de Sam.
— O seu velho adversário.
Érica e Black estiveram envolvidos com assuntos legais sobre
os americanos nativos antes, e o resultado fora claramente
desagradável.
Um rapaz veio correndo até eles, o rosto sujo de terra, o
capacete torto na cabeça. Segurava as fotos do interior da
caverna tiradas com uma Polaroid e pedia desculpas pela
qualidade amadorística delas. Agradecendo ao rapaz, Sam
dividiu as fotos, entregando metade a Érica.
— Meu Deus—murmurou ela, examinando as fotos uma a
uma.
— São... lindas. E estes símbolos... — insistiu, quase
perdendo a voz.
— Então, o que acha? —-- resmungou Sam, olhando de
esguelha para as fotos. — Pode identificar a tribo?
Como Érica não respondesse, ele olhou para ela. Érica estava
olhando fixamente para as fotos em suas mãos, os lábios
ligeiramente separados. Por um minuto, Sam pensou que ela
empalidecera com o choque, mas depois achou que devia ser
o efeito da luzes fluorescentes espalhadas pela área do
desastre.
— Érica?
Ela piscou como se alguém a tivesse tirado de um transe.
Quando olhou para ele, Sam teve a estranha sensação de que,
por um instante, ela não sabia quem ele era. Depois, com a
cor voltando ao rosto, ela disse:
— Nós temos a descoberta do século em nossas mãos, Sam.
Esta pintura é vasta, e eu nunca vi um estado de preservação
tão excelente. Pense na história nativa que podemos
completar quando estes pictogramas forem decifrados. Sam,
não me mande de volta para aquelas conchas de
madrepérola.
Ele deixou escapar um suspiro.
— Está bem, você pode ficar aqui por um ou dois dias e nos
dar uma análise preliminar, mas — condicionou, erguendo a
mão — deve voltar para Gaviota depois disso. Não posso
colocá-la neste projeto, Érica. Sinto muito. Trata-se de
política entre departamentos.
— Mas você é o chefe — disse Érica, parando de repente e
fixando o olhar.
Sam seguiu os olhos dela e viu o que chamara sua atenção.
Nesta hora um tanto fria logo antes do amanhecer, todos
com a barba por fazer, os olhos cansados, desejando
ardentemente um pouco de café ou um pouco mais de sono
e uma muda de roupa limpa, o comissário Jared Black, com
os cabelos sem um fio fora do lugar, usava um terno bem-
cortado com bainha francesa, gravata de seda e mocassins
engraxados como se tivesse acabado de sair de uma sala de
tribunal. Quando ele se aproximou, íris escuras brilharam
debaixo de sobrancelhas franzidas.
— Dra. Tyler. Dr. Carter.
— Comissário.
Embora fosse um advogado que falasse sem rodeios sobre
assuntos nativos, Jared Black era anglo puro, tendo declarado
certa vez que fora sua herança irlandesa que o tornara
empático à situação difícil dos povos oprimidos. Ele dirigiu-
se a Sam Carter:
— Quando você espera fazer uma identificação tribal da
pintura na caverna? — perguntou ele, num tom que deixava
implícito que queria uma resposta dentro em breve.
— Isso vai depender do pessoal que eu designar para o
trabalho.
Jared não olhou para Érica.
— Eu vou trazer meus próprios peritos, é claro.
— Depois de conduzirmos nossa análise preliminar — disse
Carter. — Acho que não preciso lembrá-lo de que este é o
procedimento padrão.
Os olhos de Jared Black faiscaram. Ele e o arqueólogo não se
davam. Carter opusera-se oralmente à indicação de Black
para a comissão, citando o preconceito extremo de Jared
contra as comunidades científica e acadêmica.
O conflito entre Érica e Jared Black aconteceu quatro anos
antes, quando um eremita rico chamado Reddman morrera e
deixara uma coleção surpreendente de artefatos indígenas
para ser mantida em sua mansão, que devia ser transformada
em museu público com o seu nome. Érica fora designada
para identificar e catalogar a importante coleção e, quando a
identificou com uma pequena tribo local, esta contratou o
advogado Jared Black, especialista em direitos de terra e lei
de propriedade, para promover uma ação de posse dos ob-
jetos. Érica pediu ao Estado para contestar a ação, alegando
que a tribo planejava enterrar novamente os objetos sem
uma análise histórica prévia. "O legado nestes ossos e
artefatos", argumentara ela, "não pertence só aos índios mas a
todos os americanos." O debate fora apaixonado, com
manifestações públicas na frente do tribunal — americanos
nativos exigindo o retorno de todas as suas terras e objetos
culturais; professores, historiadores e arqueólogos insistindo
na criação do Museu Reddman. A esposa de Jared Black,
membro da tribo maidu e ativista entusiasta dos direitos
indígenas — uma mulher que se jogara certa vez na frente
de um trator para impedir a abertura de uma nova auto-
estrada através de terras indígenas —, estivera entre os mais
ardorosos em favor de "manter a coleção fora das mãos do
homem branco".
O caso se arrastou por meses até Jared finalmente revelar um
fato até então desconhecido: sem o conhecimento do Estado
e das autoridades locais, Reddman desenterrara os objetos de
sua própria terra, uma propriedade de quinhentos acres, e
ficara com eles sem permissão. Argumentando que em razão
de os objetos indicarem um monte habitacional — e Érica,
embora trabalhando para o outro lado, foi forçada a admitir
que a propriedade muito provavelmente fora construída no
sítio de uma aldeia antiga — Jared Black declarou que a
propriedade não pertencia legalmente ao Sr. Reddman mas
aos
descendentes daqueles que viveram na aldeia. Os quinhentos
acres, bem como mais de centenas de relíquias indígenas —
incluindo cerâmicas raras, cestarias, arcos e flechas — foram
entregues à tribo, que possuía exatamente dezesseis
membros. O museu de Reddman nunca foi construído, os
artefatos nunca mais vistos.
Érica lembrou-se como a imprensa tinha jogado com a
batalha entre os dois dentro e fora do tribunal. Uma
fotografia, agora famosa, dos dois discutindo, tirada nos
degraus do tribunal, fora vendida aos tablóides que a
publicaram com a manchete 'Amantes secretos?", por causa
de um truque da luz e do momento infeliz em que o disparo
do câmera capturara Érica e Jared em uma daquelas frações
de segundo que dão a impressão exatamente oposta do que
está realmente acontecendo: Érica com os olhos bem
abertos, olhando para ele, que estava no degrau de cima, a
língua tocando os lábios e o corpo inclinado de um modo
sugestivo, e Jared, bem mais alto do que ela, com os braços
estendidos como se estivesse prestes a envolvê-la num
tórrido abraço. Os dois ficaram indignados com a fotografia e
sua mensagem falsa, mas decidiram deixar o assunto morrer
para não botar mais lenha na fogueira.
— Acho que não preciso lembrá-lo, Dr. Carter — disse Jared
a Sam —, de que estou aqui para verificar que você
mantenha sua profanação ao mínimo, e que no instante em
que o DMP, descendente mais provável, for encontrado eu
vou pessoalmente e com grande satisfação escoltar você e
seus companheiros ladrões de túmulos para fora deste sítio.
Enquanto viam Jared se afastando, Sam enfiou as mãos nos
bolsos e murmurou:
— Realmente não gosto desse homem.
— Então seria uma ótima idéia se você não me designasse
mesmo para este caso, porque isso realmente irritaria Jared
Black.
Sam olhou para ela e percebeu o meio-sorriso.
— Você quer mesmo este trabalho, não quer?
— Estou sendo muito sutil?
— Está bem — disse ele por fim, coçando a nuca. — Isso vai
contra os meus princípios, mas acho que posso mandar outra
pessoa para Gaviota.
— Sam! — Ela atirou os braços impulsivamente em torno do
pescoço dele. — Você não vai se arrepender, eu prometo!
Luke — disse ela, agarrando o braço de seu assistente,
fazendo uma garra de
urso meio consumida voar de sua mão. — Mãos à obra!

— Fiquei surpreso em saber que Sam Carter a designou para
este projeto, Dra. Tyler — disse Jared Black calmamente,
quando se reuniram no topo do rochedo.
— Eu sei umas coisinhas sobre arte rupestre.
— Pelo que posso me lembrar você também conhece umas
coisinhas sobre naufrágios de navios chineses.
Antes que Érica pudesse responder, ele continuou:
— Acredito que esteja familiarizada com a mais recente
atualização da Lei de Proteção e Repatriação de Túmulos de
Nativos Americanos, que declara que, embora a remoção e a
análise científica de artefatos históricos possam ser
recomendadas, a análise não pode ser destrutiva e...
Ela o ignorou prontamente, reconhecendo o desafio em seu
tom de voz, sabendo que a intenção dele era incitá-la a uma
discussão. Não gostou da insinuação. Jared Black sabia muito
bem que Érica tinha a reputação de ser uma das pessoas mais
cautelosas no meio antropológico no que dizia respeito ao
trato com artefatos e que os seus testes não eram destrutivos.
Érica manteve a irritação sob controle. Não tinha escolha a
não ser deixar que Jared Black supervisionasse cada passo de
sua operação. Enquanto o trabalho de Érica era determinar a
que tribo os ossos e a pintura na caverna pertenciam, o de
Jared era localizar o DMP
— descendente mais provável — e entregar tudo quanto
Érica os identificasse.
Érica sentiu os olhos de Jared sobre si, e imaginou se, como
ela, ele estava lembrando da primeira vez em que se
encontraram. Foi no prédio do Tribunal do Condado, e Érica
estava lá para o primeiro depoimento no caso Reddman. Ela
e Black não se conheciam na época, eram apenas dois
estranhos compartilhando o elevador. Na primeira parada, as
portas abriram e uma mulher grávida entrou. Na próxima
parada entrou uma mulher com um garotinho de cinco anos,
e quando o elevador começou a subir o garotinho arregalou
os olhos para a mulher grávida. Vendo a curiosidade dele, ela
falara com uma voz tolerante: "Estou esperando um bebê.
Vou ter uma garotinha ou um garotinho igualzinho a você."
O garoto franziu o cenho enquanto pensava no assunto,
perguntando em seguida: "Será que eles deixam você trocar
por um burro?"
A mulher sorriu com paciência enquanto a mãe do garoto
corava. Na parada seguinte os três desceram, as portas
fecharam. Érica e o estranho ficaram em silêncio por um
momento, depois os dois começaram a rir. Érica lembrou de
ter notado suas covinhas fundas e de como ele era atraente.
Ele em seguida dera a ela um olhar de apreciação que dizia
gostar do que estava vendo. Depois as portas se abriram e
pessoas estavam lá para encontrá-lo. Érica ficara paralisada
quando ouviu ele ser chamado de "Sr. Black". E, quando o
procurador de Reddman a chamou de Érica, Jared também
parou de repente. Eles se entreolharam, ambos percebendo
no mesmo instante o encargo terrível. Eles eram inimigos,
generais em campos de batalha opostos. E no entanto haviam
compartilhado sem querer uma piada, riram juntos e até
flertaram um pouco.
Horrorizava e perturbava Érica pensar que, embora por três
minutos apenas, ela estivera atraída por este homem.
A abertura da caverna ficava a dois metros e meio abaixo do
sulco atrás da propriedade de Zimmerman e, quando a
manhã despontou sobre as montanhas do leste, banhando a
bacia de Los Angeles com luz fresca e transparente, Érica
ajustou a correia do capacete no queixo. Ao lado dela,
também se preparando, estava Luke, com os olhos atentos e
muito excitado. Esta seria sua primeira experiência com uma
nova escavação e ele ajustou sua linga de explorador de
cavernas e o anel de travamento com o vigor de quem se
prepara para a luta.
Jared Black também estava se prendendo aos arreios, e Érica
notou que ele usava roupas mais resistentes — um macacão
emprestado que dizia Southern Califórnia Edison nas costas.
Mas seu rosto não mostrava excitação. Em vez disso exibia
uma expressão sombria, fazendo-a pensar: "Ele está zangado.
Por quê? Será que não queria esta tarefa? Será que foi forçado
a aceitá-la?" Érica achara que ele adoraria essa oportunidade
singular de projetar o trabalho da CHAN e de sua cruzada
pessoal pelos direitos dos nativos americanos.
Ou a sua raiva era pessoal? Será que ele ainda não a perdoara
pelo que dissera no dia em que ela e seu grupo perderam o
caso Reddman: As palavras do Sr. Black cheiram a hipocrisia
quando, por um lado, ele declara ser um defensor da
proteção da cultura histórica e, por outro, destina evidência
material histórica ao enterramento e portanto fazendo-a cair
no esquecimento."
— Está pronta, Dra. Tyler? — perguntou o alpinista enquanto
se certificava de que Érica estivesse bem presa na corda,
verificando os arreios e todos os pontos de fixação.
— Tão pronta como jamais estarei — disse ela com um riso
ner- voso. Érica nunca descera um rochedo de rapel antes.
— Certo, apenas siga minhas instruções e tudo irá bem.
Parado na beira do rochedo, o alpinista virou de costas para a
vertente, mostrando aos outros como inclinar-se para trás e
depois começar a descida controlada, demonstrando como
permitir que a corda passasse pelo nó em oito liberando a
pressão nas cordas que corriam pela mão direita, o outro
braço estendido para trás enquanto ele baixava lenta e
cuidadosamente. Quando chegaram à borda da caverna, o
alpinista ajudou Érica a entrar, depois ajudou Luke e Jared,
que vinham a seguir.
Os quatro soltaram as cordas e encararam o interior escuro
da caverna. A caverna podia ser pequena mas a escuridão era
enorme. O único alívio na intimidante escuridão eram os
pontos frágeis das luzes de seus capacetes. Quando
arrastaram os pés, o barulho ecoou fino nas paredes de
arenito e morreu nas trevas à distância.

A despeito do impulso de correr para dentro e ver a pintura,
Érica permaneceu na entrada e metodicamente varreu o
chão, as paredes e o teto com a lanterna. Quando se
certificou de que não havia material arqueológico na
superfície, nada que eles pudessem destruir
inadvertidamente, ela disse:
— Muito bem, senhores, podemos entrar. Cuidado onde
pisam. — Girou a lanterna, passando a luz pelas paredes e
sobre o teto arqueado. — Enquanto prosseguimos, o que
devemos fazer é voltar no tempo e tentar imaginar as coisas
que as pessoas podem ter feito aqui e os rastros que essas
atividades podem ter deixado para trás.
Eles avançaram lentamente, atentos ao local que pisavam
com suas botas, enquanto oito círculos de luz dançavam
como mariposas brancas sobre formações de arenito. Érica
observou calmamente:
— Temos sorte por esta caverna ficar no declive ao norte das
montanhas, que é mais seco do que o declive ao sul, que
recebe o impacto das tempestades do Pacífico. O abrigo da
chuva é o que ajuda a preservar a pintura. E possivelmente
outros artefatos.
Eles exploraram em silêncio, raios de luz talhando os
contornos suaves das pedras, iluminando superfícies
escurecidas e manchas de líquen, todos os quatro eram
intrusos alertas, com os sentidos aguçados, vigilantes, até
finalmente chegarem ao fim.
— Ali — disse o alpinista, querendo dizer a pintura.
Érica aproximou-se com apreensão, um pé colocado
meticulosamente na frente do outro. Quando a lâmpada de
carbureto de seu capacete iluminou os pictogramas, sua
respiração falhou. As cores vibrantes dos círculos, os
vermelhos e amarelos, como pores-do-sol incandescentes!
Eram maravilhosos, fantásticos, reais. Eram também...
— Você sabe o que estes símbolos significam, Dra. Tyler? —
perguntou o alpinista, inclinando a cabeça para um lado e
para o outro, enquanto tentava compreender o que parecia
ser uma colagem sem sentido de linhas, círculos, formas e
cores.
Érica não respondeu. Ela estava atônita diante da pintura,
sem piscar, como se as luas e os sóis luminosos na parede a
tivessem hipnotizado.
- Dra. Tyler? — repetiu ele. Jared e Luke trocaram olhares.
— Dra. Tyler — disse Luke. — Você está bem?
Ele tocou em seu ombro e ela se sobressaltou.
— O quê? — disse ela, olhando perplexamente para ele.
Depois, recuperando-se, disse: — Eu estava só... Eu não
esperava encontrar uma pintura tão intacta. Nenhum
grafite... — disse ela, ofegante. — Para responder a sua
pergunta sobre estes símbolos — retomou, com a voz um
pouco mais forte, um pouco mais forçada, como se precisasse
lembrar-se de onde estava —, o centro da crença religiosa
nesta área era o xamanismo, uma forma de culto baseado na
interação pessoal entre o xamã e o sobrenatural. O xamã
comia semente de trombeta, ou entrava em transe de outra
maneira, e andava no mundo dos espíritos. Era o que
chamavam de uma busca da visão. E, quando ele saía do
transe, gravava suas visões nas pedras. Isto é chamado de arte
derivada do transe. Pelo menos, é uma das teorias que
explicam a arte rupestre do sudoeste.
O alpinista inclinou-se para olhar mais de perto.
— Como sabe que é o trabalho de um xamã? — perguntou
ele. — Quer dizer, não pode ser apenas grafite e não
significar absolutamente nada?
Érica olhou atentamente para o círculo maior, que era
vermelho como o sangue e com pontos curiosos emanando
dele. Isto certamente significa alguma coisa.
— Há estudos laboratoriais sobre este fenômeno, ele é
chamado de neuropsicologia dos estados alterados. E a
descoberta dos estudos é que existem imagens universais
descritas por povos em diferentes culturas, sejam eles
americanos nativos, aborígines australianos ou nativos de
culturas africanas. Acredita-se que são formas geométricas
luminosas que de alguma forma são geradas
espontaneamente no sistema óptico. Você mesmo pode
tentar. Olhe fixamente por um instante para uma luz
brilhante e depois feche os olhos rapidamente. Você criará
os mesmos padrões — pontos, linhas paralelas, ziguezagues e
espirais. São as metáforas do transe.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Mas eles não se parecem com nada.
— Nem devem parecer mesmo. Estes símbolos são imagens
de um sentimento ou de um plano espiritual, algo que na
realidade não tem estrutura corporal e, portanto, sem
imagem. Porém... — disse ela, franzindo as sobrancelhas
quando sua lanterna iluminou uma figura não identificável,
alongada com o que parecia ser chifres ou braços levantados.
— Há outros elementos que são intrigantes.
Luke virou-se para ela, cegando-a momentaneamente com a
luz do capacete.
— Intrigantes? Como assim?
— Observe que alguns destes traços não se adaptam ao
registro conhecido das imagens do transe. Este símbolo aqui.
Eu nunca o vi antes, não em todas as artes rupestres que já
estudei. A maioria destes símbolos é encontrada em outros
pictogramas e petróglifos espalhados pelo sudoeste. Estas
impressões de mãos, por exemplo. Na verdade, a impressão
de mãos em arte rupestre é universal e encontrada em todo o
mundo. Ela reflete a crença de que a face da rocha era um
limite permeável entre os mundos: natural e sobrenatural. E
a porta por onde o xamã entra para visitar os espíritos. Mas
estes outros símbolos — disse ela, apontando com cuidado
para não tocar a superfície — são completamente novos para
mim. — Fez uma pausa. Sua respiração suave, ressonando
como uma brisa na caverna. — Há outra coisa intrigante
sobre esta pintura.
Seus companheiros esperaram.
— Embora ela contenha pictogramas característicos das
culturas etnográficas desta área, este mural também contém
motivos que são típicos da arte rupestre dos pueblos. Na
verdade, esta arte retrata uma mistura de culturas. Paiute do
sul, shoshone. Em alguma parte do sul de Nevada.
— Você pode datar a pintura, Dra. Tyler? — perguntou Luke
num tom de respeito.
— Podemos dar uma data aproximada de antes de 500 da era
cristã por causa dos atlatls representados — estes objetos
aqui, atiradeiras de lança — em vez do arco e flecha, que
entrou em uso no

Novo Mundo por volta do ano quinhentos. Para uma data
mais definitiva, precisaríamos usar uma análise de micro-
sondagem por elétrons e datar com o carbono 14. Mas por
enquanto eu diria que esta pintura tem aproximadamente
dois mil anos.
Jared Black falou pela primeira vez:
— Se o artista veio do sul de Nevada, é uma viagem e tanto,
considerando que ele teria de atravessar o Vale da Morte
andando.
— A questão maior é por que ele fez isso. Os shoshones e
paiutes nunca se aventuraram além de suas terras tribais.
Embora se deslocassem de acordo com a disponibilidade de
comida, eram muito territoriais e permaneciam dentro dos
limites de suas terras ancestrais. O que será que fez essa
pessoa afastar-se do clã e cobrir essa distância, fazendo o que
só pode ter sido uma jornada muito traiçoeira?
Os olhos de Jared estavam encobertos pela sombra do
capacete, mas Érica sentiu seu olhar penetrante.
— Então esta pintura é possivelmente shoshone? — disse ele.
— É apenas uma hipótese. Segundo estudos de períodos de
estiagem, por volta de mil e quinhentos anos atrás mudanças
no meio ambiente dos desertos a leste da Califórnia
trouxeram os ancestrais dos índios gabrielinos para Los
Angeles, um grupo que falava a língua shoshone. Contudo,
se essas pessoas tinham um nome tribal próprio, ele se
perdeu com o tempo.
— Mas isto foi feito por um desses ancestrais? — insistiu
Jared.
Ela tentou controlar sua impaciência. Jared Black era um
homem que demandava respostas imediatas.
— Não estou certa, porque acredito que esta pintura tem mais
de mil e quinhentos anos. E lembre-se que "Gabrielino" era
um general cujo nome foi dado pelos franciscanos a diversas
tribos nesta área — disse ela, olhando diretamente para ele.
— Então nós devemos ter muito cuidado com nossos termos
aqui.
— Você tem certeza que não sabe?
Érica sentiu sua irritação começar a mudar para raiva. Ela
sabia que ele estava inferindo, ele fizera a mesma acusação
durante o caso Reddman, quando ela dissera que precisava de
mais tempo para identificar a afiliação tribal dos ossos e
artefatos. Naquele caso Jared acertara: Érica estivera
ganhando tempo. Mas neste caso ela estava dizendo a
verdade, pois não tinha idéia da tribo responsável pela
pintura.
Afastando-se da parede, Érica notou que diretamente abaixo
da pintura o chão estava diferente do resto do chão da
caverna. Ele ele- vava-se num contorno que não parecia uma
formação natural. Ela olhou para o teto. Não havia evidência
de colapso. Depois agachou- se em vários lugares e esfregou
a terra entre os dedos. Era igual em todos os lugares,
uniformemente depositada pelo vento que entrava na
caverna.
— Já que a pintura não aponta com precisão uma tribo
específica — disse ela —, então acho que devemos procurar
evidência em outro lugar. Este estranho monte, por
exemplo.
As sobrancelhas alouradas de Luke arquearam, seus olhos
brilharam de esperança.
— Você acha que há alguma coisa enterrada aqui, Dra. Tyler?
— É possível. O resíduo de fumaça nas paredes indica que
fogueiras ou tochas foram queimadas aqui, o que pode
significar que este monte sejam níveis de habitação ao longo
dos séculos. Quero explorar esta área elevada.
— Agora os destruidores entram em cena — murmurou
Jared.
— Não há destruidores, Sr. Black. Apenas eu. Serei a única a
trabalhar aqui para garantir que a destruição ao monte seja a
mínima possível.
— Escavação é destruição, Dra. Tyler.
— Acredite ou não, Sr. Black, existem arqueólogos que não
pensam em escavar um sítio só porque ele está lá. O sítio
deve estar ameaçado. Ou, como neste caso, há a necessidade
de determinar a identidade tribal de nosso artista das
cavernas. Podemos ter encontrado um repositório de história
fabuloso.
— Ou sepulturas que não deviam ser perturbadas.
Ela olhou para Jared, seu rosto cortado por sombras e luzes,
depois virou-se para Luke.
— Primeiro vamos fazer uma análise geoquímica do solo e
medir o conteúdo de fosfato. Isso pelo menos nos dirá se
este sítio foi alguma vez habitado. Enquanto isso, acho que
seria uma boa idéia se você limpasse um pouco esta parede.
Debaixo de toda essa fuligem pode haver mais pictogramas.
Quando virou-se para dizer mais alguma coisa para Jared
Black, surpreendeu-se ao ver que ele fora para a entrada da
caverna, uma figura alta e de ombros largos recortada contra
a luz da manhã, uma das mãos apoiada na parede, a outra
segurando o capacete que retirara. Jared Black parecia
equilibrar-se na beira do rochedo como se estivesse pronto
para voar.
Havia um aspecto surrealista naquele momento, a escuridão
da caverna com a sensação do peso da montanha
pressionando para baixo, a aproximação das paredes de
arenito, o silêncio que era uma espécie de paz. Apesar disso,
havia a abertura para a luz brilhante do Pacífico e, mais além,
sons das equipes de trabalho, da polícia, dos helicópteros
sobrevoando em busca de notícias. Por que estava parado ali?
O que estava olhando?
Por que ele chegou aqui com tanta vontade de brigar?,
pensou ela. Jared Black parecia ter vindo para cá com toda a
tolerância de um urso pardo protegendo seu filhote. Se pelo
menos houvesse algum jeito de fazê-lo ver que era possível
trabalharem juntos, que não precisavam ser adversários. Mas,
por alguma razão insondável, ele parecia determinado a fazer
dela uma inimiga. O caso Reddman acontecera há quatro
anos, contudo era quase como se — não podia deixar de
pensar — a adrenalina da batalha e a euforia da vitória
subseqüente ainda estivessem alimentando sua paixão. Jared
Black era um homem se preparando para uma luta, e Érica
não sabia por quê.
Ela continuou varrendo a caverna com a lanterna, até que a
luz revelou alguma coisa no chão.
— Luke, o que acha disso?
Ele olhou para baixo e viu que a terra remexida expunha algo
entre o branco e o cinza no chão da caverna.
— E recente. Parece que o terremoto removeu a terra aqui.
Érica ficou de joelhos e, usando um pincel, limpou
gentilmente a terra solta.
— Meu Deus! — exclamou Luke, arregalando os olhos. Jared
voltou e ficou em silêncio enquanto Érica descobria algo
com o pincel, um objeto que parecia uma pedra com um
buraco. E depois outro buraco. E depois... dentes. Era um
crânio humano.
— É uma sepultura! — murmurou Luke, estupefato.
— De quem? — perguntou o alpinista, nervosamente.
Érica, sentindo aumentar a adrenalina e o excitamento, não
respondeu. Mas ela sabia. De algum modo, antes de escavar,
antes de encontrar a prova, ela sabia que eles haviam
descoberto os restos mortais do artista da pintura do sol.

Capítulo Dois

MARIMI
Dois mil anos atrás

Enquanto Marimi olhava os dançarinos se apresentarem no
centro do círculo, ela sabia que esta noite seria uma noite
mágica.
Já podia sentir a magia nos dedos enquanto tecia com
habilidade o fundo oval do berço, entrelaçando os galhos
tenros de salgueiro na preparação para sustentar a criança
recém-nascida; a superfície seria recoberta com pele de
gamo mais tarde e um cesto como toldo acrescentado acima
da cabeça do bebê. Ela podia sentir a magia no ventre
quando a nova vida se mexia lá dentro, seu primeiro filho,
que nasceria na primavera. Viu a magia nos membros
flexíveis de seu marido jovem enquanto ele dançava na
celebração da colheita anual do pinhão, um caçador bonito e
viril que lhe mostrara o êxtase do amor físico entre um
homem e uma mulher. Marimi ouviu a magia no riso dos
homens enquanto dançavam, ou jogavam, ou contavam
histórias fumando seus cachimbos; ela a ouviu na música dos
músicos enquanto sopravam seus apitos feitos de ossos ocos
de aves e flautas feitas de sabugo; havia magia no mexerico
alegre das mulheres enquanto teciam suas cestas brilhantes à
luz de muitas fogueiras; nos gritos das crianças enquanto
brincavam jogando aros e varas ou lutando no chão úmido da
floresta; e havia magia também no rosto das jovens se apai-
xonando, escondendo o riso com as mãos enquanto
escolhiam futuros companheiros. Uma noite "dos espíritos",
dizia sua mãe, quando os espíritos dos ancestrais eram
chamados pelas almas das árvores, das pedras e dos rios para
celebrar a Unidade de Todas as Coisas. Uma ocasião de
grande alegria, uma noite boa, uma noite especial, pensou
Marimi.
Exceto que a alegria de Marimi nesta noite de festividade
estava enlaçada com um medo inesperado.
Do outro lado do grande círculo em cuja volta as famílias
olhavam os dançarinos, um par de olhos negros e duros
estavam fixos nela -—Velha Opaka, a mulher-xamã da tribo,
magnífica em suas peles de gamo, colares e preciosas penas
de águia. Marimi estremecia sob o olhar penetrante e sentia a
pele arrepiar de medo. Opaka apavorava a todos, incluindo os
chefes e caçadores, com seu amplo e misterioso
conhecimento de magia e porque falava com os deuses,
porque só ela em toda a tribo sabia o segredo de comungar
com o sol, a lua e todos os espíritos e como invocar seus
poderes.
Pessoas comuns não conseguiam falar com os deuses. Se um
membro do clã desejava um favor dos deuses, a intercessão
de um xamã era necessária: uma esposa estéril desejando um
filho, uma virgem feiosa desesperada por um marido, um
caçador envelhecendo cujas habilidades estavam
enfraquecidas, uma avó cujos dedos não podiam mais tecer
cestos, uma mulher grávida procurando proteção contra
mau-olhado, um pai preocupado em saber se o rio seco junto
ao abrigo de sua família voltaria a ter água — eles
timidamente e com grande reverência se aproximavam do
xamã da tribo e humildemente apresentavam seus casos.
Cada pedido era seguido de pagamento, razão pela qual o
xamã era tão rico, suas cabanas mais ricamente adornadas,
suas peles de gamo mais macias, seus colares mais elegantes.
As famílias mais pobres só podiam oferecer sementes,
enquanto as mais ricas traziam chifres de veados e peles de
alce. Mas todos podiam se aproximar do xamã, e todos
recebiam uma resposta dos deuses através da boca do xamã.
Que neste caso era Opaka, a figura mais poderosa do clã de
Marimi. Marimi vira certa vez a velha mulher fazer um
homem adoecer e morrer, simplesmente apontando para ele;
Opaka tinha esse poder.
Mas por que estava olhando especialmente para Marimi
agora, no meio de toda a gente, os olhos como pontas de
alfinetes de fogo negro?
Tentando não deixar seu medo transparecer, a jovem esposa
voltou sua atenção à cestaria, lembrando a si mesma
novamente que esta era uma noite especial.
Esta era a época da reunião anual, quando todas as famílias
dos povos — que se autodenominavam topas — vinham dos
quatro cantos do mundo, de tão longe como o lugar onde a
terra sustenta o céu, deixando suas casas de verão a fim de se
reunirem nas montanhas para a colheita do pinhão — uma
reunião de umas quinhentas famílias, cada qual com sua
própria cabana e fogueira. Usando grandes varas para retirar
os cones das árvores, eles assavam e comiam as castanhas, ou
as transformavam em farinha que misturavam com carne de
veado e molho, e depois guardavam o restante para os meses
próximos de inverno. Enquanto as mulheres juntavam as
castanhas, grupos de homens caçavam coelhos, impelindo-os
para as redes e matando a pauladas os que precisavam para a
provisão de inverno.
Os casamentos eram arranjados nesta época, mas não era
uma tarefa simples, pois as regras que determinavam quem
podia se casar com quem eram complexas — as linhagens
precisavam ser examinadas e consideradas, os deuses deviam
ser invocados, os augúrios lidos. Embora os topaas fossem
todos da mesma tribo, pertenciam, porém, a diferentes clãs,
que por sua vez eram divididos em famílias, segundas e
primeiras. Os clãs tinham um animal como totem: puma,
falcão, tartaruga. A segunda família abrangia os avós, tios e
primos, nomeada segundo sua linhagem: povo do Rio Frio,
povo do Deserto Salgado. A primeira família abrangia os pais
e filhos, e o nome da família era baseado na fonte de
alimento local, ocupação ou característica geográfica —
"comedores de bagas", "habitantes dos arroios" ou "facas
brancas", estes porque faziam ferramentas cortantes com
uma pedra branca local. Marimi pertencia ao clã dos falcões
de rabo vermelho, sua segunda família era o povo da Mesa
Negra, sua primeira família eram os "caçadores de lebre". O
jovem que a escolhera como esposa era do clã tartaruga, o
povo do Vale da Poeira, "fazedores de cachimbos". Ele a
deleitara com suas brincadeiras na última colheita, vestindo-
se com apuro e dançando na frente de sua cabana, tocando
sua flauta, exibindo sua habilidade com a lança, mas sem falar
com ela pois isso era tabu. E quando ela colocara o cesto com
frutas e sementes do lado de fora, para indicar seu interesse,
ele arranjara o encontro de seu pai com o pai dela, e os dois
homens conferenciaram com os chefes de seus clãs para
acertar as complexas negociações, determinar os presentes, e
se a noiva deveria ir para a família do noivo ou vice-versa. Se
o marido viesse de uma família com poucas mulheres, então
sua esposa iria com ele. Se a esposa viesse de uma família de
viúvas e irmãs solteiras, então o marido iria com ela. No caso
de Marimi, seu pai era o único homem entre oito mulheres.
Ele recebeu de bom grado o novo marido de Marimi como
filho.
Durante a colheita, o povo era lembrado dos limites de sua
terra tribal, e ensinavam-se as crianças a memorizar os rios,
as florestas, as cadeias de montanhas que separavam as terras
topaas das terras das tribos vizinhas — shoshone ao norte,
paiute ao sul, e com quem os topaas nunca negociavam, nem
casavam seus membros, nem guerreavam —, e faziam com
que as crianças se lembrassem de que era rigorosamente tabu
caçar, colher sementes ou retirar água da terra de outra tribo.
Em cada colheita de pinhão as famílias erguiam cabanas nos
pedaços de terras de seus ancestrais, onde as famílias se
reuniam e participavam de colheitas desde o início dos
tempos. O mesmo lugar onde Marimi estendera sua esteira e
agora tecia o cesto de seu filho era o mesmo lugar onde sua
mãe e avó e bisavó, sucessivamente até o começo, também
estenderam suas esteiras e teceram cestos de bebês.
E, algum dia, sua primeira filha a nascer se sentaria neste
mesmo lugar e teceria seus cestos, assistindo dali às mesmas
danças e aos mesmos jogos. Deste modo, a colheita anual do
pinhão era bem mais do que uma simples colheita de
alimento para o inverno. Nela, o povo aprendia as histórias
de seus ancestrais, porque o modo de viver dos topaas estava
ligado ao passado, assegurando desta maneira que o que
aconteceu antes, acontece hoje e acontecerá amanhã até o
fim dos tempos. A reunião anual ensinava a uma pessoa onde
ela estava situada na Criação. Ela mostrava ao homem ou à
mulher que ele ou ela era parte do Grande Desenho, que os
topaas e a terra, os animais e as plantas, o vento e a água
estavam todos conectados e entrelaçados como os complexos
cestos que as mulheres teciam.
Depois da colheita do pinhão, os clãs permaneciam e
invernavam nas montanhas, e quando os primeiros brotos
verdes despontavam do chão o enorme acampamento se
dispersava, com as famílias voltando para seus lares ancestrais
até a próxima colheita. Marimi e seu marido, seus pais e
irmãs voltariam para sua terra, onde caçariam lebres, e onde
a família de Marimi morara desde o tempo da Criação. Lá ela
daria à luz seu primeiro filho, tornando-se mãe e, assim,
elevando seu status no clã, de modo que no ano seguinte,
quando retornassem à floresta de pinheiros, as pessoas a
tratariam com novo respeito e deferência.
Era nesse futuro feliz que Marimi tentava manter seus
pensamentos, enquanto o calafrio causado pelo olhar fixo de
Opaka fazia sua pele arrepiar. Por que a mulher-xamã estava
olhando tão fixamente para ela?
Os costumes do clã de xamãs eram misteriosos e profundos,
e tabu para qualquer pessoa até mesmo contemplar quanto
mais falar a respeito, pois só os xamãs possuíam o poder de
andar entre o mundo real e o sobrenatural. Sempre, antes da
colheita começar, antes da primeira família erguer sua
primeira cabana, as cabanas sagradas dos xamãs eram
erguidas. Todos participavam, inclusive crianças e velhos,
cortando os melhores galhos e ramos, oferecendo as
melhores peles e lenhas para que a cabana sagrada acolhesse
os deuses e trouxesse bênçãos à colheita e ao povo através
das buscas de visão de seu xamã. Sendo o mundo lugar
incerto e terrível, colheitas abundantes nunca podiam ser
previstas ou esperadas, e portanto era imperativo que antes
que a primeira pinha fosse retirada da primeira árvore, os
xamãs entrassem em suas cabanas sagradas e viajassem em
seus estados mediúnicos para se comunicarem com os
poderes sobrenaturais, para receberem instruções e profecias,
e às vezes leis.
Era por isso que Marimi estava repentinamente com medo
nesta noite de celebração. Opaka tinha o poder dos deuses, e
Marimi estava certa de que havia malevolência em seu olhar.
Por quê? Marimi não conseguia lembrar o que poderia ter
feito para atrair a ira da anciã. Se a fonte do rancor fosse
outro membro da tribo, Marimi iria até a xamã de seu clã e
lhe suplicaria que pedisse aos deuses para protegê-la daquela
pessoa. Mas neste caso era a própria xamã quem estava
pondo mau-olhado em Marimi!
E então de repente ela estava pensando em Tika, e Marimi
entrou em pânico.
Tika fora a primeira filha da irmã da mãe de Marimi, e desde
pequenas ela e Marimi pareciam irmãs. Elas passaram pelos
rituais da puberdade juntas, e quando Tika e mais doze
garotas participaram da corrida dos iniciantes, e Marimi
ganhara, chegando na cabana da mulher-xamã antes das
outras, Tika fora a única a festejar. Fora Tika, na última
colheita, quem carregara as mensagens secretas entre Marimi
e o jovem caçador, já que era tabu para eles conversarem
enquanto as negociações matrimoniais estavam em
progresso. E fora Tika quem dera a Marimi e seu novo
marido como presente um cesto com um desenho tão
magnífico que foi comentado por todo o clã.
E então o infortúnio caíra sobre Tika. Ela se apaixonara por
um rapaz que Opaka queria para marido da neta de sua irmã.
Se Tika tivesse se deitado com qualquer outro rapaz, não
teriam feito dela uma excluída, Marimi estava certa disso.
Mas quando os dois foram encontrados juntos na relva da
cabana de um tio, os curandeiros e as curandeiras se
reuniram em conselho e fumaram seus cachimbos da
sabedoria e decretaram que a moça devia ser excluída, mas
não o rapaz, já que decidiram que fora a moça quem o
seduzira a infringir a lei tribal. Como a tribo não executava
nenhum de seus membros nem pelo crime mais severo,
porque temem a punição do espírito, os culpados eram
condenados a uma morte em vida. Seus nomes, posses e
alimentos eram tomados, e eles eram excluídos do círculo
protetor. Declarada excluída, uma pessoa nunca mais podia
retornar. Ninguém podia falar ou olhar para um excluído,
nem lhe dar comida, água ou abrigo. Os membros da família
cortavam seus cabelos e ficavam de luto como se seus entes
queridos tivessem realmente morrido. Quando Tika se
tornou uma das sem-nomes, o coração de Marimi chorou
por ela. Ela se lembrava de ter visto a amiga à beira dos
pinheiros, perambulando como uma alma perdida. Marimi
quis ir até ela, atravessar o círculo protetor para levar-lhe
comida e cobertores. Mas isso faria de Marimi uma excluída
também.
Como já estivessem "mortos", os excluídos não viviam muito
tempo. Não pela dificuldade de obter comida ou a pela
exposição aos elementos, mas sim porque os espíritos dentro
deles tinham morrido ao serem declarados excluídos. Extinta
a vontade de viver, a morte não demorava muito. Depois de
alguns dias, Tika não foi mais vista rondando o
acampamento.
— Mãe — disse Marimi suavemente à mulher sentada ao seu
lado, que estava cantando enquanto tecia um cesto
complicado. A música dava vida, e portanto espírito, ao
cesto. A música também habilitava os dedos a tecer um
conto mítico ou mágico no padrão. A mãe de Marimi,
usando um padrão com formas de diamantes, estava
imbuindo seu cesto com a história de como as estrelas foram
criadas há muito tempo. — Mãe — repetiu Marimi, um
pouco mais alto. — Opaka está me vigiando.
— Eu sei, filha! Cuidado. Desvie os olhos.
Marimi passeou os olhos nervosamente pelo acampamento
ruidoso, onde a fumaça de quinhentas fogueiras subia para o
céu. Sua casa de verão era no alto deserto, onde a vegetação
mais comum era a artemísia, mas estas montanhas eram
arborizadas com pinheiros e zimbro, e este lugar frondoso de
espíritos teria, de outro modo, apavorado Marimi se ela e seu
povo não estivessem dentro da proteção do círculo. À noite,
quando as famílias deitavam em seus cobertores de peles,
ouviam amedrontadas os sons dos espíritos gemendo nas
árvores, elas esperavam que os talismãs do xamã, colocados
em volta do perímetro do acampamento, fossem forte o
bastante para manter os espíritos afastados. Era por isso que
ninguém pagava o xamã de má vontade, porque um xamã
poderoso significava que o clã estava seguro e que os deuses
olhavam por eles. Todos lembravam da sina terrível do clã
coruja, cujo xamã caíra acidentalmente para a morte de um
precipício íngreme, deixando trinta e seis famílias sem
alguém para representá-las no mundo dos espíritos e para
falar com os deuses por elas. Antes de um ciclo da lua, todos
os homens, mulheres e crianças ficaram doentes e morreram
de modo que o clã coruja deixou de existir.
Com a sensação de medo aumentando, Marimi esforçou-se
por se concentrar no cesto do bebê. Mas agora seus dedos
trabalhavam sem agilidade, graça, quando percebeu com
desânimo que a magia que sentira esta noite não era
necessariamente boa magia...

Enquanto Opaka mantinha os olhos em Marimi do outro
lado do círculo de dançarinos, lembrou-se do tempo em que
ela mesma fora tão agradável de ser admirada. Sentada em
sua rica pele de búfalo, rodeada de presentes de comida,
colares e penas trazidos pelas pessoas em busca de favores e
bênçãos dos deuses, Opaka pensou com amargura que o
rosto redondo de Marimi, seus olhos sorridentes, a boca
sensual e os cabelos que pareciam uma cascata negra
brilhante — que chamaram a atenção de outros além do
jovem caçador que se casara com ela — foram outrora as
feições de Opaka, antes que a idade e as muitas jornadas da
alma fora do corpo a tivessem esgotado.
Mas não era por isso que odiava a garota.
O veneno que corria nas veias envelhecidas de Opaka
brotara há seis invernos, durante a estação sem pinhão,
quando as famílias chegaram à floresta para encontrar os
cones de pinhão já caídos e apodrecen- do no chão. Quando
perceberam que os deuses tinham feito a estação chegar mais
cedo, de modo que agora o povo iria passar fome, uma
grande lamentação surgiu, e os xamãs se recolheram em suas
cabanas sagradas para queimarem a algarobeira sagrada e
jejuarem e engolirem sementes de estramônio e recitarem e
cantarem e rezarem por visões dos deuses que mostrariam ao
povo onde estavam os pinhões. Mas os deuses não
atenderam às orações dos xamãs, e assim parecia que uma
ameaçadora escassez de alimentos pairava sobre os topaas.
E então a mãe de Marimi foi até Opaka com a mais
extraordinária das histórias.
Sua filha, na época com nove verões de idade, sofrera uma
terrível aflição que enchera sua cabeça de dor e lhe cegara os
olhos e ensurdecera os ouvidos. A mãe banhara a cabeça da
criança com água fresca e a mantivera à sombra das árvores.
Quando a doença se foi, Marimi contou à mãe sobre a
floresta de pinheiros do outro lado do rio. Era só um sonho,
dissera sua mãe, causado pela fome e pela estranha dor de
cabeça. E advertira a filha para que não falasse sobre a visão,
pois era Opaka quem devia dizer ao clã onde encontrar
comida. Mas Marimi persistiu em sua visão de uma floresta
de pinheiros, numa terra além das fronteiras dos topaas, onde
nenhum outro povo morava e nenhum ancestral vivera.
Portanto, não seria tabu ir até lá para colher os abundantes
pinhões.
E assim, quando os xamãs saíram de suas cabanas e disseram
que não haveria pinhões naquela estação e que não haveria
caça ao coelho, pois ninguém vira coelhos na floresta, que a
floresta estava estéril porque os deuses tinham virado as
costas para o povo, a mãe de Marimi achou que devia
procurar o conselho de Opaka com respeito à visão da filha.
A floresta, dissera a criança, ficava na direção do sol
nascente, do outro lado do rio e no topo de uma montanha
fértil.
Mas Opaka disse que a terra da qual falava ficava além das
fronteiras da tribo. Era tabu para o povo ir até lá. Porém a
criança insistiu em que não era tabu. Assim dissera o espírito
em seu sonho. Instruindo a mulher para que não falasse
sobre isso com ninguém, Opaka fizera a jornada
secretamente e com certeza encontrara a floresta com
abundância de pinhões. Voltando ao acampamento, entrara
na cabana sagrada para fazer uma jornada espiritual e saíra
para anunciar que os deuses a guiaram numa visão a um lugar
com abundância de pinhões, um lugar onde nenhum outro
ancestral vivera.
Quatro jovens bravos foram escolhidos e lhes deram lanças.
Eles foram instruídos para correrem rumo ao sol, mas se
entrassem em solo tabu não deviam retornar.
Enquanto eles estavam fora, o povo dançou e se alimentou
com larvas de abelha e mel e com os pinhões que puderam
recolher do terrível refugo. E, quando os caçadores
retornaram, contaram sobre a floresta abundante do outro
lado do rio onde nenhum povo ou ancestral vivera.
Acabou sendo uma boa estação a estação sem pinhão, e foi
comentada em todas as reuniões e em volta de toda fogueira.
A tribo banqueteou-se bem e retornou para suas casas de
verão com cestos cheios de pinhões. A menina não foi
mencionada. A visão foi creditada aos xamãs, que podiam
falar com os deuses, assim provando o poder dos xamãs,
provando o poder de Opaka.
Opaka passou a vigiar a garota desde então, atenta às ocasiões
em que Marimi era acometida por dores de cabeça e falava
de visões. Quando a garota virou mulher e ganhou a corrida
no seu ritual da puberdade, uma vitória que lhe deu um lugar
de honra aos olhos da tribo e que Opaka queria para a neta de
sua irmã, já que ela mesma não tinha neta, Opaka
intensificara sua vigília. Quando as garotas saíram do último
rito da puberdade, permanecendo numa cabana cerimonial
onde passaram por buscas de visões, e cada uma delas
declarara que a cascavel era o seu espírito-guia — a cobra
sendo um forte símbolo masculino e boa sorte para as
virgens que esperavam se tornar mães férteis —, Marimi
anunciara que o corvo era o seu espírito-guia, desafiando a
tradição.
Mas o que mais alarmou Opaka foi que a garota era capaz de
ter visões sem o benefício da semente de estramônio, da qual
os xamãs dependiam. O que aconteceria com a estrutura
social da tribo se qualquer um pudesse se comunicar com os
deuses? O caos, a selvageria, a desordem. Só aqueles
especialmente escolhidos e iniciados nos ritos xamânicos
secretos podiam se comunicar com o Outro Mundo. Desta
forma, o universo permanecia em equilíbrio, desta forma, a
ordem era mantida. Opaka via a garota como uma ameaça à
futura estabilidade da tribo. Especialmente agora que ela
estava grávida e logo teria seu status elevado ao status de
mãe.
Um privilégio que Opaka nunca conhecera.
Escolhida quando era apenas um bebê, afastada de sua mãe e
enviada para viver em isolamento com a mulher-xamã do
clã, Opaka fora criada e instruída pela anciã nos caminhos
dos mistérios e segredos, remédios e curas, e em como falar
com os deuses. Fora uma iniciação de resistência e provação,
com extenuados meses de solidão e sacrifício, pois fora
treinada com severidade e sem amor, para pensar não em si
mesma, mas na tribo, para viver uma vida sem marido, sem
filhos, uma virgem mesmo na velhice. Opaka era incapaz de
reconhecer a emoção da inveja. Criada para ser a pessoa mais
rica e mais poderosa do clã, do que poderia ter inveja? Ciúme
era também uma coisa estranha para ela, e portanto não
podia reconhecê-lo quando o sentia. Opaka também não
acreditaria, se alguém lhe dissesse, que ela podia estar com
medo de uma simples garota. Pessoas que falavam
diretamente com os deuses não tinham essas fraquezas
humanas. E então, cega por sua amargura e rancor interno, e
seu profundo terror de que um dia Marimi pudesse competir
com ela pelo poder divino, Opaka disse a si mesma que o
segredo que ela tramara contra a garota era para o bem da
tribo.

Um grupo de moças, as amigas solteiras de Marimi, se
aproximou para zombar dela por não sentir frio esta noite
quando a friagem do inverno invadisse suas cabanas. Elas só
teriam as peles e couros para mantê-las aquecidas, enquanto
a sortuda Marimi tinha o calor de um homem.
— Se ouvirmos seus gemidos — disse uma das moças que
estava prestes a se casar com um caçador do clã falcão —,
devemos vir buscá-la?
— Mas e se os gemidos forem dele? — zombou a outra. —
Devemos vir para levar seu marido embora?
Marimi corou, rindo e ralhou com as amigas por serem
virgens tolas, mas ela adorava a atenção e estava realmente
esperando ansiosa pelo abraço forte do marido naquela noite.
Quando estava prestes a oferecer às amigas uma cesta de
frutas, que ela catara naquela tarde, uma mulher entrou de
repente no círculo, empurrando os dançarinos para o lado,
gritando enquanto carregava uma criança desacordada. Ela
jogou-se diante de Opaka, implorando a esta que lhe salvasse
o filho.
O acampamento caiu em silêncio, deixando apenas os sons
das chamas crepitando nas fogueiras e bebês choramingando
em cabanas distantes.
Marimi reconheceu o garoto. Era Payat, do clã leão da
montanha, sua segunda família era o povo do Cânion
Vermelho, e sua primeira família eram os "habitantes do
plano salgado". Um silêncio terrível desceu sobre o
acampamento quando Opaka esforçou-se por se levantar,
curvando-se sobre o menino, que gemia de dor. Ela tocou
vários pontos do corpo, pôs a mão na testa dele, fechou os
olhos e estendeu as mãos, palmas para baixo, sobre o corpo
retorcido. E durante todo o tempo murmurava um cântico
místico que ninguém entendia.
Finalmente abriu os olhos, endireitou-se o melhor que pôde
e declarou que o menino quebrara um tabu e que agora havia
um espírito mau nele.
Um suspiro coletivo exalou da multidão. As pessoas
mudaram de posição nervosamente e alguns até se afastaram.
Mulheres que estavam menstruadas ou amamentando
correram para dentro da proteção de suas cabanas, enquanto
os homens manuseavam nervosamente suas lanças. Uma
pessoa possuída por um mau espírito era algo apavorante,
pois o espírito podia sair voando do possuído a qualquer
momento e entrar no corpo de qualquer um que estivesse
por perto.
Opaka declarou o garoto Intocável, disse que ele estava
praticamente morto e privado da ajuda dos deuses. Depois
conferenciou com os chefes e subchefes sobre o que fazer,
certamente ele não podia continuar entre o povo. Enquanto
isso, Marimi aproximou-se da cena.
A mãe de Payat estava curvada sobre ele, soluçando e
implorando para que o mau espírito deixasse seu corpo. Dois
caçadores receberam ordens para afastá-la do garoto, pois
Opaka declarara tabu tocar nele. Enquanto a atenção de
todos estava na mulher histérica, Marimi chegou ainda mais
perto, curiosa para saber o que acontecera. Ela sabia que
devia ficar afastada, porque estava grávida e não devia ficar
na presença de uma pessoa tabu, mas nunca vira uma pessoa
possuída antes. Quando chegou mais perto, deu-se conta de
que era apenas um garotinho que se contorcia de dor e de
uma palidez chocante. Que crime terrível podia uma criança
tão pequena ter cometido, questionava ela, para merecer o
castigo de um mau espírito?
Então Marimi viu algo que os outros pareciam não ter visto
— na mão do garoto, flores amarelas esmagadas. E logo
compreendeu: a criança comera folhas de botão-de-ouro. Foi
assim que o mau espírito entrou em Payat! Todos sabiam que
o botão-de-ouro abrigava um mau espírito e que comê-lo
causava doença e morte. Se as folhas ainda estivessem em
seu estômago, imaginou Marimi com súbita percepção, seria
possível expulsar o espírito?
Sem pensar, ela avançou e, antes que qualquer um pudesse
reagir, levantou o garoto, virando-o de cabeça para baixo, e
enfiou o dedo na garganta dele. Ele começou a vomitar
imediatamente.
Os espectadores gritaram quando viram um arco de líquido
verde sair em golfadas do estômago de Payat, e, quando o
vômito fez uma poça no chão, todos exclamaram que tinha a
forma de uma besta. O mau espírito deixara o corpo do
garoto!
Imediatamente os homens correram para jogar cinzas sobre
o diabo verde, desta forma asfixiando-o antes que pudesse
encontrar outro hospedeiro.
Quando Marimi deitou o garoto gentilmente no chão, ele
gemeu e chamou pela mãe. A mulher rapidamente envolveu
Payat nos braços, soluçando e rindo ao mesmo tempo,
mantendo-o bem junto ao peito enquanto os espectadores
comentavam o milagre. Pelo que podiam lembrar, eles não
sabiam de um evento igual. Olharam para Marimi com novos
olhos, alguns com admiração, outros maravilhados, uns
poucos com cautela.
Quando Payat tossiu e abriu os olhos, e todos viram que a cor
já estava voltando ao seu rosto, eles começaram a falar ao
mesmo tempo, elevando o nome de Marimi ao céu da noite.
— Silêncio! — gritou Opalca subitamente, levantando seu
cajado, que era decorado com penas e colares.
A multidão calou. Todos os olhos estavam fixos na mulher-
xamã de cabelos brancos que, embora pequena e de
aparência frágil, era uma visão poderosa. E todos os membros
da tribo souberam, no terrível momento de silêncio que se
seguiu, que o crime mais sério que um topaa podia cometer
acabara de acontecer diante de seus olhos: uma moça
desafiara a ordem de um xamã.

Os xamãs de todos os clãs reuniram-se na cabana sagrada,
onde a fumaça mística podia ser vista espiralando pela
abertura no teto. Um ânimo sombrio caiu sobre o
acampamento. Marimi chorava, temerosa, no colo da mãe
enquanto seu jovem marido andava de um lado para o outro
na frente da cabana. Todos esperavam o veredicto.
Quando os xamãs saíram da cabana, Opaka solenemente
declarou Marimi e o garotinho excluídos. Eles estavam
mortos.
— Não! — gritou Marimi. — Nós não fizemos nada errado!
O marido de Marimi cuspiu nela e virou as costas.
Ela atirou-se aos pés da mãe, implorando ajuda. Mas sua mãe
lhe deu as costas e começou o lamento fúnebre que duraria
cinco dias e cinco noites.
Com grande cerimônia, enquanto a tribo formava um
círculo, suas costas viradas para Marimi e o garoto, Opaka os
despiu de seus nomes, suas roupas e suas posses. Eles não
teriam lanças para pegar comida ou cestos para carregar
sementes, nem peles para mantê-los aquecidos. Deviam
viver além do acampamento, além do círculo, sozinhos,
fantasmas em corpos, sem ninguém para olhar por eles ou
falar com eles, seus destinos carnais nas mãos dos deuses.

Eles estavam morrendo.
Enquanto Marimi e o garoto se sentavam desorientados à
margem do acampamento, sem cruzar a fronteira marcada
pelos talismãs de Opaka e pelos símbolos místicos que ela
talhara nos troncos das árvores, olhavam apaticamente a
dança na clareira, as mulheres tecendo seus cestos, os
homens com seus jogos de azar. As primeiras e segundas
famílias de Marimi e Payat estavam de luto. Haviam cortado
os cabelos e passado lama no peito e no rosto e não
comeriam carne durante um ciclo inteiro da lua. Todas as tias
e primas estavam proibidas de acenarem, os tios e primos
não podiam dançar, e os irmãos de Payat e o marido viúvo de
Marimi não podiam caçar durante uma lua. Nem ninguém
das famílias podia ter relação sexual, comer com membros
que não fossem da família, cruzar a sombra de Opaka ou de
qualquer outro xamã.
Por sete noites, os excluídos lutaram para sobreviver. Com
dores agudas de fome no estômago, Marimi e o garoto
conseguiram encontrar um lugar para dormir à noite, uma
cavidade no chão que Marimi forrou com folhas. Ela
aconchegou Payat contra si para compartilhar o calor, mas
ambos tremeram a noite toda, e o garoto chorou durante o
sono. Na primeira noite, Marimi fitara as estrelas, sentindo
uma estranha dormência percorrer seus membros. Não era a
perda de sua própria vida que a enchia de desespero, mas a
do filho que ainda não nascera. Pusera as mãos sobre o
abdome e sentira a vida espasmódica lá dentro. Como ela iria
nutrir-se o bastante para alimentar a criança? Se Marimi
tremesse de frio, o bebê também não tremeria? E quando
chegasse a sua hora, na primavera, ele nasceria morto pela
praga de Opaka?
Sem a saia de pele de gamo e a capa de pele de coelho, sem o
conforto da fogueira e dos cobertores de pele dentro da
cabana, Marimi fora impregnada com o frio mais intenso que
jamais pôde imaginar. Seus dedos estavam dormentes, o
sangue parecia congelado. Nunca tremera tão violentamente
como tremera quando se agarrara ao pequeno Payat, cujas
lágrimas congelavam em seu rosto enquanto ele chorava e
chamava pela mãe.
Marimi não sabia o que era pior, o frio ou o terror.
Todas as manhãs, quando o sol nascia, os xamãs dos clãs
faziam as orações apropriadas e enviavam fumaça sagrada
para o céu, espalhando sementes nos quatro pontos para
aplacar os deuses, para mostrar respeito e gratidão. Talismãs
poderosos, abençoados pelos xamãs, eram pendurados nas
entradas das cabanas das famílias para afastar o mau e a
doença. As cabanas eram construídas em forma de círculos,
o mais sagrado dos símbolos, e depois dispostas em círculo
em volta do grande terreno circular destinado à dança. Todo
o acampamento de centenas de famílias formava um círculo
até onde a vista podia alcançar, e havia segurança dentro do
círculo.
Mas Marimi e o garoto foram expulsos do círculo, forçados a
se defender sozinhos na terra hostil e perigosa, fora da
proteção dos xamãs.
Havia fantasmas por toda parte neste estranho e aterrorizante
deserto — eles viviam em solo amargo e nas sombras
ameaçadoras, eles se escondiam nas sarças e urzes, eles
pairavam nos galhos acima das cabeças, observando os
humanos desprotegidos, prontos para descerem e possuir
seus corpos. Marimi nunca estivera na floresta sozinha, fora
sempre na companhia de sua família, com os xamãs indo na
frente com suas fumaças sagradas e chocalhos para tornar o
caminho seguro. Mas agora ela estava nua e sozinha, além do
círculo, num lugar escuro onde ouvia os sussurros e o
farfalhar dos fantasmas e espíritos quando eles motejavam e
passavam rapidamente por ela, provocando, escarnecendo,
ameaçando.
E, pior do que isso, ela e o garoto foram cortados das
histórias. Eram as histórias contadas em volta das fogueiras
que conectavam os topaas; eram os mitos e histórias
recitados à noite que ligavam uma geração à outra, desde o
início dos tempos. O pai de Marimi, como todos os pais
topaas, passava adiante as histórias que aprendera em volta da
fogueira do acampamento de seu pai, onde foram aprendidas
com os pais anteriores, desde o tempo da primeira história e
do primeiro pai a contar •essa história. Mas Marimi e Payat
foram banidos das histórias e portanto de seus clãs e famílias,
para nunca mais voltarem ao abraço da tribo. Eles rondavam
a margem do acampamento, vivendo com os frutos do
zimbro e de alguns pinhões ignorados pelos ceifeiros. Mas
isso não era o bastante, de modo que Marimi e o garoto logo
ficaram fracos de fome. Dias e noites chegaram e se foram,
até não terem mais forças nem para encontrar frutos
silvestres. Marimi sabia que ela e Payat estavam agora
enfrentando a morte, e não havia xamã a quem pudessem
pedir que intercedesse junto aos deuses por eles.

Ela observou a lua por entre os galhos. Era tabu olhar
fixamente para a lua, pois este era um privilégio dos xamãs. O
clã ainda falava sobre o primo que olhara fixamente para a lua
durante tanto tempo que fora punido com ataques nos quais
espumava pela boca e debatia-se no chão. Mas a lua podia ser
generosa também. Quando a irmã mais velha de Tika não
pôde engravidar, ela presenteou Opaka com penas raras de
falcão, que entrou na tenda sagrada e suplicou à lua a
concessão de uma criança. A irmã foi abençoada com um
menino na primavera seguinte.
Sabendo que devia desviar o olhar do corpo celeste, Marimi
não conseguia. Fraca e zonza de fome, sua alma era como
uma última brasa esvaecendo entre cinzas frias, ela estava
além do medo e da preocupação. Ao deitar no pequeno
buraco, o corpo magro de Payat aninhado contra o seu, pois
dormia profundamente, Marimi manteve os olhos fixos no
círculo luminoso no céu. Sua respiração diminuiu, o coração
pulsava no peito. Os pensamentos vieram sozinhos quando,
sem perceber, ela falou silenciosamente com a lua: "O crime
foi meu. Esse menino é inocente, assim como a criança em
meu ventre. Puna somente a mim e permita que eles vivam.
Se me concederes isto, eu farei qualquer coisa que me
pedires."
A luz da lua pareceu intensificar, Marimi não piscou.
Continuou olhando através dos galhos enquanto o brilho
lunar expandia, feroz e ameaçador, até cobrir o céu inteiro.
De repente, uma dor aguda atravessou sua cabeça e Marimi
percebeu alarmada que mesmo em seu estado lamentável
ainda devia sofrer com a aflição que a perseguia desde a
infância. Era a lua punindo-a. Marimi tivera a arrogância de
falar com os deuses e agora só conheceria a dor até morrer.
Então que seja assim, pensou Marimi enquanto se entregava
ao poder da lua e caía num sono profundo que jamais
conhecera. Quando seu último pensamento consciente foi
afastado em ondas de dor, ela pensou: "Eu estou morrendo."
Mas Marimi não morreu e, enquanto dormia, seu espírito-
guia, o corvo, apareceu para ela num sonho. Ele acenou, e
enquanto voava adiante, Marimi o seguiu até chegar a uma
pequena clareira na mata onde crescia uma moita de
algodãozinho do campo.
Quando acordou ao amanhecer, apenas viva mas repleta de
uma nova e estranha compulsão, Marimi saiu com
dificuldade de sua cama de folhas e seguiu a visão em seu
sonho. Quando encontrou a pequena clareira onde o
algodãozinho do campo crescia, comeu vorazmente as raízes
amiláceas que, embora amargas, eram nutritivas. Depois
levou algumas para Payat e o persuadiu a comer.
Eles sobreviveram com algodãozinho do campo, e quando
ficaram mais fortes, Marimi e o garoto conseguiram fazer
pequenas armadilhas e suplementaram o mingau ralo com
carne de esquilo e coelho. Marimi encontrou gravetos para
fazer fogo e logo construiu um abrigo redondo com galhos e
folhas. Ela e Payat conseguiram viver longe do povoado da
colheita, sozinhos, com os fantasmas e espíritos da floresta
hostil, mas Marimi era menos medrosa que antes, porque no
momento de seu maior desespero, quando se sentiu
abandonada pelo seu povo, quando soube que ela e o garoto
estavam a um passo da morte, ela tivera uma revelação:
Marimi rezou diretamente para a lua sem a ajuda de um
xamã, e a lua respondera.

Uma noite a aflição voltou a atacar Marimi enquanto ela
dormia, enviando dores para a sua cabeça como se fantasmas
com lanças a estivessem atacando. E em sua agonia ouviu o
seu próprio guia, o corvo, instruindo-a a que seguisse Opaka.
Marimi ficou apavorada a princípio, mas como se viu forçada
a fazer o que o espírito-guia lhe determinara, de repente
percebeu que não tinha nada a temer. Ela era um fantasma e
fantasmas podiam ir a qualquer lugar que quisessem.
Portanto, era livre para espionar Opaka enquanto esta
executava sua rotina diária de trabalho.
Marimi ficou direto sob os raios de sol, completamente à
vista de Opaka, enquanto a velha mulher colhia amoras.
Toda a tribo sabia que os pajés usavam os frutos e as folhas da
amora vermelha na manufatura de adstringentes,
estimulantes e tônicos, e nos chás e xaropes para curar
diarréia e disenteria, ferida gangrenada e garganta inflamada.
Embora todos pudessem colher amoras, o que as pessoas não
sabiam era o modo certo de colher a planta, o tempo
propício, as orações certas para recitar durante a colheita,
pois sem isso a planta não tinha poder.
Marimi observou descaradamente como Opaka abordava a
planta antes de colhê-la, as palavras de respeito que dizia, os
sinais sagrados que desenhava no ar com os colares e penas.
E, quando Opaka rejeitava a planta depois de retirá-la do
chão, Marimi viu que as raízes estavam quebradas, o que
significava que perdera seu poder espiritual. Gomo Opaka
fazia a maior parte de sua colheita à noite, Marimi
memorizou as fases da lua, da posição das estrelas, da
quantidade de orvalho sobre as folhas.
Marimi também ouviu quando Opaka instruiu a neta de sua
irmã no que diz respeito a ervas e remédios, mostrando à
menina como envelhecer a casca do amieiro primeiro antes
de fervê-la, pois a casca verde causava vômito e dores de
estômago, e como deixar em decocção por três dias até que a
cor amarela ficasse preta. Quando administrado durante a lua
cheia, dissera Opaka à neta de sua irmã, o chá de amieiro
fortalece o estômago e estimula o apetite. Os frutos também
fazem excelentes vermífugos para crianças.
As vezes quando Opaka deixava sua cabana, que ficava à
parte e isolada do resto do acampamento, Marimi entrava
nela para ver o que a mulher-xamã estava fazendo com as
plantas que colhia. Foi assim que Marimi aprendeu o segredo
da casca interna do olmo, que Marimi vira Opaka colher e
pôr para secar. Perto da casca, sobre uma pele de gamo, havia
um pilão e uma pedra com um pouco da casca já trans-
formada em um pó fino. Numa corda secavam supositórios
de olmo os quais Marimi sabia que seriam usados na vagina
para problemas femininos e no reto para problemas
intestinais.
Durante o longo inverno, enquanto o bebê crescia sob o seu
coração, Marimi guardou na memória tudo o que observou e
ouviu. Os terrores da floresta estavam sempre a sua volta,
ameaçando, escondendo-se, mantendo-a alerta para com os
fantasmas maldosos, enquanto ela procurava proteger a si
mesma e a Payat de serem possuídos por um mau espírito.
Mas Marimi sentiu uma força interior crescendo dentro dela,
e uma certeza de propósito e conhecimento. A lua a salvara
por alguma razão, e então ela continuou sua barganha com a
lua. Sempre que Marimi chegava a um lago recoberto por
folhas de modo que o reflexo da lua não pudesse ser visto,
retirava as folhas da superfície, permitindo que a lua brilhasse
orgulhosa e linda sobre a água. E quando encontrava flores
noturnas desabrochando na floresta, como a prímula,
retirava os galhos de cima de modo que a lua tivesse uma
vista desobstruída das lindas flores se abrindo para ela.
Foi assim que eles sobreviveram, a moça resoluta e o
confiante garoto, enquanto rondavam pela borda do
acampamento sem nunca se atrever a atravessar o círculo.
Marimi não se preocupava com o futuro, porque os topaas
nunca se preocuparam com ele. Havia o dia de hoje e os
tempos passados, mas o amanhã era um conceito vago e
enigmático, já que o amanhã acabava sempre se tornando o
hoje. Ela desejou poder consultar um xamã sobre o que fazer
quando a primavera chegasse — ela e Payat deviam
permanecer na floresta ou deviam procurar casas de verão
perto de suas famílias? O que os mortos-vivos faziam? E
como aprendiam a ser fantasmas? Quando Marimi e Payat
foram expulsos, não havia ninguém do outro lado para
ensiná-los. Marimi e o garoto deviam ter morrido, mas
Marimi rezara para a lua e a lua lhes mostrara como
sobreviver. Será que haviam quebrado mais tabus tribais não
morrendo?
Marimi era muito jovem para ponderar por muito tempo
sobre as questões complexas que a atormentavam. E assim
ela as deixou de lado, preferindo enfrentar cada novo
amanhecer com a tarefa básica de sobreviver por mais um
dia e deixando os mistérios da vida e da morte para os xamãs.
E então chegou o dia em que ela aprendeu o seu verdadeiro
poder. Depois de passar semanas sendo assombrada por
Marimi, Opaka ficou cada vez mais prudente e nervosa,
saindo cautelosamente de sua cabana ou entrando na floresta
com apreensão, olhando de um lado para o outro em busca
da moça. Suas mãos velhas começaram a tremer, sua calma
diminuiu, sua aflição aumentava a cada dia. Ela não devia
reconhecer a criatura e no entanto a criatura a estava sempre
vigiando, fatigando seus nervos envelhecidos. Por fim,
incapaz de agüentar por mais tempo, um dia Opaka
surpreendeu Marimi no riacho, rodopiando e bramindo em
sua volta, chocalhando seus bastões sagrados e entoando
cânticos numa língua desconhecida por Marimi.
Marimi manteve-se firme, alta e orgulhosa, sua barriga
protuberante como um testemunho de sua força vital e da
poderosa força de vontade que a preservara da morte. A
velha mulher caiu em silêncio e seus olhos se encontraram.
Até a floresta ficou em silêncio, como se os espíritos e
fantasmas, os pássaros e pequenos animais estivessem cientes
de que um momento decisivo e extraordinário fora alcança-
do. Finalmente, Opaka desviou os olhos, afastando-se da
moça-fantasma que se recusara a morrer, e desapareceu entre
as árvores.

Finalmente chegou uma manhã em que a luz penetrante do
sol perfurou os olhos de Marimi como uma faca, aguda e
veloz. Ela deitou-se imobilizada, envolta em agonia, mas
através da dor veio uma visão — seu espírito-guia, o corvo,
pousado num galho, piscando seu astuto olho negro para ela.
E desta vez ela o ouviu sussurrar: "Siga-me."
Marimi juntou as ervas e plantas que colhera durante a
temporada na terra dos mortos, e as sacolas de pele de coelho
que fizera e enchera com sementes, folhas e raízes. Ela
segurou a mão de Payat e disse:
— Nós estamos deixando este lugar.
Cheia de uma nova e estranha resolução e não mais com
medo das leis e tabus da tribo, ela foi até a cabana de sua
família, onde todos ainda dormiam, e pegou suas coisas, que
sua mãe ainda não havia enterrado. Marimi agachou-se perto
da mãe que dormia e, espantada com o quanto estava
envelhecida e desgastada pelo longo período de luto, chegou
mais perto e sussurrou:
— Não lamente mais por mim. Eu vou seguir meu corvo.
Meu destino não pertence mais a esta família. Não poderei
mais voltar, mãe, mas a levarei em meu coração. E sempre
que vir um corvo, pare e escute o que ele diz, pois ele poderá
estar trazendo uma mensagem minha. A mensagem será
esta: "Estou segura. Estou contente. Encontrei meu destino."
Ela saiu, usando sua melhor roupa: uma saia longa de pele de
gamo e uma capa de pele de coelho sobre os ombros,
sandálias de palha nos pés. Enrolados em suas costas estavam
a esteira que ela mesma tecera com tabua e o cobertor de
pele de coelho, e o fundo do berço que tecera para a criança
que nasceria na primavera. Ela levou um cesto para colher
sementes, uma lança e uma atiradeira, ferramentas para fazer
fogo, e sacolas contendo ervas medicinais. Desta forma,
compreendeu por que o corvo a instruíra a seguir Opaka e
aprender os ensinamentos da curandeira. Era para preparar
Marimi para sua grande jornada.
Os topaas podiam percorrer longas e amplas distâncias em
sua eterna busca por comida, mas havia limites e todos
aprenderam desde o início que "a terra do outro lado"
pertencia aos ancestrais de outras tribos e portanto os topaas
estavam proibidos de ir até lá. Mas Marimi percebeu,
enquanto ela e Payat seguiam o corvo que voava à frente
deles, que seriam guiados, pela primeira vez na história de
seu povo, para dentro de território proibido.
Eles andaram o dia todo, e quando chegaram na fronteira
mais a oeste do território topaa, Marimi aproximou-se do
escarpamento com medo e cuidado porque esta era uma
terra nova, onde nenhum topaa jamais pisara, com pedras e
plantas desconhecidas e, portanto, espíritos desconhecidos.
Ela olhou para o vale deserto estendendo-se para o
horizonte. Marimi não conhecia as leis do lugar, os tabus,
sabia que devia ter cuidado com cada passo, pois podia
ofender acidentalmente um dos espíritos. Quando estava
prestes a dar o primeiro passo na descida do escarpamento,
disse:
— Espíritos deste lugar, não queremos o seu mal, não
queremos desrespeitá-los. Nós viemos com paz em nossos
corações.
Agarrando com firmeza a mão do garoto, Marimi levantou o
pé direito e o colocou resolutamente sobre o solo proibido.
Payat começou a chorar. Ele puxava a mão de Marimi
apontando para o lugar de onde tinham vindo, chorando pela
mãe.
Mas Marimi pegou-o pelos ombros e, olhando bem fundo
naqueles olhos infantis, disse:
— Não podemos voltar, pequenino. Nunca mais poderemos
voltar. Sou a sua mãe agora. Sou a sua mãe.
Afastando as lágrimas, Payat colocou sua pequena mão na de
Marimi e disse:
— Aonde vamos?
E ela apontou na direção do sol, uma enorme bola vermelha
no céu do oeste, seu guia, o corvo, delineado nitidamente
contra ele.

Payat notou os abutres primeiro, circulando no alto.
— Por que o Corvo não nos leva até a água? — perguntou ele,
os lábios rachados e secos.
— Não sei — respondeu Marimi, ofegante pelo esforço de
carregar o garoto nas costas. Ele estava muito fraco para
andar. — Talvez ele esteja procurando.
— Aqueles pássaros querem nos comer — disse Payat,
referindo-se aos abutres.
— Eles estão apenas curiosos. Nós somos estranhos na terra
deles. Não querem nos machucar — disse Marimi ao garoto.
Era só uma pequena mentira, o bastante para confortar o
garoto.
Marimi e Payat percorreram uma grande distância, durante
muitos dias e noites, ao longo de rochedos duros e
recortados e através de cânions profundos, atravessando
campos de grandes pedras e vastas planícies de areia onde
viram cactos maiores do que um homem, sempre seguindo o
corvo, que voava para o oeste.
A cada anoitecer o corvo parava para descansar — numa
pedra, cacto ou árvore —, e Marimi e o garoto acampavam,
para acordarem na manhã seguinte e seguirem o corvo
novamente em seu vôo rumo ao oeste. Para onde o Corvo os
levava? Eles se juntariam a outro povo? Marimi estava
preocupada, porque o seu filho devia nascer logo e era
impensável que ele nascesse sem a assistência de um xamã
para pedir as bênçãos dos deuses. Como seu bebê receberia a
proteção e a beneficência dos deuses sem um xamã para
interceder em seu favor?
Durante a longa jornada Marimi e Payat sobreviveram com
grãos de algarobeira, ameixa selvagem, tâmaras e botões de
cactos. Quando a caça era boa, eles se banqueteavam com
um ensopado de coelho , com cebolas selvagens e pistácio.
Para matar a sede, quando não podiam encontrar um riacho
ou nascente, chupavam o caule grosso da figueira-da-índia,
que era cheio de água.
Onde quer que andassem, eles mostravam formalidade para
com a terra. Todas as coisas eram tratadas com respeito e
ritual. Retirar qualquer parte de uma árvore, matar um
animal, usar uma nascente ou entrar numa caverna era
precedido de cerimônia, embora simples, na forma de um
pedido ou reconhecimento. "Espírito na nascente", dizia
Marimi. "Peço perdão por pegar sua água. Que todos nós
completemos o círculo da vida que nos foi dado pelo Criador
de Tudo." Também fazia armadilhas com iscas e, enquanto
ela e o garoto se escondiam atrás das pedras, beijava a costa
da mão produzindo um estalido que atraía os pássaros.
Quando pegavam pequenas caças dessa forma, desculpava-se
com o animal e pedia que seu espírito não se vingasse deles.
Certa vez, quando o chão rugiu e estremeceu tão
poderosamente que ela e Payat foram jogados ao chão,
Marimi tremeu de terror até retroceder seus passos e
descobrir a causa do terremoto. Havia esmagado sem querer
a toca de uma tartaruga. Ela implorou o perdão do
Antepassado Tartaruga e limpou a entrada da casa do réptil.
Marimi nunca esquecia sua dívida para com a lua. Quando
ela e Payat tinham uma refeição, nunca comiam tudo.
Deixavam um pouco para trás e o ofereciam à deusa que os
salvara.
Ocasionalmente eles se deparavam com evidências de que
pessoas ocuparam um lugar recentemente — pedras
escurecidas, ossos de animais, cascas de castanhas. Mas às
vezes as evidências eram muito antigas, quando se
deparavam com petróglifos que pareciam ter sido esculpidos
na rocha no início dos tempos. Marimi sentia os fantasmas
dessas pessoas em torno deles, quando ela e Payat
atravessavam a paisagem estrangeira, sobre a areia quente,
dentro e fora das sombras das grandes tamareiras. Ela
imaginava o que os fantasmas pensavam desses estranhos
intrusos viajando por suas terras ancestrais e sempre lhes
pedia perdão, assegurando-lhes que ela e Payat não ten-
cionavam desrespeitá-los.
A lua morrera e se renovara cinco vezes desde a noite em
que Marimi rezou para ela, e naquele momento Marimi
olhara para a lua e ficara maravilhada com o seu poder. Só a
lua podia morrer e renascer num interminável ciclo de
morte e nascimento, e só a lua derrama luz durante a noite
quando é preciso, enquanto o sol derrama sua luz durante o
dia quando não é preciso. E quando ela andava no clarão da
lua, apesar dos fardos que carregava nas costas e dentro do
corpo, Marimi sentia seus passos se alargarem, sentia o poder
da lua fluindo em suas veias. A cada passo, sua força crescia.
E enquanto viajava sempre para o oeste através da expansão
sem fim, deixava o pensamento voar até as estrelas, pairar
por lá e retornar com novo conhecimento. Marimi sabia de
algo que seu povo nunca soube: que um indivíduo podia
rezar diretamente para os deuses sem a intervenção de um
xamã. Ela também aprendera que o mundo não era
necessariamente um lugar maléfico, como os topaas
acreditavam. Havia espíritos em toda parte seguramente, mas
eles não eram todos maus. Havia aqueles que podiam ser
amistosos e a quem se podia pedir ajuda e orientação, como
os pássaros que circulavam o céu ao pôr-do-sol, indicando
uma nascente abaixo. Enquanto os xamãs dos topaas
ensinaram ao povo que só o medo garantia a sobrevivência,
Marimi aprendeu durante sua longa jornada entre as grandes
pedras silenciosas e os cactos, os furtivos coiotes e as lentas
tartarugas, que o respeito mútuo e a confiança também
garantiam a sobrevivência.
Quando Marimi viu com que maravilha a lua iluminou a
paisagem do deserto à noite para iluminar seu caminho,
admirou-se de como os topaas podiam acreditar que ela fosse
uma deusa raivosa e temível. Não só era tabu olhar para a lua,
mas também as pessoas tinham medo dela por causa de seu
tremendo poder sobre o sangue menstrual, ciclos de
nascimento e dos sombrios mistérios das mulheres. Da
mesma forma, os topaas temiam o sol porque ele queimava a
pele e causava incêndios e secas e estava sempre raivoso, só
sendo aplacado pela intercessão das orações dos xamãs. Mas
Marimi e Payat aprenderam a amar a sensação do calor do sol
em seus membros nas manhãs e observaram como as flores
viravam suas faces para seguir a trajetória do sol pelo céu.
Marimi compreendeu que o que o seu povo temia podia
também ser amado e começou a considerar o sol como um
pai, severo mas benevolente, e a lua como uma mãe, gentil e
amorosa.
Mas agora eles estavam numa terra onde não havia água,
nem frutos ou sementes, e os únicos arbustos eram amargos
e secos. Mesmo os pequenos animais não saíam de suas
tocas. Marimi estava carregando o garoto nas costas, e, como
suas sandálias haviam desintegrado há muito tempo, seus pés
estavam cortados e sangrando. Eles chupavam seixos para
afugentar a sede. Paravam nos leitos secos dos rios, que, com
freqüência, tinham água logo abaixo da superfície, afundando
no ponto mais baixo do lado de fora de uma curvatura no ca-
nal enquanto o rio secava, e era ao longo dessas curvaturas
que ela cavava por água. Mas não conseguia encontrar nada.
Finalmente tiveram que parar, Marimi colocando Payat na
areia e depois se espreguiçando. Seu bebê estava agitado,
como se ele também estivesse com sede, e quando ela
procurou o corvo não conseguiu localizá-lo.
Seu espírito-guia os teria abandonado neste deserto
implacável? Teriam ela e Payat ofendido sem querer um
espírito em alguma parte da jornada, quem sabe perturbando
um ninho de cobra ou não mostrando bastante gratidão
quando ela cortou a última figueira-da-índia que
encontraram?
Protegendo os olhos do sol, ela vasculhou a paisagem estéril,
onde só cresciam plantas secas e mirradas, e um vento seco
sussurrou lutuoso sobre a areia. À distância ela viu ondas
prateadas subindo cintilantes da argila dura, mas já aprendera
que não era água e sim um truque usado pelos espíritos do
deserto. Finalmente, olhou para o bravio Pai Sol. Era para ele
que devia rezar, compreendeu ela, pois a lua estava
dormindo.
Mas, quando Marimi levantou os braços e procurou as
palavras certas, foi subitamente acometida pela dor de
cabeça, fazendo-a cair de joelhos e pressionar as mãos sobre
os olhos. Enquanto a dor a arrebatava, teve a visão de uma
criança perdida, presa entre as pedras. Marimi viu a cena do
céu, como se a visse pelos olhos de um pássaro. E depois viu
pessoas procurando pela criança, mas no lugar errado, e
afastando-se mais dela na busca.
Quando a dor cedeu, falou com urgência a Payat:
— O Corvo me guiou até um garoto perdido. Precisamos
achá- lo antes que os abutres façam um banquete dele.
Eles encontraram o garoto, inconsciente e desidratado mas
ainda vivo, dentro do leito de um riacho seco e rochoso.
— Oh, pobre garoto, pobrezinho — murmurou Marimi
enquanto se ajoelhava a seu lado. — Olhe, Payat, está vendo
como o pé dele está preso?
O tornozelo da criança estava em carne viva, e as pedras
estavam manchadas onde ele agarrara para se soltar.
Marimi sentou-se nos calcanhares e ficou ouvindo. Ela
levantou o nariz para o ar e farejou. Depois fechou os olhos e
chamou a visão que o corvo lhe mostrara do ar.
— Há um riacho — disse ela a Payat. E apontou por entre as
grandes pedras.
Marimi saciou sua sede e a de Payat, e depois levou água para
o garoto, gotejando-a entre os lábios dele. Colheu um pouco
de hera ao longo da encosta e enrolou as folhas frescas em
volta do tornozelo da criança. Havia peixe no riacho, que
Payat pescou com um cesto, e os três comeram bem naquela
noite perto de uma fogueira que queimou tão vivamente
como uma lua cheia.
No dia seguinte, o garoto, já recuperado da experiência
penosa, disse que seu nome era Wanchem, mas que não
sabia qual era o seu clã ou o nome de sua família, nem a
direção do lugar em que vivia. Enquanto Marimi pensava em
como devolvê-lo ao seu povo, ela viu que o corvo a estava
chamando novamente, circulando impacientemente no céu.
Marimi não tinha escolha a não ser segui-lo. E então,
colocando nos ombros o cesto e o cobertor, agarrando a
lança e escanchando Wanchem no quadril, com Payat ao seu
lado, ela seguiu adiante mais uma vez rumo ao sol poente.

Chegaram por fim à borda oeste do deserto, onde montanhas
íngremes se elevavam abruptas e pontiagudas. Marimi
encontrou uma passagem entre as montanhas, e depois de
dias de privação o trio emergiu do outro lado para encontrar
uma exuberante planície à frente deles. Uma planície verde
como nunca tinham visto, salpicada de árvores até onde os
olhos podiam enxergar, com riachos, lagos e colinas suaves.
Quando desceram para o vale, encontraram o rastro de um
antigo animal e, sabendo que os levaria à comida e água,
seguiram-no. E, de fato, ao longo do caminho eles toparam
com árvores carregadas de frutos e castanhas, e rios com
peixes e água clara. Marimi queria parar e dizer: Aqui é a
nossa casa. Mas o corvo continuou voando para oeste, e
Marimi o seguiu sem questionar.
Eles prosseguiram ao longo do rastro através de clareiras e
campos abertos, passaram por pântanos e grandes lagos com
uma substância negra que borbulhava na superfície e feria o
nariz com mau cheiro. Para oeste o trio continuou,
encontrando algumas pessoas ao longo do caminho que eram
amigáveis, mas falavam uma língua desconhecida para
Marimi. Essas pessoas moravam em cabanas redondas e
compartilhavam suas comidas com os viajantes. Marimi
parava ocasionalmente para cuidar de uma criança ou velho
doente, e para compartilhar as ervas medicinais que
carregava.
E então o ar começou a mudar e era diferente de tudo o que
ela e Payat já haviam inalado. O ar era fresco e frio e cheirava
a sal. Quando Marimi viu ao longe as montanhas verdes,
sentiu-se invadida pela sensação de ter chegado ao fim. Logo,
assegurou ela a Payat e a Wanchem, o Corvo pararia para o
seu descanso final.

Quando se aproximaram dos contrafortes das montanhas
verdes, nuvens escuras avolumavam-se no céu. Um vento
soprou, fustigando o Corvo e o impedindo de progredir. Ele
ficou circulando e circulando no céu, enquanto Marimi
abraçava os dois garotos, colocando o cobertor de pele de
coelho em volta deles. Quando a tempestade começou, eles
se abrigaram sob um grande carvalho e olhavam com medo
enquanto os rios transbordavam e abriam sulcos e ravinas,
ameaçando carregar os três humanos apavorados. Olharam
aterrorizados os rochedos se partirem, despencando em
grandes avalanches de lama. O vento rugia e a tempestade
agitava o robusto carvalho. Marimi não conseguia mais ver o
corvo e imaginava com terror se ela e os garotos haviam
quebrado um tabu e agora estavam sendo punidos.
E então suas dores de parto começaram.
Deixando os garotos embaixo da árvore, ela entrou na
tempestade para procurar um abrigo. Cega pela chuva,
escorregava e tropeçava em pedras e moitas, procurando na
base das montanhas algum lugar seco e fora da tempestade.
Por fim, através da torrente, vislumbrou o contorno do
pássaro preto, planando suavemente no ar e na chuva,
atraindo-a para um elevado monte de pedras. Neste lugar o
Corvo empoleirou-se, sacudindo as penas e piscando para ela
numa comunicação silenciosa. Marimi explorou em volta das
pedras, escorregando e deslizando no chão encharcado, e
descobriu que as grandes pedras escondiam a entrada de uma
ravina. Avançando pelo pequeno cânion, piscou e viu a
entrada de uma caverna, onde ela e os garotos podiam ficar
aquecidos e secos e protegidos da tempestade. Mais tarde,
depois que o bebê nascesse e suas forças voltassem, Marimi
voltaria às grandes pedras e entalharia dois petróglifos na
rocha: o símbolo do corvo, em gratidão por tê-la guiado até
lá, e um símbolo para a lua, por ter atendido suas preces.

Marimi não ficou surpresa quando deu à luz duas meninas.
Ela vinha de uma longa linhagem de mulheres que davam à
luz apenas filhas. Quando as forças de Marimi retornaram, o
corvo voou para o topo do rochedo, com Marimi e seus
bebês, Wanchem e Payat seguindo atrás. Lá eles subiram à
crista e ficaram imóveis por muito tempo.
Tinham chegado à beira do mundo, pois diante deles
descortinava- se a maior extensão de água que Marimi já vira.
Lá estava a terra dos mortos, pensou ela, o lugar para onde os
topaas iam depois de morrerem. Era comovente em sua
majestade.
O corvo pousara para descansar num carvalho. Trazia algo no
bico, que deixou cair, antes de voar para sempre. Era uma
estranha e maravilhosa pedra que Marimi apanhou,
perfeitamente redonda e lisa, preto-azulada como uma pena
de corvo. Quando fechou os dedos em sua volta, sentiu no
objeto o poder do espírito do corvo.
Marimi olhou novamente para a vastidão de água azul-clara e
viu, perto da praia distante, altas e finas colunas de fumaça de
fogareiros. Disse então aos dois garotos e aos bebês em seus
braços:
— Nós não vamos ao encontro desse povo, pois eles terão
leis, costumes e tabus diferentes dos nossos. Nós fomos
excluídos e agora seremos nosso próprio povo. Este lugar é a
nossa casa agora. Nós o chamaremos de Lugar do Povo —
disse ela, juntando as palavras em sua língua: topaa,
significando "o povo", e ngna, significando "o lugar de".

Eles deixaram de viver na caverna em Topaa-ngna e
mudaram para a planície pantanosa no interior da costa, não
muito distante dos contrafortes. Construíram abrigos
redondos, caçavam pequenos animais e iam às montanhas
uma vez por ano para colher glandes. Marimi visitava a
caverna sempre que buscava conselho do corvo e da lua. Ela
sentia o dom do espírito descer sobre ela e quase cega subia o
pequeno cânion, a cabeça estourando de dor. E lá ela se
sentava no escuro enquanto as visões vinham até ela. Desta
forma, as leis de sua nova família lhe foram dadas.
Marimi entendia a importância vital de uma pessoa saber
qual era o seu clã, segunda família e primeira família. Porque,
se uma pessoa não soubesse disso, ela poderia violar um tabu
sem saber. Então tratou de construir a linhagem de
Wanchem. Como o corvo a levara até ele, ela decidiu que ele
era do clã corvo. Sua segunda família era o povo que vivia
com os cactos. E sua primeira família era a nova família de
Marimi: "povo que come glandes".
A pequena família prosperou e cresceu. Em seu quarto
inverno nas montanhas a neve caiu, cobrindo todos os
galhos e riachos. Um caçador de urso, tendo se perdido,
procurou abrigo na caverna de Marimi, onde ela o
encontrou. Ele ficou com a família até a primavera, depois
continuou seu caminho. No verão, Marimi deu à luz os
bebês do caçador, outro par de gêmeas.
Quando as crianças cresceram e logo atingiram a fase adulta,
Marimi começou a se preocupar com tabus e laços de
família. As regras não eram dela, mas decretadas pelos deuses
desde o começo dos tempos: que irmão não devia se casar
com irmã, nem primos em primeiro grau por parte de mãe se
casarem entre si. Se essas regras fossem quebradas, a tribo
poderia adoecer e morrer. Mas Marimi sabia que primos em
primeiro grau por parte de mãe podiam se casar com primos
em primeiro grau por parte de pai, então o que a família
precisava era de sangue novo. Ela entrou na caverna em
busca de conselho e o corvo lhe disse para encontrar um
marido na tribo vizinha e trazê-lo para casa.
Levando sua lança e um cesto de glandes, Marimi viajou
rumo a leste para uma aldeia pela qual passara estações atrás.
Lá ofereceu colares de concha, que eram altamente
valorizados, e prometeu ao novo marido fartura de glandes e
pesca. Mas ele devia aceitar os costumes topaas, disse ela, e
tornar-se um deles. A família dele concordou que era uma
coisa boa ter laços com a tribo costeira, que era rica em pele
de lontra e carne de baleia. O marido escolhido era do clã
veado, povo que vive no chão que treme, "habitantes do
pântano". Agora ele se juntava ao "povo que come glandes".
Quando as primeiras filhas de Marimi entraram na
feminilidade, elas se casaram com Payat e Wanchem. Uma
das filhas do caçador também se casou com Payat, porque
Marimi fizera dele o chefe da pequena tribo, e o chefe podia
ter mais de uma esposa. A segunda filha do caçador
encontrou um marido; era um viajante do leste, que viera em
busca de outras peles e decidira ficar. O marido de Marimi do
clã veado deu a ela três filhos e quatro filhas, que no tempo
devido se casaram e aumentaram a tribo.
Enquanto as estações vinham e iam, Marimi ensinou suas
filhas e netas a tecer cestos, a entoar cânticos e canções para
dar vida aos cestos e, por isso mesmo, insuflar-lhes espírito.
Ensinou aos mais jovens as regras e tabus dos topaas: que
quando os gafanhotos e grilos eram escassos, eles não deviam
ser comidos; durante a colheita das glandes, devia-se deixar
algumas para assegurar uma colheita generosa da próxima
vez; um marido não dormia com a esposa durante os cinco
dias de sua lua; o caçador não podia comer da carne que ele
mesmo trouxesse, mas sim da carne trazida por outro
caçador. Porque sem regras e sem conhecer os tabus, dizia
ela, uma pessoa não sabia como conduzir sua vida. Os topaas
sabiam pela natureza que havia regras: gatos não se
acasalavam com cachorros, veados não comiam carne, a
coruja só caçava à noite. Assim como os animais viviam de
acordo com as regras, os topaas também deviam viver.
Num outono uma praga atacou os carvalhos e as glandes
despencaram como cinzas e os animais pequenos
desapareceram da terra, de modo que nem um esquilo podia
ser assado no fogo. A família começou a passar fome e
Marimi lembrou de como certa vez rezara para a lua pedindo
ajuda. Ela então rezou novamente, com grande respeito,
prometendo gratidão em retorno. E um milagre aconteceu:
na noite seguinte, peixes foram lançados à praia, vivos e
pulando, e Marimi enviou todos para a praia com cestos para
pegar os peixes vivos, que depois de secos forneceram
bastante comida até à primavera, quando os frutos e
sementes apareceram em profusão. Como gratidão, da
próxima vez que os peixes encalharam na praia, Marimi fez
os filhos jogarem um certo número de volta, dizendo-lhes
que o que tiramos dos deuses devemos devolver aos deuses.
Marimi ensinou à sua família a importância de contar
histórias, como as histórias deviam ser transmitidas para que
o clã conhecesse sua história e os ancestrais fossem
lembrados. E assim, todas as noites em volta da fogueira, ela
contava a eles como o mundo foi criado, como os topaas
foram criados, contava histórias dos deuses, e as fábulas que
ensinavam lições. Disse-lhes como deviam rezar respeito-
samente para o Pai Sol e a Mãe Lua, que os topaas eram as
crianças dos deuses e que não precisavam de xamãs para falar
em nome deles. Como todos os pais, o sol e a lua gostavam
de ouvir as vozes de seus filhos, mas só se eles fossem
respeitosos, obedientes e prometessem ser reverentes. Em
tais condições, os deuses protegiam seus filhos e
providenciavam o bem para eles.
De tempos em tempos, enquanto os anos passavam, Marimi
fazia uma pausa em seu trabalho e olhava para o leste, onde
um pequeno sol amarelo despontava sobre os picos, e
pensava em sua mãe e no clã, e sentia uma dor especial no
coração.

Quando os cabelos de Marimi estavam brancos como a neve
que trouxera o caçador de urso há muito tempo, e ela sabia
que logo faria a jornada a oeste do oceano para juntar-se aos
ancestrais, passava todos os dias na caverna, misturando
tintas: vermelho, da casca do amieiro; preto, do sabugueiro;
amarelo, do botão-de-ouro; púrpura, dos girassóis. Com elas
Marimi registrou com esmero sua jornada pelo Grande
Deserto em pictogramas na parede da caverna de modo que
os futuros topaas viessem a conhecer a história de sua tribo.
Finalmente, ela se deitou, moribunda, rodeada pela família.
Embora fossem agora nove famílias de cinco tribos e quatro
clãs, e irmãos de um grupo se casaram com irmãs de outro, e
estranhos que vieram para casar com filhas adicionais,
basicamente a geração mais jovem eram todos descendentes
de Marimi. Ela os ensinara a caçar e colher castanhas, a tecer
cestos e cantar as canções de seus ancestrais, a reverenciar a
Mãe Lua, e a viver em harmonia com os espíritos que
habitavam cada animal, pedra e árvore. Ela lhes disse que
nunca esquecessem que eram topaas.
Payat estava lá, agora um avô, e sorriu com tristeza quando
Marimi pousou a mão na sua em ação de graças.
— Lembre-se — disse ela. — Não haverá excluídos em
minha família, não haverá mortos-vivos como você e eu
fomos uma vez. Ensine nosso povo a não viver com medo e
desamparados como nós vivemos uma vez, mas com amor e
paz.
E acrescentou:
— E lembre-se de contar às crianças nossa história, sobre
nossa jornada do leste, sobre como fizemos a terra tremer
quando pisamos na toca do Antepassado Tartaruga, como
encontramos Wanchem perto do riacho mágico, como a
Mãe Lua nos protegeu e iluminou nosso caminho. Ensine
nossas crianças a lembrar dessas histórias e a contá-las a seus
filhos, para que os topaas nas gerações futuras saibam de seu
começo.
Marimi então chamou sua bisneta, que desde a infância
sofrera de dores de cabeça lancinantes e visões, as quais
Marimi não via mais como uma aflição mas como uma
bênção, e colocou a mão sobre a cabeça da garota, dizendo:
— Os deuses escolheram você, minha filha. Eles lhe deram o
dom do espírito. Então agora eu lhe dou meu nome, pois vou
me juntar aos nossos ancestrais, e ao receber o meu nome
você se transformará em mim, Marimi, a curandeira do clã.
Eles a enterraram com grande cerimônia na caverna em
Topaa-ngna, enviando seu espírito para o oeste com sacolas
de remédios, sua atiradeira, seus grampos de cabelo e
brincos. Mas mantiveram a pedra sagrada do espírito do
corvo, pendurando-a no pescoço da garota escolhida, agora
chamada Marimi, que seria a curandeira do clã e cuja
obrigação seria tomar conta da caverna da Primeira Mãe pelo
resto de sua vida.

Capítulo Três

Seu nome é Anda Com O Sol e estava com um grupo de
caçadores; você se afastou muito e se perdeu, então se
instalou aqui e fez deste lugar sua casa.
Não, pensou Érica, enquanto estudava as fotografias que
tirara do esqueleto na caverna. Esta mulher nunca se
perderia.
Você é a Mulher Foca e veio velejando do noroeste em uma
longa canoa, você e seu amante fugindo dos tabus tribais que
proibiam seu casamento.
Ou você veio das ilhas do extremo oeste, há muito afundadas
no mar, e recebeu o nome de uma deusa.
Puxando o cavalete do nariz com o polegar e o indicador,
Érica afastou o tronco da mesa e espreguiçou-se, girando a
cabeça e sacudindo os ombros para livrar-se da rigidez. Ela
olhou para o tempo. Para onde voaram as horas?
Ao pegar o café frio, notou a bagunça amontoada sobre a
bancada — artefatos esperando para serem examinados,
rotulados e catalogados. Érica estava no trailer que fora
convertido num laboratório cheio de equipamentos
científicos, microscópios, bancos altos e um quadro de avisos
cheio de alfinetes, notas e desenhos. Começara anoitecer e
ela estivera classificando as últimas descobertas do dia. Era a
única pessoa no laboratório; todos os outros ou ainda
estavam jantando na tenda da cafeteria ou batendo papo pelo
acampamento.
Quando Érica descobrira o crânio no chão da caverna, Sam
Cárter a autorizou a começar uma escavação completa. Eles
receberam da Agência de Preservação do Meio Ambiente
permissão para prosseguir, e, na qualidade de diretor de
campo, Sam deu a Érica a honra de conduzir o trabalho
manual, apesar das críticas tanto de dentro quanto de fora do
Instituto Arqueológico do Estado. Mas ele a prevenira:
— Seja objetiva, Érica. Depois do constrangimento do
naufrágio de Chadwick, existem aqueles que a querem longe
disto. Mas você é uma boa antropóloga e eu não acho que
sua carreira deva ser prejudicada por causa de um erro
impulsivo.
Prometendo ser cautelosa, Érica abordara o trabalho com seu
vigor característico e exuberante, começando imediatamente
a marcar o chão da caverna com estacas e barbante, e depois
a raspar meticulosamente o chão com a borda da colher de
pedreiro, reprimindo sua ânsia de mergulhar nas camadas do
solo e descobrir as riquezas históricas debaixo delas. A terra
retirada era colocada em baldes e emborcada ao lado, onde os
voluntários a peneiravam em busca de material arqueológico.
Do lado de fora da caverna, o trabalho barulhento dos
arqueólogos, engenheiros e especialistas em solo era levado a
sério em Emerald Hills Drive.
E Jared Black, é claro, tinha o seu trabalho.
Eles estavam numa corrida. A tarefa de Jared era localizar o
descendente mais provável o mais rápido possível e depois
entregar a caverna e seu conteúdo à pessoa ou tribo. Logo
que isso acontecesse, Érica pressentia que ficaria sem
trabalho. Ela era anglo, e uma vez que a caverna fora
propriedade dos americanos nativos eles iriam querer sua
própria gente nos trabalhos, possivelmente até suspendendo
a escavação e lacrando a caverna. E assim Érica trabalhava
longas e duras horas, desesperada para decifrar os mistérios
da caverna antes que Jared Black alcançasse seu objetivo.
O primeiro visitante que ele levou à caverna foi o chefe
Antonio Rivera da tribo dos gabrielinos. Ele estava lá para, se
possível, identificar a pintura e assim permitir que Jared
desse a partida para os trâmites legais. Como o visitante era
de idade avançada, foi baixado à caverna numa cadeira e,
enquanto examinava com atenção os pictogramas, Érica
fizera uma pausa em seu trabalho para observá-lo. O rosto
mapeado com milhões de rugas e vincos, acobreado e
castigado pelo tempo, permanecia uma máscara, enquanto os
olhos pequenos e alertas moviam-se com rapidez de um
símbolo para o outro, parando, fixando, examinando,
absorvendo, e depois desviando para outro símbolo. Ele
ficara sentado imóvel por quase uma hora, seus olhos
sorvendo o magnífico mural, o corpo rígido, as mãos ásperas
e rachadas, espalmadas sobre os joelhos, até finalmente
emitir um suspiro arquejante e levantar-se da cadeira para
dizer:
— Não é de minha tribo.
Um após outro, Jared levou membros tribais para a caverna
— tongva, diegueno, chumash, luiseno, kemaaya —, alguns
jovens, outros velhos, homens e mulheres, com ternos ou
jeans, cabelos curtos ou com tranças, para ficarem de pé ou
se sentarem e avaliarem os mistérios intrigantes do antigo
mural. E cada um deles, ao sair, balançava a cabeça para
dizer: "Não é de minha tribo." Alguns dos visitantes olharam
para Érica com óbvio desprazer, lembrando de antigos tabus
sobre mulheres entrarem em lugares sagrados. Alguns não
estavam confortáveis consigo mesmos por estarem lá. Uma
mulher da tribo purisima, ao norte de Santa Barbara, ficou
muito agitada e saiu, dizendo que havia québrado o tabu que
proibia as mulheres de olharem para os símbolos sagrados da
busca de visão de um xamã e que agora toda a sua tribo seria
amaldiçoada porque ela esteve lá. Alguns visitantes, porém,
olharam favoravelmente para Érica e seu trabalho. Um
homem jovem, membro da tribo navajo e professor de
história dos americanos nativos na Universidade do Arizona,
apertou a mão dela e disse que aguardava notícias de seu
progresso.
Jared também levou peritos anglo-saxões, homens e
mulheres treinados em universidades para conhecer os
costumes indígenas. Estes, também, com seus diplomas e
conhecimentos literários, balançaram suas cabeças e
partiram.
A pintura não era o único mistério na caverna.
A moeda de um centavo de 1814 que ela encontrara na
véspera, por exemplo. Em 1814 era ilegal para os
californianos negociarem com os americanos. Americanos
nativos não podiam aportar em San Pedro ou San Francisco,
e qualquer um que fugisse do navio era pego e deportado.
Então como uma moeda americana fora parar dentro da
caverna? Érica sabia que ela não podia ter sido deixada lá
anos mais tarde, quando a Califórnia já era parte dos Estados
Unidos, porque o contorno era muito nítido. Podia-se ver
claramente a guirlanda cingindo as palavras Um Centavo e,
em volta dela, Estados Unidos da América. Por outro lado, a
cabeça da Liberdade com uma guirlanda sobre os cabelos
cacheados rodeada por doze estrelas bem definidas e os
números 1814, todos bem definidos. Uma moeda que ficasse
em circulação durante anos estaria desgastada e lisa pelo
manuseio. Esta moeda fora recém-cunhada quando a
perderam. E portanto aqui havia um mistério.
E havia mais.
Érica olhou para as fotos em preto-e-branco presas no
quadro de avisos mostrando a descoberta extraordinária que
Luke fizera enquanto limpava as paredes da caverna: palavras
gravadas nas paredes de arenito da caverna: "La Primera
Madre" — "A Primeira Mãe".
Quem era a Primeira Mãe? Seria uma pista da identidade da
Senhora?
Era assim que a estavam chamando: a Senhora. A mulher
cujo esqueleto intacto estava sendo gradualmente exposto
por Érica nas últimas semanas, completada com objetos
funerais, restos de roupas e até punhados de longos cabelos
brancos.
Determinar o sexo fora fácil: a pelve era claramente de uma
fêmea. A idade por ocasião da morte, que Érica classificara
entre oitenta e noventa anos, fora determinada com o exame
dos dentes, que eram gastos e quase rentes ao maxilar,
indicando uma vida de consumo de alimentos contaminados
com areia e terra. Determinar a idade histórica do esqueleto
era outra questão e exigia análise com carbono 14. O tecido
ósseo datava entre mil e novecentos e dois mil e duzentos
anos, e o fato de uma lança e uma atiradeira terem sido
enterradas com a mulher, em vez de arco e flecha, a
classificava como anterior a mil e quinhentos anos.
Érica também conseguira deduzir que a Senhora fora uma
curandeira. Enterradas com o esqueleto estavam sacolas de
sementes e pequenos cestos contendo ervas. A maior parte
disso se desintegrara, mas até o momento análises
microscópicas identificaram algumas delas como ervas
medicinais.
O que Érica não podia resolver, no entanto, era a filiação
tribal. A mulher fora alta, o que poderia indicar que fosse
mojave, uma das tribos mais altas do continente norte-
americano. Os objetos fúnebres não eram chumash, nem os
chumash enterravam seus mortos deste lado de Malibu
Creek. A mulher não poderia ter sido da tribo dos
gabrielinos, já que estes cremavam seus mortos. Seus objetos
fúnebres estavam intactos, e os índios da bacia de Los
Angeles quebravam ritualisticamente os objetos do falecido
— partindo o arco em dois, quebrando a lança — para que os
objetos morressem e seus espíritos pudessem se juntar ao
dono após a morte.
Mas quem quer que ela fosse, de que tribo fosse, aqueles que
a enterraram o fizeram com muito carinho, atenção e
reverência. A Senhora fora encontrada deitada de lado, com
os braços cruzados sobre o peito, os joelhos puxados
confortavelmente para cima no que parecia uma posição fetal
ou de dormir. Ela fora envolta em um cobertor de pele de
coelho, a maior parte do qual se desintegrara, mas que ainda
podia ser visto em pequenos pedaços sobre o esqueleto.
Vários colares de conchas estavam pendurados em seu
pescoço, e pulseiras de conchas em ambos os pulsos. Análise
de pólen indicou que ela fora deitada sobre um leito de flores
e salva, e pequenas oferendas de comida — sementes,
castanhas, frutos — foram colocadas perto de suas mãos. Em
volta do corpo os objetos pessoais da mulher foram
cuidadosamente depositados: grampos de cabelo com penas,
brincos de ossos esculpidos, uma flauta feita de osso de ave, e
vários objetos que Érica não conseguia identificar, mas
suspeitava de que possuíssem significados ritualísticos.
Traços de ocre sugeriam que o corpo fora pintado de
vermelho antes do enterro.
Enquanto os sons do acampamento entravam pela janela
aberta — alguém tocando um violão, times arremessando
uma bola de vôlei —, Érica deixou-se voltar no tempo. Seus
olhos se fixaram nas fotos coladas sobre a bancada,
admirando os cabelos brancos e os frágeis ossos que uma vez
fizeram parte de uma mulher que vivera e respirara, e de
súbito sentiu uma necessidade enorme de conhecer a
história da Senhora.
Eram as histórias que tornavam as pessoas reais, o que lhes
dava alma. Érica jamais esqueceria o dia em que começara a
querer conhecer as histórias das pessoas, o dia em que o
curso de sua vida foi determinado para sempre. Ela estava
com doze anos e visitava um museu com um grupo escolar.
Eles estavam na ala de antropologia olhando para os
dioramas, enquanto a professora dissertava sobre a vida dos
índios representados na aldeia reconstruída por trás do vidro.
Érica fora tomada de repente de uma inexplicável admiração
ao pensar que aquelas pessoas haviam morrido há muito
tempo e no entanto estavam lá, mostrando às pessoas no pre-
sente como elas viveram! Que coisa maravilhosa para fazer,
não deixar as pessoas morrerem e serem esquecidas, mas
mantê-las vivas e lembradas.
Quem é você?, perguntou Érica mentalmente ao frágil crânio
com seus delicados pômulos e queixo vulneravelmente
tocante. Como se chamava? Quem amava você? Quem você
amava em retorno? Sozinha na caverna, em meio às sombras
e ao silêncio, manuseando o esqueleto frágil da Senhora, tão
delicadamente curvado de lado, Érica fora embalada por uma
emoção inesperada. Fora como tomar conta de uma criança
ou alimentar um bebê. Ela se sentira impetuosamente
protetora dos ossos solitários e esquecidos, querendo juntá-
los ao peito e mantê-los seguros.
Foi então que sua resolução nascera: conhecer a identidade
da mulher antes que Jared Black encontrasse os donos
legítimos da caverna.
Talvez a última descoberta, desenterrada na caverna naquela
tarde, fornecesse uma pista. O estranho objeto tinha quase o
tamanho e a forma de uma pequena bola de futebol
americano e estava enrolado numa pele de coelho amarrada
com tendões de animais e decorada com colares de conchas.
Érica encontrara o objeto num nível inferior ao da moeda de
1814, mas acima da camada de terra da qual extraíra
fragmentos de cerâmica. Já que os índios da bacia de Los
Angeles não faziam cerâmica, antes permutavam por
cerâmica com as pessoas dos pueblos que os visitavam, Érica
examinou catálogos de referências de cerâmicas do sudoeste
já datadas e identificadas. Conseguira determinar, pelo
conteúdo de minério de chumbo no esmalte e pela mistura
no arenito, que os potes tinham sido feitos em Pecos, um
grande pueblo indígena no rio Grande, por volta do ano
1400. Isso ainda deixava um raio de quatrocentos anos.
Análises adicionais eram necessárias para determinar com
mais precisão o ano em que a pele de coelho fora deixada na
caverna.
Érica estava certa de que havia algo lá dentro. Uma oferenda
deixada por um descendente que viera à caverna para rezar
por um milagre — uma mulher desejando um filho, um
guerreiro desejando uma donzela.
Érica queria desembrulhar o objeto, mas seus olhos doíam.
Decidindo sair para andar e respirar um pouco, pegou um
livro entre os muitos sobre a bancada e o enfiou debaixo do
braço.

O terreno atrás da propriedade de Zimmerman era, na
verdade, a crista norte do cânion, com a mansão do produtor
construída na crista sul, do outro lado dos jardins afundados.
Aqui, entre carvalhos, pinheiros anões e chaparrais, trailers e
tendas foram erguidos para acomodar os arqueólogos e
voluntários que vieram para peneirar, limpar, separar,
catalogar, fotografar, analisar e fazer testes em tudo que fosse
trazido da caverna e da cratera na piscina de Zimmerman —
que, em sua maior parte, consistia de ossos humanos.
Durante o dia, a área fervilhava com tanta atividade.
Enquanto a polícia, equipes de socorro e uma infinidade de
funcionários lidavam com os proprietários das casas os
curiosos e a imprensa, os topógrafos licenciados mapeavam
as condições do terreno da mesa e as comparavam com o
mapeamento histórico. Eles trabalhavam pelo bairro todo
com instrumentos de nivelação, teodolitos, furadeiras,
escavadeiras, equipamentos de medição eletrônica à
distância, unidades de análise sísmica e vários tipos de
ferramentas pequenas para colher amostra de terra para
análise laboratorial. Outro jardim afundara parcialmente,
criando uma cena dramática de uma elaborada fonte em
estilo renascentista partida em duas e inclinada.
Os arqueólogos não eram os únicos no local. Havia pessoas
do Instituto Sismográfico monitorando os instrumentos
delicados que colocaram por toda a mesa e Emerald Hills
Estates; seguranças uniformizados contratados pelos
proprietários para proteger as mansões dos saqueadores; e
trabalhadores da construção civil trazidos para escorar o
rochedo, a cratera da piscina e o interior da caverna — ra-
pazes com capacetes flertando com as estudantes de
arqueologia recrutadas pela UCLA. Muitos dos "capacetes"
eram índios contratados sob a nova legislação iniciada em
parte por Jared Black, que argumentara que o
monitoramento de construções em montes de túmulos
indígenas não só fornecia trabalho para os índios, mas
também aumentava a consciência cultural dos membros
tribais, ajudava a pagar programas de treinamento tribal e
fornecia peritos que as agências governamentais e
desenvolvimentistas precisavam para cumprir as leis federais
e estaduais de impacto ambiental.
Havia outros índios no local também, contestadores do outro
lado das barreiras policiais, que demandavam que a escavação
fosse interrompida mesmo sem que ninguém soubesse a qual
tribo a caverna e o esqueleto pertenciam. Também havia
índios que queriam cavar para persistir na esperança de
encontrar uma identificação. Jared Black era visto com
freqüência falando com os contestadores, tentando mediar
entre os grupos de americanos nativos em conflito. Uma bri-
ga já acontecera, e os contestadores foram levados
algemados. Os ânimos estavam exaltados. Desde a Lei de
1990, os esqueletos estavam sendo removidos das coleções
dos museus em todo o país para serem novamente
enterrados. O Smithsonian já devolvera dois mil esqueletos,
restando ainda quatorze mil para serem devolvidos. Mas o
problema com a mulher do Emerald Hills era que sua filiação
tribal ainda não fora identificada e assim algumas tribos se
preocupavam com a possibilidade de que um membro de
uma tribo rival, ao manusear os ossos, pudesse colocar uma
maldição sobre eles e os seus descendentes.
Quando Érica atravessou o acampamento barulhento, olhou
para o ostentoso Winnebago de doze metros de Jared Black,
estacionado à parte das humildes tendas e trailers. Não havia
luz lá dentro. Ela o vira sair cedo pela manhã, arrancando do
estacionamento como se o assento traseiro de seu Porsche
estivesse pegando fogo. Aparentemente ele ainda não
voltara.
Jared não era um homem ocioso. Mesmo estando na
Comissão para a Herança dos Americanos Nativos do Estado,
ele ainda exercia o direito numa firma de prestígio em San
Francisco. No momento comandava seu pessoal nas
pesquisas em escrituras locais e referências históricas à
caverna, no estudo cuidadoso dos registros das Missões
Franciscanas, na pesquisa na cidade, condado e nos arquivos
do Estado, para tentar descobrir se índios foram donos de
registros ou se havia referências a qualquer tribo em
particular na área.
Érica estivera dentro do trailer uma vez, quando Jared
convocara uma reunião entre ela, Sam e os membros de uma
tribo local. O Winnebago era provido de equipamentos
eletrônicos de última geração, um centro de entretenimento,
cama de tamanho gigante, geladeira SubZero, máquina de
lavar pratos, forno de microondas, fazedor automático de
gelo, carpete felpudo e armários com taças de cristal. O lugar
era luxuoso e com mais conveniências do que qualquer
apartamento em que Érica já vivera. Jared Black, o advogado
e ativista dos direitos indígenas, era um exibicionista, na
opinião dela, divertindo-se sob os holofotes. Jared tinha uma
secretária, emprestada como cortesia de uma firma local, que
vinha todas as manhãs e depois ia embora com uma pasta
cheia. As pessoas entravam e saíam do trailer de Jared o dia
todo — procuradores, políticos, representantes tribais. Sua
vida profissional era um livro aberto.
Jared Black, o homem, por outro lado, era um tanto
enigmático.
No fim do dia, quando o trabalho terminava e as equipes da
cidade voltavam para casa, e Érica e seu grupo descansavam
as ferramentas e dispersavam para a tenda da cafeteria ou
para seus aposentos particulares, Jared Black também
encerrava o expediente, as visitas paravam de chegar, as
luzes acendiam em seu trailer, a porta permanecia fechada.
Ele nunca se juntava aos outros para jantar, jantava sozinho.
E depois, por volta das oito da noite, ele saía, levando uma
pequena mochila, e voltava duas horas mais tarde com os
cabelos molhados. Érica imaginava que ele saía para se
exercitar em algum lugar, talvez jogar handebol ou nadar,
mas não eram apenas duas ou três noites por semana, mas
quase todas as noites, sem falhar. Ele é um personal trainer
de estrelas do kungfu e boxeadores. Ele escala a fachada do
Hotel Bonaventure, com per- missão, é claro. Ele pratica luta
corporal com jacarés que vão se transformar em carteiras
Gucci. Seja o que for, isso explicava seu físico. Mesmo de
terno, era óbvio que Jared Black possuía um corpo rijo e em
forma.
Pelo que Érica podia notar, ele não tinha vida social. Ela
pensava em sua esposa, por que ela não viera para ficar com
ele. Ele ficara ausente por quatro dias há duas semanas, Érica
achou que tinha ido a San Francisco, onde morava. Ele e a
esposa fizeram amor apaixonadamente. Fizeram amor em
todos os lugares — no quarto, no Golden Gate Park, no
bonde — um amor insaciável para compensar o tempo
perdido e para uni-los nos meses de celibato que viriam.
Os fragmentos de Jared não formavam um todo como os das
outras pessoas. Érica não conseguia descobrir sua história.
Embora conhecesse os fatos superficiais sobre ele, não
conseguia desenterrar os artefatos que estavam enterrados
sob suas camadas mais complexas.
Porém uma coisa Érica sabia sobre Jared Black: ela não
confiava nele.
Uma voz estrondosa penetrou seus pensamentos.
— Aí está você! — disse Sam Cárter, saindo da tenda da
cafeteria com manchas de café na gravata. — Eu estava à sua
procura.
As notícias não eram boas.
— Acabo de falar ao telefone com o SCE. Estamos à mercê da
natureza, Érica, isso é tudo. Com os tremores de ontem,
outra piscina afundou, estão dizendo que todo o cânion pode
desabar em segundos. Você precisa ficar pronta para sair a
qualquer momento.
— Mas eu não terminei!
— O Serviço de Controle de Emergência não quer assumir a
responsabilidade pela sua segurança caso ocorra outro
tremor, e eles estão esperando um.
— Eu assumo a responsabilidade por mim mesma.
— Érica, sua segurança é responsabilidade minha e se o SCE
diz que devemos sair, então nós saímos.
Ele viu o livro que ela estava carregando. Quando Érica
percebeu seu olhar de curiosidade, entregou o livro a ele.
Rare Médium, Well-Done : O ministério e a estranha vida de
irmã Sarah. O título foi tirado da manchete de uma história
publicada no Los Angeles Times em 1920 que reportava o
sucesso esmagador das sessões espíritas no Shrine
Auditorium, onde mais de seis mil pessoas histéricas declara-
vam ver e falar com os espíritos.
— Lendo uma historinha superficial antes de dormir? — disse
Sam.
— Eu queria saber o que trouxe a irmã Sarah para este lugar.
Por que ela escolheu este cânion para sua Igreja dos
Espíritos.
— Provavelmente porque era barato. Muitos terrenos nesta
área eram baratos naquela época. Sem estradas, serviço
público. Devia ser um transtorno morar aqui — disse ele,
folheando as páginas com fotos em preto-e-branco e parando
num retrato dramático de Sarah com seus roupões, cabelos
ondulados, olhar fatal. Ela parecia mais uma estrela de filme
mudo, pensou ele, do que uma espírita. E então ele pareceu
recordar que foi assim que ela começou. Ela não fora
"descoberta" ou algo assim?
Devolvendo o livro, Sam olhou com os olhos apertados para
o Winnebago e disse:
— Estou procurando nosso amigo comissário. Você o viu?
— Eu acho que ele não está em casa.
— Aonde acha que ele vai todas as noites?
— Deve estar tendo aulas de violão com um jazzista
aposentado.
Sam olhou surpreso para ela, depois viu o sorriso maroto.
— Érica, essa sua imaginação ainda vai lhe causar problemas.
... "Meu pai é um espião e minha mãe é uma princesa
francesa que foi repudiada pela família por se casar com ele."
... "Érica, meu bem, por que está contando mentiras para as
outras crianças ?"
"Não são mentiras, Srta. Bamstable. São histórias."
... "Turma, Érica tem algo para dizer a vocês. Vamos lá, Érica,
peça desculpas a eles por contar mentiras."
— Já abriu o embrulho com a pele de coelho? — perguntou
Sam, sabendo que ela já tinha uma história para ele mesmo
sem saber o que continha.
Fora isso o que a deixara em apuros no caso com Chadwick:
muita imaginação e muita ansiedade em saber a história. Se
os fatos não contassem a história, então Érica a imaginava.
Em suas mãos um pedaço de cerâmica não era apenas um
pedaço de cerâmica, era a raiva de uma esposa trabalhando
com fúria a argila e pensando no marido que lançara olhares
para a esposa do irmão — um marido preguiçoso que não era
bom caçador, de modo que sua mulher tinha de trabalhar
fazendo potes para trocar por peixe e carne enquanto seu
marido quebrara um tabu tribal que destruiria a todos. Érica
colocava paixão em seu trabalho. Não havia imparcialidade
científica para ela. "Veja isso!", gritava ela, erguendo um
punhado de terra ou coisa do tipo, e dizia: "Não é fantástico?
Não conseguem ver a história por trás disso?"
As histórias não precisavam ser verdadeiras, apenas
possíveis.
Talvez por isso ela fosse tão sozinha. Talvez suas histórias
bastassem. Sam admirara a facilidade com que ela se
transferira para o acampamento, usando suas poucas coisas,
como sempre fazia, para transformar uma tenda em casa. Ela
não tinha uma residência permanente; seu endereço era uma
caixa postal em Santa Barbara. Era incrivelmente adaptável,
capaz de aceitar um novo encargo num piscar de olhos e
freqüentemente falava de sua vida errante com satisfarão.
Houve um tempo em que Sam invejou sua instabilidade
porque ele mesmo estava preso às prestações de uma casa em
Sacramento, com os filhos adultos e os netos pequenos
morando na vizinhança, e a ex-mulher, com quem mantinha
boas relações, ainda no bairro, e a mãe inválida morando
num asilo próximo. Poder botar o pé na estrada e ir para
qualquer lugar, sem explicações, promessas de telefonar ou
de voltar rápido, fora um sonho para ele em sua idade
madura. Ele deixara de invejar Érica, porém, num Natal
quando estavam numa escavação no deserto de Mojave e
Sam voltara a casa para passar o feriado com a família,
enquanto Érica ficara para catalogar os ossos. Ele soubera
depois que ela passara a ceia de Natal no estacionamento para
caminhões do deserto, compartilhando peru industrializado e
molho de uva-do-mato enlatado com três motoristas de
caminhão, dois policiais rodoviários, dois jovens andarilhos,
um guarda-florestal local e um garimpeiro grisalho chamado
Clyde. Sam achou que isso era a coisa mais solitária que já
ouvira.

Às vezes ele pensava em sua vida amorosa. Ele vira homens
entrarem e saírem da vida dela, mas nunca ficavam muito
tempo. Como terminavam as relações? Com Érica dizendo:
"Você precisa ir agora", ou os seus parceiros descobriam logo
que a parte física era tudo o que ela permitia, que o seu
coração era zona interditada? Houve um tempo, quando
começaram a trabalhar juntos, em que ele sentiu um breve
interesse por ela, mas Érica lhe dissera gentilmente que o
admirava e respeitava e que não queria pôr em risco a
amizade deles com complicações. Sam pensara na época que
Érica o rejeitara porque ele era vinte anos mais velho que ela,
mas desde então passara a acreditar que Érica não deixaria
que ninguém penetrasse em suas muralhas. Suspeitava que
fosse por causa de seu passado. Ninguém poderia dizer que
Érica Tyler tivera uma vida fácil.
— Não sei por que a esposa de Jared não vem visitá-lo —
disse Érica, enquanto ela e Sam continuavam olhando para o
trailer escuro.
Ele olhou surpreso para ela.
— A esposa de Jared? Quer dizer que você não sabe!

— Oi, filho, sua mãe e eu estávamos falando em você,
queríamos saber como você está.
Jared encaminhou-se para a secretária eletrônica, depois
parou.
Enquanto deixava a pasta e as chaves do carro sobre a mesa,
ouvia a voz de seu pai no aparelho: "Nós estávamos lendo a
seu respeito no jornal... o trabalho que você está fazendo aí
em Topanga. Estamos muito orgulhosos de você." Pausa.
"Bom, eu sei que você anda ocupado. Mas nos telefone. Pelo
menos telefone para a sua mãe, ela gostaria de saber como
você está."
Jared tirou o som da secretária e olhou longamente para o
telefone. Sinto muito, pai, ele queria dizer. Todas as palavras
foram ditas. Não sobrou nenhuma.
Acendendo as luzes e servindo-se de um drinque, pegou um
fax que acabara de receber da Reunião Congressional dos
Americanos Nativos em Washington. Mas, por mais que
tentasse se fixar nas palavras, finalmente teve de deixar a
carta de lado. O telefonema de seu pai desencadeara a dor
novamente, e a raiva.
Ele começou a andar compassadamente pelo trailer, do
assento do motorista até o quarto, batendo o punho na palma
da mão. Precisava ir ao clube. Podia sentir a ira crescendo
dentro dele como lava dentro de um vulcão. Só uma hora no
clube, malhando até o limite de suas forças, podia
descarregar o poder de sua fúria. Mas hoje o clube estava
fechado para manutenção, deixando tigres e tigresas a vagar
pelas ruas de Los Angeles em busca de uma válvula de escape
para as energias e frustrações. Como a maioria dos membros
do clube, ele não freqüentava o lugar por razões estéticas.
Ao olhar em volta para a desordem em sua transitória
casa/escritório — o computador que nunca dormia, o
amontoado de linhas telefônicas que nunca paravam de
tocar, o fax que nunca parava de expelir mensagens, os
papéis empilhados, espalhados, caídos em toda a parte como
se uma tempestade de neve tivesse despejado seis
centímetros de documentos, resumos, memorandos, cartas,
ações, intimações —, percebeu que o trailer, apesar do
tamanho, era muito pequeno para conter tanto ele quanto
sua raiva. Jared vestiu o paletó e saiu noite afora.

Na beira da mesa, num promontório com vista para o
oceano, ficava um belvedere vitoriano que sobrara da Igreja
dos Espíritos de irmã Sarah. O construtor de Emerald Hills
Estates mandara restaurá-lo e depois ajardinara a área para
fazer um pequeno parque para os residentes. Infelizmente, a
encosta fora declarada perigosa e havia avisos para que as
pessoas não se aproximassem, assim o belvedere nunca fora
usado. Era por isso que Érica o adorava.
Desde que começara a freqüentar a área há duas semanas,
sentia uma sensação de paz nesse lugar. Imaginava se não era
porque estivesse longe do acampamento e do trabalho, longe
das vibrações de entusiasmo dos voluntários e funcionários.
Ou seria simplesmente o ambiente desse delicado belvedere,
uma relíquia de um tempo mais pacífico, símbolo de uma era
mais simples?
Ela olhou para o livro que estava segurando. O que atraíra
irmã Sarah para este lugar? Será que sentira uma paz
inexplicável neste topo de colina ou...
Érica sentiu um arrepio quando um novo pensamento lhe
veio de súbito: naquele tempo o cânion não estava aterrado,
a caverna era acessível. Será que Sarah entrou na caverna e
viu a pintura, decidindo que este era o sinal para construir
sua igreja aqui? Sarah declarou ter construído seu templo
espiritual nesta área porque ela era condutiva para alcançar o
Outro Mundo. Mas o que isso significava exatamente? Será
que ela escolhera construir sua igreja de paranormais aqui
porque o lugar se chamava Cânion Mal-assombrado? Será
que fora atraída pela idéia de que os espíritos já estivessem
residindo aqui? Érica apenas começara a ler a biografia da
figura enigmática dos anos 1920, uma mulher cujo rosto fora
conhecido por todos nos Estados Unidos, que foi vista em
todos os jornais, revistas, jornais cinematográficos — uma
personalidade bombástica cujos maneirismos e voz
hipnotizadora eram a base das caricaturas editoriais e dos
comediantes e, apesar disso, cuja vida pessoal e passado eram
praticamente desconhecidos. Irmã Sarah brotara do nada,
tornara-se uma sensação da noite para o dia, e depois
desaparecera com a mesma rapidez sob circunstâncias
misteriosas, deixando sua igreja fragmentada e cambaleante.
Érica entrou no belvedere, que brilhava como um bolo de
noiva à luz da lua. Quando pôs a mão na madeira sentiu-a
murmurar histórias — de beijos roubados e promessas
quebradas, de encontros ao luar e sessões espíritas para os
mortos. Música e amor e desapontamento e cobiça e
contemplação espiritual foram observados por estas velhas
madeiras durante décadas até o belvedere palpitar com os
sobejos das vidas que passaram por elas.
Érica olhou para a água e pensou se sua mãe, onde quer que
estivesse naquele momento — no Champs Elysées em Paris,
numa praia no Caribe —, sentia que não estava completa
porque abandonara a filha. Ela está andando pelo Central
Park neste momento, nos braços do segundo marido, um
dentista, e sentindo que há um pedaço dela faltando, sem
saber que a três milhas dali o pedaço que lhe falta está
andando, respirando, sonhando.
Quando jogou os cabelos para trás, Érica percebeu que não
estava sozinha. Alguém já estava lá, do outro lado do
belvedere, bem na beira do promontório. Jared Black! Parado
com os pés separados, mãos na cintura, como se estivesse
discutindo com o oceano.
Ele virou-se de repente e Érica ficou atordoada pela
expressão em seu rosto. Era como olhar para o centro de
uma tempestade.
O momento pairou suspenso entre eles, como uma calmaria
caprichosa, e tudo na noite ficou paralisado por um instante.
Eles nunca estiveram a sós. Nas semanas desde o início do
projeto, sempre que Érica encontrava Jared havia outra
pessoa por perto, assuntos para serem tratados e questões
para serem resolvidas. Eles não tinham absolutamente nada
para dizer um ao outro em particular. Ela questionava agora
qual dos dois se afastaria primeiro.
Para sua surpresa, Jared afastou-se da beirada perigosa do
penhasco e subiu os degraus rangentes do belvedere para
ficar sob o elegante teto superfluamente ornamentado.
— Irmã Sarah deve ter pregado daqui. Esta estrutura foi
desenhada com a acústica em mente.
Érica olhou para a face interior do teto.
— Como você sabe?
— Já estudei arquitetura — disse ele, acrescentando com um
sorriso: — Na época plistocena.
O sorriso chocou Érica, assim como o gracejo. E então ela
percebeu que o sorriso e o gracejo foram forçados. Ele está
encobrindo alguma coisa que eu não devia ver. A expressão
em seu rosto, a fúria com o oceano.
— Eu normalmente tenho este lugar só para mim — disse ela,
sentindo correntes estranhas no ar e incapaz de identificá-
las. — Os agouros afastam as pessoas.
— Os agouros às vezes podem levar a cabo exatamente o
oposto do que tencionam fazer — disse ele, ficando em
silêncio e olhando para ela.
Érica tentou pensar no que dizer. Pois tinha a impressão de
que Jared estava testando a si próprio, que se ele se soltasse
um pouquinho, se fosse negligente em sua vigilância por um
segundo sequer, se transformaria em algo que não queria que
as pessoas vissem.
— Tenho recebido telefonemas de grupos de interesse
hispânico — disse ela por falta de coisa melhor para dizer.
Desde que saíra a notícia sobre o grafite La Primera Madre,
Érica estava sendo contatada por pessoas que queriam vir
para vê-la, jornalistas pedindo que ela comentasse sobre o
que podia significar "A Primeira Mãe", americanos-
mexicanos reclamando a posse da caverna.
— Nós somos a sensação do momento — disse ele com outro
sorriso.
Ela e Jared voltaram a ficar em silêncio e Érica pensou em
mil coisas para dizer que precisavam ser discutidas — sua
crescente preocupação sobre a falta de segurança perto da
caverna, por exemplo —, mas finalmente tudo o que pôde
fazer foi externar o que estava em sua mente em primeiro
lugar.
— Sam Carter me contou sobre sua esposa. Eu não sabia. Eu
estava fazendo uma conferência em Londres na época e não
tive acesso às notícias locais. Fiquei pesarosa quando soube.
Os lábios dele formaram uma linha inflexível.
— Ela era tão jovem — disse Érica. — Sam não me disse
como...
— Minha esposa morreu ao dar à luz, Dra. Tyler.
Érica olhou fixamente para ele.
— Nós perdemos a criança também — acrescentou Jared
suavemente, voltando os olhos para o mar escuro.
Érica estava abalada. De súbito, sentiu-se como se estivesse
na presença de alguém totalmente estranho.
— Você deve sentir falta dela.
Isso soava medíocre, mas algo precisava ser dito.
— E sinto. Não sei como consegui sobreviver nos últimos
três anos. Não me parece justo. Netsuya tinha tanta vida pela
frente, tantos planos e sonhos. Ela queria reparar dois séculos
de injustiças e restaurar a história de sua tribo para eles —
disse Jared, e depois olhou para Érica. — Ela era maidu. Não
preciso dizer a você que encargo isso teria sido.
Como antropóloga especializada em nativos da Califórnia,
Érica estava familiarizada com a história dos maidus, que era
similar à de todas as outras tribos da Costa Oeste. Embora não
tenham sido afetados pelas missões espanholas, que
significaram a ruína das culturas costeiras, os maidus no
entanto não deixaram de cumprir seu destino durante a
corrida em busca do ouro, quando os homens brancos, em
sua ganância pelo precioso metal amarelo, destruíram tudo
que estava em seu caminho, fossem montanhas ou gente. A
malária e o sarampo dizimaram boa parte da tribo, e depois
os mineiros afugentaram a caça e destruíram habitats de
peixes, usando técnicas de mineração que acabaram com os
rios, matando os peixes e seus locais de desova. A vida como
a que os maidus conheceram durante séculos desaparecera
num piscar de olhos.
— Depois que Netsuya se formou em direito — continuou
Jared, falando com a noite, de costas para Érica —, deu início
a um plano para fornecer moradia, amparo à velhice, saúde,
recursos culturais, bem como oportunidades econômicas
tribais e bolsas de estudo para seu povo. Mas seu verdadeiro
sonho era ver algum dia um americano nativo ocupando o
cargo de governador da Califórnia.
Érica ouviu suas palavras desaparecerem gradualmente no
vento. Quando o silêncio veio a seguir, e ele permaneceu
olhando para o oceano, ela disse:
— Netsuya é um nome bonito. O que significa?
Ele voltou a fitar Érica. Ela tentou descobrir a cor de seus
olhos. Cinza-metálico? Não exatamente. Eles tinham a cor
das sombras, pensou ela, e do mistério.
— Na verdade, não sei — disse ele, sem afastar os olhos de
Érica. — Seu nome verdadeiro... quer dizer, seu nome de
batismo era Janet. Mas quando assumiu a causa de seu povo
adotou o nome da avó.
Ela não conseguia decifrar sua expressão. Havia a raiva que
ela vira desde o dia em que ele chegara, mas havia outras
emoções também, ondulando sobre suas feições bonitas
como a superfície de uma piscina escura agitada pela brisa.
Ela lembrava de sua atitude no dia em que chegou, cheio de
hostilidade, deixando Érica sem saber por que viera com
tanta agressividade. Agora imaginava se não teria sido por
causa da esposa. Era do conhecimento de todos que antes de
conhecer Netsuya, Jared, especialista em direito imobiliário,
fora o representante legal de corporações, herdeiros e
cidadãos em disputas de terras, e que foi só depois de se casar
com uma ativista dos direitos indígenas que ele assumiu a
causa deles. Agora era quase exclusivamente tudo o que ele
fazia. Érica imaginava algum tipo de pedido no leito de
morte, a esposa de Jared pedindo-lhe que prosseguisse na
luta. Um fantasma era um motivador poderoso.
Quando Jared encostou-se na coluna esculpida, cruzando os
braços, Érica teve a impressão de que ele estava tentando
relaxar, ser amigável. E quando ele olhou para as estrelas e
disse: "Os maidus acreditam que a alma de uma pessoa boa
viaja para o leste ao longo da Via Láctea até alcançar o
Criador", Érica recusou-se a baixar a guarda. Lembrando a si
mesma que eles ainda eram oponentes e que o motivo
principal de Jared estar no projeto era tirá-lo das mãos dela,
ela olhou para o relógio e disse:
— Está ficando tarde e ainda tenho trabalho para fazer.
Ele desviou os olhos do céu e os fixou num ponto em alguma
parte do oceano escuro e ondulante. Érica sentiu que ele
estava ponderando algo importante ou brigando com alguma
coisa interna. Quando olhou para ela, ela prendeu a
respiração.
— Fiquei sabendo que você descobriu algo incomum na
caverna hoje — disse Jared.
Ela teve a sensação estranha de que não era exatamente isso
o que ele queria dizer.
— Você tem toda a liberdade para ir ao laboratório e observar
enquanto eu abro o embrulho.
Quando começaram a sair do belvedere, o silêncio foi
quebrado de repente por um tremendo rugido.
— O que é isso? — perguntou Jared.
Eles olharam para cima e viram um helicóptero da polícia
flutuando sobre Emerald Hills Drive, seu farol de alta
intensidade apontado para um único ponto abaixo.
Enquanto desciam apressados pela trilha e atravessavam o
complexo, eles viram um aglomerado de gente na rua em
frente à casa de Zimmerman. Proprietários — maridos,
esposas, crianças e animais de estimação — segurando caixas
e malas, sacos de dormir e travesseiros. Harmon
Zimmerman, usando um training Adidas, estava gritando
com o vigia, que aparentemente ficara com medo quando
viu toda aquela gente passando pelo portão de segurança e
chamara a polícia. Sirenes podiam ser ouvidas avançando
pelo cânion.
— Por que diabos chamou a polícia, seu idiota?
— É o meu trabalho, senhor. É o meu dever...
— Sim, é o seu dever porque nós o contratamos, seu débil
mental. Nós pagamos o seu salário. Por que chamou a polícia
para nós?
Quando o frustrado vigia não soube responder, Jared
adiantou-se e disse:
— O homem acaba de lhe dizer. Ele chamou a polícia porque
foi para isso que foi contratado. Por que está vendo um
problema nisso?
Zimmerman virou-se para ele:
— E você, advogado sabe-tudo, você e esta mulher — disse
ele, apontando o dedo para Érica. — Vocês conseguiram
arrastar isso por tanto tempo que nossas casas estão sendo
roubadas, nossos jardins destruídos. Isto mais parece uma
cidade-fantasma.
Érica olhou para a rua escura e deserta. Com casas em apenas
um dos lados. Do outro lado tinha árvores e depois uma
ladeira suave que descia para o cânion seguinte. Casas
maravilhosas, mas os jardins estavam começando a ficar
cheios de mato, roseiras crescendo em desordem. A
paisagem inteira era de descuido, como o castelo da Bela
Adormecida, pensou Érica. A donzela adormeceu e a
natureza estava reclamando seu reino. E seria preciso mais
que um belo príncipe para salvar a situação. O bairro inteiro
fora declarado perigoso. Os engenheiros da cidade
perfuraram a rua em toda a sua extensão para examinar o solo
e descobriram que todo o cânion estava se liquefazendo e
transbordando para os cânions mais baixos. Era quase como
se, pensou Érica, o cânion estivesse recobrando seu estado
original, depois da interferência e tentativa dos humanos em
alterar sua formação natural.
Cercas contra ciclones foram colocadas em volta de Emerald
Hills Estates, e o único acesso para entrar e sair era através de
portões que eram trancados à noite. Apesar dessa precaução,
bem como dos vigias, as casas eram os alvos principais dos
saqueadores. Embora toda a mobília tivesse sido retirada, elas
ainda continham acessórios valiosos. A polícia já pegara dois
homens tentando roubar as peças de ouro do banheiro de
uma casa, e um proprietário aparecera para dar uma olhada
em sua casa só para descobrir o desaparecimento de todos os
utensílios de cozinha, mármore importado arrancado das
paredes do banheiro, fiações e encanamentos de cobre
retirados. Tudo sem um único barulho, sem uma pista de
quando e como os ladrões efetuaram o roubo.
Assim, os proprietários tinham decido voltar para suas casas,
a despeito do fato de a cidade não permitir por causa da
instabilidade do solo e da falta de serviços públicos.
Zimmerman e os outros estavam demandando que o
fomentador original reenchesse o cânion, que o compactasse
adequadamente e que o reforçasse com suportes de aço e
concreto, reconstruindo o lugar para torná-lo estável
novamente.
— Nós pensamos que estaria tudo resolvido há semanas —
continuou Zimmerman, porta-voz dos irados proprietários.
— E que nós estaríamos voltando para casa. Isto está levando
uma eternidade. — Ele cutucou o ombro de Jared. — Você
com os seus índios. — Depois ele cutucou o ar na frente de
Érica. — E você com seus os ossos...
A polícia, que estacionara seus carros do lado de fora da
cerca, estava agora correndo a pé.
— Nós não estamos vivendo! — gritou o editor de revistas,
dono de uma mansão de mais de dois mil metros quadrados
em estilo Tudor, onde a quadra de tênis afundou noventa
centímetros no chão.
Zimmerman cruzou os braços e disse:

— Nós não vamos sair. E aqui que nós vivemos e é aqui que
vamos ficar.
— Esta área é um lugar instável — disse Jared —, não é
seguro ficar aqui.
— Sabe quanto aquela casa me custou? Três milhões. Antes
da piscina e do canteiro de rosas que custou uma fortuna e
que agora está totalmente arruinado, devo acrescentar,
porque está sendo pisoteado por todo mundo. O seguro não
está pagando, e certamente não posso vendê-la. E você acha
que eu vou simplesmente abandoná-la? Todos nós já fomos
empurrados de um lado para o outro o suficiente. Agora vem
você, o sabe-tudo de Sacramento, apregoando direitos
indígenas. Mas e os nossos direitos? Alguns de nós... nossas
poupanças de toda uma vida foram colocadas nestas casas.
Alguns vieram para cá para gozar a aposentadoria. Para onde
vamos? Você me responda. Não, senhor, é aqui que vamos
ficar e ninguém vai nos tirar de nossa propriedade.
— Sr. Zimmerman — disse Érica, aproximando-se —, posso
lhe garantir que estamos fazendo tudo o mais rápido que...
— E eu estou lhe garantindo uma coisa, senhora. Eu já
coloquei meus advogados na questão. Nós vamos fechar
aquela caverna, aterrar o cânion e retomar nossas
propriedades. E vocês podem pegar os seus índios e os seus
ossos e dar o fora. Entenderam?

As pinças dentárias e o bisturi estavam prontos para Érica
abrir o misterioso embrulho de pele de coelho. Sam estava lá,
empoleirado num banco, com o estômago roncando porque
estava de dieta... novamente. Luke checava o filme, a
iluminação e a velocidade do obturador.
— Senhores? — disse Érica. — Estamos prontos?
Antes que qualquer dos dois respondesse, Jared entrou no
trailer, fechando a porta de alumínio atrás de si para bloquear
o vento frio da noite. Ele ficara para trás para conseguir mais
informações de Zimmerman.
— Era o que eu esperava. Eles vão mover uma ação contra a
garantia de acabamento do fomentador, alegando que a área
de desenvolvimento não foi devidamente aplainada. Se a
corte decidir em favor deles e ordenar o acabamento do
projeto, então a construtora não terá escolha exceto aterrar o
cânion.
— Você pode impedi-los?
— Não há dúvida que vou tentar — disse Jared, olhando para
a bandeja e franzindo as sobrancelhas. — Isso é um animal?
— Não, é alguma coisa embrulhada na pele de um animal.
— Antigo?
— Eu diria que uns trezentos anos aproximadamente. O Dr.
Fredericks, nosso dendrocronologista, tirou amostras de
cerne de árvores indígenas e determinou que um incêndio
terrível devastou boa parte desta área há três séculos.
Análises microscópicas e químicas de uma camada fina de
fuligem e cinza no chão da caverna se equipararam ao
material das cascas desses cernes. Este embrulho de pele
estava abaixo dessa camada, o que significa que foi deixado lá
há no mínimo trezentos anos. Pode ser chumash. Estas
contas são parecidas com as que eles usavam como moeda
corrente.
Aproximando a luz e ajustando o pescoço-de-ganso da
lâmpada para que iluminasse o objeto, Érica usou as pinças
muito finas e o bisturi nos tendões que amarravam a pele de
coelho. Luke tirou fotografias a cada passo do procedimento.
Do lado de fora das paredes do trailer eles ouviram sons de
pessoas passando, rindo, chamando uns aos outros, enquanto
lá dentro Jared, Sam e Luke estavam atrás de Érica,
respirando suavemente.
Ela cortou os tendões e os puxou para os lados
cuidadosamente. Depois prendeu as bordas da pele frágil
como se estivesse trabalhando numa pessoa viva.
Finalmente, a última camada de pele cedeu.
Eles olharam em estado de choque.
— Que loucura! — disse Luke, sem pensar. — Como isso foi
parar aí?
— Meu bom Deus — murmurou Sam, alisando a cabeleira
para trás.
— Em que nível você disse que encontrou isso? — perguntou
Jared, incrédulo.
— Logo abaixo do ano seiscentos — disse ela, a voz cheia de
espanto, piscando pelo assombro. — Eu não sou perita nessa
área, vou ter de consultar um historiador, mas, julgando pelo
artesanato e os materiais, arriscaria o palpite de que isso
provavelmente foi feito por volta de quatrocentos anos atrás.
Provavelmente, de fabricação holandesa.
— Mas isso é impossível — protestou Luke. — Ainda não
havia nenhum europeu na Califórnia! Não por mais duzentos
anos.
— E o que nos diz a História, Luke, mas não há dúvida
quanto à idade. Assim como não há dúvida — disse ela,
levantando o objeto surpreendente para a luz — de que isto
é um par de óculos.

Capítulo Quatro

Marimi
1542 da era cristã

— Monstro marinho! Um monstro marinho!
Todos correram à praia a fim de ver para onde o garoto
estava apontando. Realmente, no meio das ondas, flutuava
um animal que ninguém vira antes.
Chamaram a curandeira. Ela chegou com sua fumaça mágica
e bastão-de -sol especial, uma mulher jovem e alta usando
uma fina saia de palha trançada e uma pequena capa de pele
de lontra do mar, com ossos de perna de pelicano decorados
com penas de codorna introduzidos nos lóbulos das orelhas,
e entre os seios nus muitos colares de conchas, entre os quais
uma tira de couro com uma pequena bolsa de couro no final
contendo a pedra do espírito do corvo, passada de geração
em geração desde a Primeira Mãe. Ela era Marimi, assim cha-
mada porque era a Guardiã da Caverna Sagrada em
Topaangna. Quando mais nova seu nome era outro, mas,
assim que começara a mostrar sintomas do dom do espírito
— dores de cabeça, visões e transes —, foi escolhida para ser
a sucessora da velha curandeira, também chamada Marimi, e
dedicada a prestar serviço aos topaas e à Primeira Mãe. Era a
maior honra que um membro do clã podia receber, e Marimi
era eternamente grata por ter sido abençoada com o dom,
embora seu serviço à Primeira Mãe significasse a renúncia ao
casamento e ao intercurso sexual com homens. Se às vezes,
tarde da noite, sozinha em sua cabana, pensamentos de amor
e filhos chegassem à sua mente, ou quando contava as
estações e percebia que ainda era muito jovem e enfrentava
uma vida de castidade, ela lembrava que a virgindade era
necessária para manter a si mesma e seu espírito puros e que
o sacrifício era pequeno comparado ao privilégio de servir a
Primeira Mãe.
Ela apertou os olhos e olhou para a água.
— Não é um monstro marinho — disse ela. — É um homem.
Vozes zumbiram como moscas.
— Um homem? Um dos nossos? Mas ninguém está faltando.
Todos os barcos voltaram hoje. Todos os caçadores do mar já
se apresentaram. O que um homem está fazendo na água?
Depois mais comentários e especulações sussurradas:
— Um membro da tribo do norte? Os terríveis chumash? Ele
veio para lançar um feitiço sobre nós! Mande ele de volta
para o mar.
Marimi levantou os braços e a multidão na praia caiu em
silêncio. Parada majestosamente sobre uma duna, com
gaivotas voando contra o céu claro e azulado, e o vento
fresco vindo do mar esvoaçando seus longos cabelos negros,
Marimi vigiava o homem sem vida flutuando na água e
tomou uma decisão. Mandou buscar um barco e
imediatamente todos correram para a aldeia para trazer nos
ombros uma das maiores canoas de caça em alto-mar feita de
tábuas de madeira flutuante e selada com betume. Nesses
impressionantes barcos, capazes de levar mais de uma dúzia
de homens, os caçadores topaas saíam diariamente com suas
lanças, redes e anzóis para caçar baleia, toninha, foca e arraia.
Mas agora eles empurravam a canoa pelas ondas atrás de uma
presa diferente. Todos olhavam enquanto os remos
afundavam na água em uníssono até chegarem onde estava o
homem. Com um gancho para baleia, os caçadores o
fisgaram e arrastaram.
A maré empurrou a canoa para a praia, depositando também
o mistério sobre a areia molhada, revelando que era
realmente um homem, deitado de bruços e imóvel sobre
uma tábua. As pessoas voltaram a fazer comentários:
— Não é chumash! Vejam a pele do seu corpo! E os pés são
do tamanho dos pés de um urso! — E se afastaram,
amedrontados.
O chefe se aproximou para confabular com Marimi. Embora
poderoso pelos direitos próprios, sua autoridade era de uma
natureza diferente da de Marimi. Juntos, ambos decidiriam
como lidar com esse acontecimento inesperado.
Semanas atrás o povo avistara criaturas estranhas ao longe no
mar, com grandes asas quadradas e corpos bojudos.
Caçadores remaram mar adentro e voltaram para comunicar
que não eram criaturas, mas barcos de alto-mar diferentes de
tudo o que os topaas jamais viram. Membros de uma tribo
sulista de passagem, que foram ao norte comerciar com os
chumashes, relataram que homens de pele branca
desembarcaram nas ilhas no canal, e lá comerciaram e
festejaram com os mais velhos da tribo e depois partiram
novamente em suas maravilhosas canoas.
Visitantes amigáveis, disseram, cujos ancestrais viviam muito
longe dali.
Seria este um desses visitantes?, pensou Marimi, enquanto
olhava o corpo incrustado de sal coberto pela mais estranha
pele que ela já vira. O homem estava deitado de bruços sobre
a madeira. Por que tinha sido expulso de sua canoa?
Ela deu uma ordem, e dois homens viraram o corpo do
estranho. Todos gritaram. Ele tinha dois pares de olhos!
— Um monstro!
— Um demônio!
— Jogue-o de volta ao mar!
Marimi gritou por silêncio novamente, enquanto estudava o
estranho. Ela podia ver que ele era muito alto e com um
rosto curió - sãmente fino, nariz grande e arqueado e pele
clara. E aqueles olhos! Imaginou se não seria um ancestral, já
que viera de onde os espíritos dos mortos moravam, a oeste,
além do oceano. Talvez depois da morte o espírito recebesse
um segundo par de olhos.
Marimi se ajoelhou e colocou a ponta dos dedos em seu
pescoço frio. Mal sentiu o fraco latejar da vida. Ela teria
preferido retirar-se para a caverna e buscar o conselho da
Primeira Mãe, mas o estranho estava à beira da morte, não
havia tempo.
Marimi endireitou-se e ordenou que cinco homens fortes o
carregassem para o seu abrigo na entrada da aldeia.

Ela recitou uma prece mentalmente. Aquele segundo par de
olhos! Seriam mágicos? Poderiam vê-la mesmo através das
pálpebras fechadas? Seria ele algum tipo de monstro?
Mas ele veio do oeste, onde moram os ancestrais...
Eles são visitantes amigáveis, disseram os comerciantes
sulistas.
Primeiro, precisava despi-lo. E começou pelo chapéu
peculiar, que não era feito de palha como os chapéus dos
topaas mas de uma pele estrangeira, e quando tirou o chapéu
dele Marimi deu um grito. Sua cabeça estava em chamas! Ela
franziu as sobrancelhas. Mas como podia seus cabelos
estarem em chamas e não consumir o couro cabeludo?
Olhoumais de perto. Depois tocou os cachos da cor do pôr-
do-sol. Ele viajara além dos limites em seu barco e sua cabeça
roçara o sol. Isso podia ser a única explicação. Os estranhos
cabelos flamejantes também eram muito curtos, quase rente
à cabeça, porém o queixo e o lábio superior tinham cabelos
longos, pontudos e ondulados! Os homens topaas usavam
cabelos compridos e não tinham cabelos no rosto.
Ela contemplou as camadas de pele que cobriam seu corpo
do pescoço ao dedão, deixando apenas o rosto e as mãos
expostos. Ela não podia imaginar o que descobriria embaixo.
Os homens de sua tribo não usavam nada além de uma corda
em volta da cintura onde penduravam comida e ferramentas.
Seria este visitante o mesmo sob suas peles?
Marimi não sabia que essas peles tinham nomes ou que, na
verdade, ela estava despindo alguns dos tecidos mais finos
feitos na Europa, ou que o estilo e o feitio dessas camadas
podiam informar sobre a nobreza e a riqueza de seu usuário.
Primeiro havia um gibão almofadado de veludo preto com
fendas nas mangas para mostrar a camisa de fino linho que
estava por baixo; sobre o gibão havia um colete cintado de
brocado vermelho que descia até os joelhos numa saia
pregueada, de onde se projetavam pedaços de veludo
vermelho. As ceroulas eram brancas e presas nos joelhos, os
calções pesadamente almofadados eram de veludo preto. O
chapéu, que ela colocara de lado, tinha a copa baixa e a aba
larga, era feito de veludo preto com arremate de pele e
pérolas. A camisa era plissada no pescoço e as mangas
terminavam em punhos plissados. Finalmente, quando
libertou seus pés dos estranhos atilhos, ela os achou macios e
sem calos, assim como suas mãos eram macias e lisas, como
as de uma criança — e no entanto ele era um adulto.
Quando todas as peles foram retiradas e ele ficou
completamente nu, ela viu o fogo do sol em seu púbis
também. Como o sol o tocara neste lugar? A pele dele era
macia e branca, tão branca como a espuma que flutua sobre
as ondas da manhã. E então viu a cor raivosa ao longo de suas
pernas e braços e num anel escaldante em volta do pescoço.
E soube de imediato o que o atormentava.
Mas primeiro água, que ela conseguiu pingar entre seus
lábios ressequidos, enquanto o embalava, o braço forte sob os
ombros dele. Quando ele conseguiu engolir sem tossir, ela o
deitou no chão, colocando ao seu lado os apetrechos de cura:
uma caixa feita de junco contendo um pequeno pilão e um
almofariz feito de cristal de rocha, facas de pederneira,
instrumentos de fazer fogo e vários talismãs de cura. Ela
pegou uma pedra que se acreditava estar viva porque fora
tratada com ervas contendo um tremendo poder de vida,
untada com sangue de beija-flor e óleo de enguia, e depois
envolta em penugem branca. Colocou a pedra na testa do
estranho. Em seguida deitou-lhe sobre o peito um colar de
contas enfeitado com ossos de águia e falcão. Viu que ele já
usava um colar feito de uma substância amarela e brilhante
que nunca vira antes, quase da cor de seus cabelos, e o
amuleto no final do colar parecia duas varetas amarradas em
ângulos, e pôde ver a figura diminuta de um homem nele.
Indo até um de seus muitos cestos, selecionou um punhado
de brotos floridos e secos. Depois de macerá-los em água
quente, deixou o chá esfriar e depois banhou as bolhas de sua
pele com ele. Ele acordou por um instante, murmurando em
seu delírio: "Varíola, varíola", e tentou afastá-la. Para os
machucados que recebeu enquanto estava sendo fustigado
sobre a tábua e as ondas implacáveis, Marimi ferveu folhas e
galhos de chaparral para fazer um cataplasma. Fez também
um chá de folhas e deu a ele como tônico.
Ela estava fascinada com o contorno de seu couro cabeludo.
Não era reto sobre a testa, como o dela, mas recuava
formando a ponta de uma flecha, fazendo-a lembrar de um
ângulo que vira certa vez quando subira a colina para visitar a
caverna da Primeira Mãe. Suas sobrancelhas abrasadoras
enfatizavam a aparência de águia, mas, quando
ocasionalmente seu primeiro par de olhos se abria em
delírio, Marimi não via olhos iguais aos de um pássaro. Mãe
Lua, eles eram da cor do céu! Será que ele olhou por muito
tempo para os céus e agora eles estavam presos lá?
Mas não tocou em seu segundo par de olhos, pois podia ser
tabu.
Ele tinha momentos em que conseguia receber alimento, e
Marimi o alimentava com um saudável mingau de glande e
carne de coelho. Quando ele olhava para ela, seus olhos não
focalizavam, ficara tanto tempo sobre as ondas e tanto tempo
sem água que seus sentidos ainda estavam embotados. Mas
Marimi conseguiu dar-lhe comida e água, e banhar seus
membros flamejantes com chá fresco de ervas, até que sua
cor gradualmente melhorou, sua respiração ficou mais
tranqüila,
e ela soube que sua saúde estava voltando.

Quando recuperou os sentidos, a primeira coisa que os seus
olhos viram foram dois seios roliços e morenos.
— Pelos ossos de Deus! — exclamou ele. Depois olhou para si
mesmo e viu que estava nu. — Mãe de Deus! — bradou ele,
levantando com um salto e segurando a cabeça de repente
com vertigem.
Quando o mal-estar passou e sua cabeça ficou clara, ele olhou
para a moça bronzeada, sentada no centro da cabana com um
cesto de folhas no colo. Ela usava uma saia de palha e nada
mais. Estava com os olhos levantados para ele numa
expressão assustada.
— Onde estão minhas roupas? — gritou ele, agarrando o
cobertor de pele e enrolando na cintura. — Onde está minha
tripulação?
E então ficou paralisado.
— Mas espere. Eu estava morrendo — disse ele, examinando
os braços e as pernas, onde apenas um sinal da erupção
permanecia. — A varíola se foi. E eu não estou morto.
Para seu espanto, a moça começou a rir. Escondendo a boca
com a mão, ela ria com alegria, o que só o deixou mais
enfurecido.
— O que há com você? Você é maluca? E em nome de todos
os santos e anjos, onde é que eu estou?
Correu até a abertura da cabana e olhou para um amanhecer
nublado, onde espirais de neblina serpenteavam pelo chão e
o ar estava carregado do cheiro salgado do mar. Por entre a
neblina, viu outras tendas redondas como aquela em que se
achava e pessoas agachadas perto de fogueiras.
Sentindo uma batida leve no ombro, virou-se de repente e
ficou quase face a face com a moça. Pelo sopro de Deus, ela
era alta! Mas não estava mais rindo. Em vez disso, tocou seus
braços aqui e ali, toques suaves como se borboletas
voejassem sobre sua pele. E ela estava falando em sua língua
selvagem, explicando ou tentando explicar alguma coisa.
Ilustrando através de gestos o esmagamento de alguma coisa,
a decocção de alguma coisa e o derramamento dessa coisa so-
bre os seus membros.
— O que está dizendo, moça? Que você pode curar varíola?
— Suas sobrancelhas flamejantes se uniram. — Foi por isso
que eles me lançaram ao mar, sabe. Quando fiquei doente, o
capitão e a tripulação pensaram que eu estava com uma
doença contagiosa que mataria a todos. Eu sou um cronista,
sabe, viajando com Cabrillo. Fiquei doente depois de
pararmos em uma baía ao sul daqui e fomos em terra firme
buscar água. Logo que as erupções da varíola apareceram em
minha pele, os marinheiros, aqueles sifilíticos filhos da puta,
me lançaram ao mar longe de uma dessas ilhas amaldiçoadas
onde vivem outros iguais a você. Ninguém teve pena. Nem
uma alma cristã entre eles.
Ele fez uma pausa, esfregando o queixo.
— Eu me lembro de me colocarem sobre as ondas. E rezarem
padre-nossos e ave-marias. Eu me lembro de ver os navios
levantarem âncoras e se afastarem, e eu num pedaço de
madeira à deriva nas ondas impiedosas, distante das ilhas. E
minha pele queimando com a varíola. Fico imaginando se há
um fim pior do que este para um homem. E depois... — disse
ele, virando os olhos, tentando lembrar. — Acho que
desmaiei de sede. Essa é a minha última lembrança. Até
agora.
A moça o ouviu com os olhos vivos bem abertos, e com a
paciência de uma freira, pensou ele, como se tivesse
entendido tudo o que ele falara. Mas é claro que não tinha
entendido.
— Como conseguiu, quando nem o médico do navio pôde
me ajudar?
Através de gestos ele conseguiu fazer a pergunta. Fazendo
sinal para que esperasse, a moça saiu apressada da cabana.
Enquanto isso, ele encontrou as ceroulas e os calções e
conseguiu ficar parcialmente decente quando ela retornou,
trazendo uma pedra com um galho sobre ela, falando
novamente em sua língua incompreensível.
— Não posso entender — disse ele, estendendo a mão para o
galho.
Ela deu um grito e recuou. Depois, risonha, explicou pelos
gestos que tinha sido aquela planta que causara a doença em
sua pele. Ele estreitou os olhos para o nocivo galho com suas
folhas e flores esverdeadas. Ele era um homem instruído que
tinha orgulho de seu conhecimento de botânica. Esta
espécie, tinha certeza, era desconhecida na Europa.
Mas conseguiu entender o que acontecera: a planta era
nativa do lugar e crescia em profusão na região. De acordo
com os gestos da moça, a planta normalmente atormentava
seu povo, razão pela qual tinham um remédio. Mas, sendo
estrangeiro, não sabia de suas propriedades venenosas e deve
ter andado no meio delas quando ele e a tripulação foram em
terra firme na baía sulista.
Ela entregou a ele um cesto contendo caules longos, com
casca, de cor vermelho-arroxeada com folhas verde-escuras e
inúmeras flores amarelo-torrado. Ele os reconheceu
imediatamente como sendo de artemísia, também conhecida
como Mater Herbarum— a Mãe das Ervas —, e era usada em
toda a Europa para curar enfermidades comuns e também
como chá e condimento.
— Então o que eu tive foi uma erupção comum? — disse ele
por fim. — Algo que até crianças e velhos sabem tratar? E
aqueles patifes — gritou ele — me jogaram no mar por causa
disso?
Ela assustou-se de início, mas depois sorriu, e voltou a rir,
reconhecendo a indignação e a fúria envergonhada de um
homem que pensara estar morrendo até descobrir que o que
tinha era apenas uma coceira.
— Sua maluca — resmungou ele, irritado, procurando na
cabana de palha o resto de suas roupas. — Por que acha tudo
tão engraçado?
Quando ele começou a vestir a camisa, ela agarrou o braço
dele e balançou a cabeça violentamente.
— Por que não? A roupa é minha e eu não vou andar por aí
nu como você!
Ela balançou a cabeça novamente, fazendo seus cabelos
voarem como as asas do corvo, ele não sabia o porquê. Ela
esfregou seus braços e depois apontou o comprimento de seu
corpo, depois, para o seu espanto, pôs a mão em sua axila e
com a outra apertou o nariz.
— Pelos ossos de Deus — disse ele. — Você acha que estou,
fedendo? Bom, é claro que estou, mulher, é o cheiro do suor
de um homem honesto. Para que acha que serve o perfume?
Vocês selvagens não sabem o que é perfume, mas saem por
aí espalhando seus cheiros. — Quando ele a seguiu para fora
da cabana, descobriu uma multidão esperando. — Pelos
dentes de Deus! Todo mundo anda nu por aqui?
Alguns recuaram com o seu ímpeto, mas depois de algumas
explicações da moça em sua própria língua, eles sorriram e
alguns caíram na risada. Ela falou rapidamente para o homem
com penas nos cabelos, gesticulando desenfreadamente,
pensou o estranho, nem um pouco parecida com as damas
espanholas bem-educadas a quem costumava fazer
companhia, até que o homem empenado balançou a cabeça,
entendendo, e com um sorriso pegou o visitante pelo braço e
começou a conduzi-lo.
— Aonde está me levando? Para a panela? E isso? Vocês
selvagens vão me comer?
Mas foi apenas para uma cabana de palha, longa e baixa, que
ele foi levado, onde o calor era intenso e homens nus
ficavam sentados e suando e inalando fumaça e depois
esfregavam suas peles para tirar os venenos internos.
Quando ele saiu limpo do suadouro, sentindo-se
completamente revigorado, usando seus calções e camisa que
também passaram por uma agradável fumigação, encontrou a
moça esperando por ele.
Ele olhou para ela com mais atenção, agora que sua cabeça
clareara. Depois de olhar nos olhos inteligentes da moça e
compreender o que ela fizera por ele, falou num tom mais
moderado:
— Pelos dentes de Deus, vocês são seres racionais. O capitão
disse que vocês eram bestas sem mente ou razão. Mas com
inteligência e força de vontade você salvou minha vida —
disse ele. — E eu não reconheci. Por isso lhe peço perdão.
Despertei da morte para descobrir que estava vivo, e só
conseguia pensar nos patifes que me atiraram do navio. Eu
sou Don Godfredo de Alvarez. As suas ordens — disse ele,
curvando-se. — Se houver algum modo que eu possa retri-
buir o favor...
Ela olhava perplexa para ele.
— Bom, isso vai ser interessante, sem uma língua em comum
e sem tradutor. Como posso dizer a você que gostaria de
mostrar minha gratidão? Mas também que presente tenho eu
para oferecer, exceto as roupas do corpo, que, devo
acrescentar, você já me arrancou uma vez?!
Então ele viu como ela estava olhando para ele, como os
outros, na multidão que se juntou apontavam e
murmuravam. Seus óculos!
Quando os retirou do cavalete do nariz, os espectadores
ofegaram. Alguns até fugiram com medo.
-— Não, esperem — disse ele. — Não precisam ter medo
disto.
Quando os estendeu para a moça, ela recuou, horrorizada.
Ele os colocou de volta no nariz.
— Eu os comprei de um fabricante de lentes em Amsterdam,
que me cobrou uma fortuna. Mas sem eles eu não posso
guiar minha pena no pergaminho, nem ler meus livros
abençoados.
O homem com penas nos cabelos, que Godfredo tomou por
chefe, deu um passo à frente e apontou para a mão de
Godfredo, fazendo uma pergunta. Godfredo pensou e,
compreendendo, disse:
— E um anel, feito de prata.
Mas quando estendeu o anel para o chefe, o homem recuou.
Isso fez Godfredo olhar para as saias de palha e peles de
animais, as contas de conchas e ossos de pássaros, as lanças
com pontas feitas de pedra.
— Vocês não conhecem metal? — disse ele, perplexo.
Godfredo acabara de voltar da Espanha para o sul, onde os
astecas
conquistados conheciam metal e faziam tecidos, onde
construíram maciças pirâmides e templos de pedra, faziam
papel, viviam com um calendário complicado, usavam a
escrita e freqüentavam escolas de ciência e aprendizado. E
no entanto seus vizinhos tão próximos do norte não seguiam
nenhum desses modos modernos. Por que, Godfredo
questionava agora profundamente intrigado, Deus poupara
este povo de tal conhecimento? E será que era uma bênção
ou uma maldição mantê-los na inocência?
Ficou pensativo novamente, estudando a índia de seios nus
que o retinha com olhos negros e brilhantes. Pelos dentes de
Deus, pensou ele. Um homem poderia acreditar que estava
sonhando.
Mas o cheiro do mar era muito real, o grito das gaivotas, e a
lembrança amarga de ser abandonado por causa de uma
erupção.
— Eles ficaram com todas as minhas coisas — praguejou,
cerrando os dentes. — Meus livros e meus pergaminhos,
meu ouro e meus ornamentos. Se me lançaram ao mar
vestido, isso significa que aqueles patifes ainda acreditam na
velha lenda de que colocar um homem nu no mar traz má
sorte para o navio.
Naquele momento Godfredo fez um juramento silencioso.
Pelo Precioso Sangue de Cristo e de Santiago, quando os
próximos navios chegassem ele partiria em um deles e,
quando voltasse para a Nova Espanha, faria com que Cabrillo
e sua virulenta tripulação lamentassem o dia em que suas
mães os desovaram no mundo.

Uma multidão reuniu-se na praia para observar os afazeres do
estranho. Homens agacharam na areia e fizeram apostas para
descobrir o que o homem estava fazendo — alguns diziam
que era uma cabana que ele estava construindo, outros
especulavam que era uma canoa. Crianças seguiam o
visitante em suas indas e vindas pela praia para apanhar
madeira flutuante e alga marinha, e depois em terra para
arrastar galhos secos de carvalho. Mulheres trouxeram seus
cestos e sentaram para tecer, enquanto observavam o
homem chamado Godfredo resmungar e fazer força em seu
trabalho peculiar. Marimi também observava. Só ela sabia o
que ele estava fazendo. E só ela sentia a sua dor. Seu próprio
povo o expulsara, assim como a Primeira Mãe fora expulsa há
gerações. Como o seu coração devia estar chorando, como
devia estar só a sua alma. Ser cortado da tribo, das histórias,
dos ancestrais! Ela rezava para que sua fogueira funcionasse,
que seu povo o visse e viesse buscá-lo e o levasse para casa.
Godfredo ia todos os dias à praia, cuidadosamente
aumentando seu monte de lenha e palha, tomando conta
dele, mantendo-o seco com peles e folhas de palmeira.
Depois ficava horas em pé, olhando para o horizonte em
busca de uma vela, preparado para acender o fogo logo que
visse uma e enviar sinais de fumaça, como os marinheiros de
naufrágios fizeram por séculos. E, depois de seu resgate,
buscaria sua revanche, pois o que Don Godfredo de Alvarez
sentia em seu coração não era dor, aflição ou pesar, como
Marimi pensava, mas fúria, pura e forte, e a determinação
para fazer aqueles bastardos pagarem por cada hora que o
deixaram encalhado neste lugar.
Enquanto isso, ele não tinha outra escolha senão viver entre
os nativos.
Ele recebeu uma cabana própria, um abrigo redondo feito de
galhos e palha com um buraco no teto para a fumaça. Então,
enquanto esperava pelos navios, Godfredo tentava aprender
o que podia sobre esse povo, porque fora por isso que ele
deixou a Espanha e os túmulos de sua esposa e filhos em
primeiro lugar, para viajar pelo globo e ver as novas terras
que estavam sendo descobertas.
Através de gestos e desenhos na terra, ele e Marimi
conseguiram estabelecer um tipo rudimentar de
comunicação, e depois de algum tempo Godfredo aprendeu
algumas palavras em topaa, e Marimi, em espanhol.
Aprendeu que ela tinha vários títulos: Guardiã da Caverna
Sagrada; Senhora das Ervas e Possuidora dos Venenos; e
Ledora das Estrelas, o que ela fazia durante os partos para
profetizar o futuro do bebê e dar-lhe um nome. Aprendeu
também que nunca lhe seria permitido casar com receio de
que o relacionamento sexual destruiria o seu poder e que
deitar-se com um homem não só lhe acarretaria doença e
morte, como poria em risco os próprios membros de sua
tribo.
Don Godfredo achava que isso era um desperdício.
As pessoas o aceitaram de bom grado em seu meio, e os
homens o convidaram para juntar-se a eles em seus jogos de
azar. Os topaas eram quase fanáticos pelos seus jogos e
podiam manter um jogo por dias. Godfredo logo aprendeu a
ler as varetas ou os nós dos dedos ou qualquer outra coisa
que os jogadores lançassem, rolassem, jogassem no ar. Ele
aprendeu a estratégia de apostar seu dinheiro de conchas e
que um mau perdedor era desaprovado. Adaptou-se
rapidamente a fumar um cachimbo de barro e descobriu que
gostava de tabaco. Mas os membros da tribo não usavam a
fermentação, e por isso mesmo não tomavam bebidas
alcoólicas para levantar o ânimo. Quando ele fez vinho com
uvas selvagens e ficou completamente bêbado uma noite, os
topaas se afastaram dele, recusando-se a tomar a bebida que o
deixara possuído por um espírito, e assim ele tomava sua
bebida sozinho depois disso. Ele também passou a apreciar e
até a esperar com prazer pelos banhos de sauna na cabana
baixa, onde se sentava com os outros homens no calor e em
meio à fumaça de um fogo perfumado com várias cascas,
esfregando a pele para limpá-la e saindo de lá revigorado. Ele
gostava muito mais disso do que de seu banho anual, que
sempre detestara.
Outras vezes as práticas dos topaas o perturbavam
profundamente. As mulheres com seus seios balançando e os
homens nus como Adão! Não havia senso de vergonha
neles. E Godfredo achava que suas leis confusas só
encorajavam a promiscuidade: se um marido pegasse a esposa
em adultério, era direito seu divorciar-se dela e tomar a
mulher do outro homem como esposa. Os topaas praticavam
rituais de dança da fertilidade sob a lua cheia e depois se
recolhiam em suas cabanas de palha, onde não era segredo o
que se passava. Moças solteiras eram encorajadas a escolher
parceiros, e em várias ocasiões mulheres casadas prestavam
favores a homens que não eram seus maridos. Enquanto
Marimi tentava explicar o princípio para um Godfredo
chocado e reprovador — que a união sexual entre homens e
mulheres acordava a fertilidade da terra e assegurava que a
tribo fosse abençoada com fecundidade, que as relações
sexuais eram, de fato, sagradas —ele se agarrava firmemente
à crença de que eles eram uma raça imoral.
Uma noite, quando a língua não era mais uma barreira entre
eles, Marimi contou-lhe a história de sua tribo, desde o
tempo da Primeira Mãe.
— Como sabe disso? — perguntou ele. — Nada é escrito.
— Nós contamos nossa história todas as noites. Os mais
velhos contam aos mais jovens. Deste modo nossa história é
preservada.
— Isso não parece muito confiável. A história pode mudar ao
ser contada.
— Mas ela tem de ser confiável. Nós acreditamos nas palavras
exatas da história. As crianças as memorizam de seus avós,
para que quando chegue a vez delas contarem a história seja
a mesma. Como é que você se lembra de seus ancestrais?
— Nós temos pinturas. Registros de nascimento. Livros.
Eles falaram sobre seus deuses. Ele mostrou a ela o crucifixo
e falou de Jesus. Ela, por sua vez, tentou explicar para ele
sobre o Criador Chinigchinich e os sete gigantes que
começaram a raça humana. Ela também falou da Mãe Lua,
para quem os topaas rezavam, e Godfredo achou isso muito
ingênuo já que todos sabiam que a lua era simplesmente um
corpo celeste que orbitava a terra, bem como o sol e todos os
outros planetas.
Nas primeiras vezes em que compartilhou uma refeição com
a tribo, ele os descobriu olhando para ele sem reprovação.
Don Godfredo era o primeiro a admitir que era um homem
de apetite. Engolia a comida e a bebida sem cerimônia e
soltava seus gases intestinais sem se desculpar. Mas,
aparentemente, entre esse povo era considerado descortês
mostrar prazer. E cada noite, quando se sentava para comer
outra refeição de mingau de glande ou coelho ensopado ou
sopa de mexilhão, pensava com saudade nas refeições em sua
casa: banquetes de perdiz e faisão, lingüiças e toucinho
defumado, geléia de marmelo, porco, ave doméstica, pombo,
cabrito e cordeiro; biscoitos e pães, bolos de carne e tortas,
doces cristalizados e amêndoas açucaradas; cogumelos e alho,
cravos-da-índia e azeitonas. Ele fechava os olhos e sonhava
com queijo, ovos, leite e manteiga. Quem pensaria que um
homem sentiria falta de coisas tão comuns? Ele lembrava de
discussões acaloradas mas amigáveis durante o jantar sobre a
excelência de um queijo em particular — Brie, Gruyère,
Parmesão. Queria descrever para os topaas as delícias de um
bom Roquefort ou um picante suíço. Mas os homens não
entendiam. Os topaas não usavam leite de animal. Porém
eram excelentes pescadores, e alimentos vindos do mar eram
sempre abundantes — embora qualquer homem civilizado
soubesse que peixe ficava mais bem acompanhado com um
bom molho. E, mais do que tudo, Don Godfredo sentia falta
de um barril do excelente vinho Bordeaux.
Quando não estava comendo, dormindo ou jogando,
Godfredo mantinha sua vigilância na praia, todo amanhecer e
anoitecer, no sol e na chuva, na neblina e no vento, uma
figura solitária sobre as dunas, ou talvez com um grupo de
crianças que o seguiam, ainda fascinadas com o estranho
entre elas. Ele falava sozinho em sua língua estrangeira, e
parava para olhar o mar, apertando os olhos. Se eles
pudessem entender a língua dele, os topaas saberiam que
Don Godfredo era um homem de ciência e erudição e que
sentia falta de seus livros, seus instrumentos de cálculo, seus
bécheres e frascos de alquimia, que ele ansiava por seu
astrolábio e quadrante e mapas, seus relógios e ampulhetas e
relógios de sol, suas penas e pergaminhos, suas tintas e letras
e palavras. Eles também saberiam que Don Godfredo, sendo
rico, era um homem de confortos e que sentia falta de
castelos e cadeiras, pratos e lenços, leitos de penas e lareiras.
E também sentia falta da política e das intrigas da corte, de
saber quem contava com apoio, quem não contava. Sua
língua ansiava por um debate inteligente. Ele queria seu
cavalo! Todas as coisas a que não dera o seu devido valor e
que agora desejava com uma comoção tão real como a dor
física.
E então, numa manhã, quando a neblina estava cinza e as
gaivotas subjugadas, quando nem as canoas de caça tinham
saído para o mar, Don Godfredo, sentindo-se infeliz dentro
de suas camadas de roupas pesadas pela umidade, lembrou-se
de um romance que era a sensação do momento na Espanha,
chamado Sergas de Esplandian. Era a história de um cavaleiro
chamado Esplandian que, durante o cerco de Constantinopla,
liderou a defesa da cidade contra os atacantes pagãos. De
repente, entre os sitiadores apareceu uma rainha, que viera
de uma ilha fabulosa bem distante "à direita das índias, bem
próximo do paraíso terrestre". Essa ilha era habitada por
mulheres de pele cor de ébano cujas armas eram de ouro, e
nas montanhas viviam grifos lendários. Quando os grifos
eram jovens, diz a história, as mulheres amazonas os
capturaram e alimentaram com os bebês machos que tiveram
e com os homens que aprisionaram. Mais adiante no roman-
ce, a rainha foi convertida ao cristianismo, adquiriu respeito
pelos homens, casou-se com o primo de Esplandian e o
levou para sua ilha maravilhosa.
Todos que leram o livro ou ouviram a história perguntavam a
si mesmos, embora fosse ficção, se aquela lendária ilha existia
realmente. E assim quando Cabrillo içou velas para o México
para explorar esta costa do norte, ele e seus homens
previram descobrir uma terra onde o único metal, como no
livro, era o ouro. Mas quando ancoraram na baía ao sul e
viram como os nativos viviam simplesmente, que não havia
ouro, nenhuma linda mulher amazona, nenhum grifo len-
dário, eles deram ao lugar o nome daquela ilha — Califórnia
— por desapontamento e desdém.
Lembrando disso, Don Godfredo ficou sombrio com um
novo pensamento. Essa gente não possuía nada de valor para
a Coroa espanhola. Anos poderiam passar antes de vir outro
navio! E, embora os selvagens deste lugar pudessem
alimentar seu corpo, eles não podiam alimentar sua alma.
Esta acabaria secando e morrendo, e ele ficando louco.
Em seu novo desespero, olhou para baixo e viu Marimi o
vigiando, sua figura alta envolta em peles de foca, uma
sombra pesarosa em seus olhos negros. Como transmitir a ela
esse inferno em que seus companheiros o haviam colocado,
que um homem precisava de ocupação, que ele ficaria louco
se deixado apenas para comer, jogar e fumar cachimbo?
— Eu sou um homem culto! — gritou ele para o vento. — Eu
tenho uma mente, eu tenho curiosidade! E fui deixado para
apodrecer neste lugar.
Marimi foi até ele e tomou as mãos dele nas suas, virando-as
para cima para que pudesse ver as palmas. E disse alguma
coisa, mas ele só podia balançar a cabeça.
— Eu não entendo você.
Ela apontou para as canoas na praia, os arpões e redes. E
mencionou os pescadores com quem ele travara
conhecimento. E apontou para a cabana dos homens que
faziam facas de pedra-de-fogo, depois para o abrigo das
mulheres idosas que faziam colares de conchas. E levantou as
mãos de Godfredo diante do rosto dele e fez uma pergunta.
— O que eu faço? E isso que está perguntando? — disse ele.
Godfredo tentara, durante semanas, explicar a ela qual era sua
profissão, mas como explicar para uma moça que não tinha
conceito do alfabeto ou da escrita que ele era um escrivão de
bordo? — E então percebeu. — Sangue de Cristo! Agora eu
sei o que você está me dizendo! Foi por isso que eu saí para o
mar! Para registrar as viagens e as descobertas dos
exploradores! E o que estou fazendo? Sentado no meu
traseiro esperando que me resgatem!
Ele poderia tê-la beijado naquele momento, e quase o fez
não fosse a expressão em seus olhos, como se tivesse
entendido seu intento, pois ela recuou rapidamente, para
além de seu alcance.
O excitamento tomou o lugar do humor sombrio de
Godfredo à medida que se envolvia com seu novo empenho,
trocando seu belo chapéu de veludo por um punhado das
penas que adornavam a cabeça do chefe para prepará-las para
escrever. Quando um caçador trouxe um veado das
montanhas, Godfredo trocou seu gibão almofadado pela pele
do animal, e durante dias, enquanto a tribo se banqueteava
com a carne de veado, as pessoas viam-no trabalhar na pele
do animal, raspando, esticando, esfregando a pele com giz e
pedra-pomes até obter algo que ele chamou de pergaminho.
Finalmente, com o suco de lula, ele fez tinta.
Ele estava pronto para começar sua crônica, mas primeiro
precisava saber onde estava.
Quando os espanhóis viram esta planície enquanto
velejavam para o norte, eles a chamaram de Vale da Fumaça.
Não foi só por causa das muitas fogueiras pontilhando a
planície, mas também pelas queimadas propositais. Os índios
tinham o hábito de fazer queimadas continuamente, o que,
Marimi explicou, ajudava o novo crescimento e prevenia
incêndios desastrosos. Godfredo presenciara um desses in-
cêndios devastadores que ardera durante dias porque a antiga
vegetação estava muito densa e seca. Mas os índios sabiam
que para prevenir incêndios maiores era necessário causar
incêndios periódicos. O resultado era que com cadeias de
montanhas cercando a baía, retendo a fumaça, a baía ficava
cheia de fumaça quase o tempo todo; havia dias em que não
se podia ver o pico das montanhas.
Godfredo decidiu fazer um mapa.
Marimi o guiou. Ela caminhava pelas trilhas na frente dele,
os quadris generosos diante de seus olhos, e de vez em
quando, através da saia de palha, ele entrevia uma coxa
bronzeada e lisa. Depois ela parava nos topos das colinas e
apontava para os lugares, dizendo seus nomes. No lado norte
das Montanhas Topaangna ficavam os chumash, que
chamavam sua aldeia de Maliwu, que Godfredo pronunciou
erradamente como Malibu, fazendo Marimi rir. Os topaas e
os chumashes eram inimigos e não se relacionavam. A
fronteira deles era Maliwu Creeke eles falavam línguas
diferentes, o que Godfredo achou estranho.
— Mas eles vivem ali do outro lado das montanhas.
E então ele lembrou que os franceses também viviam do
outro lado das montanhas onde viviam os espanhóis. Marimi
apontou outros povoados: Kawengna e Simi. Eles subiram
nos topos de onde Godfredo viu um vale cheio de carvalhos.
O vale não tinha nome, então ele o chamou de Los Encinos.
Durante a exploração, enquanto passavam por outras aldeias
topaas e depois pelos povoados de outras tribos, Don
Godfredo notou a ausência de uma classe de guerreiros.
Lanças e flechas pareciam designadas principalmente para
caçar em vez de guerrear. Disputas entre tribos, explicou
Marimi, eram pequenas e normalmente resolvidas com
rapidez. Os habitantes desse Vale da Fumaça, parecia, eram
geralmente pacíficos e não agressivos, diferente dos astecas,
com sua civilização avançada que, antes de sua conquista,
eram uma raça agressiva e sanguinária. E então Godfredo
pensou na história de seu próprio povo, os europeus, escrita
com sangue. E um novo pensamento lhe ocorreu: será que o
conhecimento gera agressão?
Godfredo notou como a moça mostrava constante
formalidade para com a terra. Tudo era tratado com respeito
e com ritual. Tirar uma fruta da árvore ou água de uma
nascente era prefaciado por algum tipo de cerimônia, embora
simples, na forma de um pedido ou de um reconhecimento.
Godfredo vira como os índios pediam desculpas aos animais
que matavam. "Espírito neste coelho, peço perdão por comer
sua carne. Que juntos possamos completar o círculo da vida
que nos foi dada pelo Criador de Tudo." Marimi explicou que
eles acreditavam que o animal caçado se submetia ao caçador
por vontade própria se o povo fizesse as observâncias
apropriadas e respeitosas.
Sua estada para fazer o mapa foi breve, porque Marimi não
queria se afastar muito da tribo, nem Godfredo do mar. E
quando retornaram e seu mapa estava pronto, Godfredo,
convicto, começou a escrever sua crônica, que ele previu
como sendo o assunto da Espanha, de toda a Europa, sobre
seu retorno. Ele escreveu no topo do pergaminho: Aqui
Inicia A Crônica e História De Minha Estada Entre Os índios
Selvagens Da Califórnia. E debruçou-se com pena e tinta e
com a maior convicção de um homem tão decidido a realizar
sua tarefa que não havia espaço para mais nada em sua
cabeça. Godfredo fez isso na esperança de salvar a si mesmo
de um destino pior do que ser deixado no mar sobre um
pedaço de madeira: ele estava começando a desejar
ardentemente uma moça que fizera voto de castidade.

Ele queria começar com a ciência, mas como a ciência era
inexistente no lugar, escolheu a medicina como a segunda
melhor opção. Godfredo registrou as curas e rituais que
Marimi lhe permitiu presenciar. Para a dentição de bebês ela
pegava pétalas de rosas silvestres, secava, depois fervia, e
então aplicava as pétalas nas gengivas dos bebês. Para o
tratamento de icterícia, enquanto a sopa de glandes ainda
estava fervendo com o uso de pedras quentes, Marimi
penteava os cabelos em cima, deixando cair piolhos na sopa.
Godfredo ficou impressionado, pois este era um remédio
usado normalmente na Espanha, onde todos sabiam que
beber água contendo piolhos era a melhor cura para doenças
do fígado.
Mas ele presenciou curas que não eram tão evidentes ou
científicas, quando ervas e remédios não faziam efeito e a
magia precisava ser invocada. Godfredo sabia que não era o
"poder" na pena da águia que curava, ou nas presas do coiote,
ou na pele da cascavel, mas a combinação dos poderes da
crença da pessoa doente e da curandeira, e da curandeira em
si mesma. Ambos acreditavam que ela podia curá-lo e de
alguma forma a própria vontade do paciente efetuava a cura.
Godfredo quase admirava o sistema. Quem dera que tal
crença fosse encontrada na Europa, onde os médicos, em sua
maioria, eram charlatões! E se não o paciente, então a
vontade do clã causava a cura, porque o próprio Godfredo
presenciou tal milagre quando um dia um caçador de foca
machucado fora trazido para a terra. O homem fora ferido
por uma lança, e seu machucado estava infeccionando,
fazendo-o queimar em febre. Marimi ritualisticamente
acendeu uma fogueira perto do homem moribundo
enquanto sua primeira família formou um círculo fechado
em volta dele, e depois sua segunda família, formada por
primos, primas, tios e tias. Marimi sacudiu chocalhos nos
quatro pontos cardeais, invocando seus poderes. Ela cantou
para a lua, espalhou pó de alga marinha sobre o corpo do
homem e desenhou símbolos místicos com gordura de foca
e pigmentos sobre sua pele febril. Depois ergueu uma pedra
onde havia imagens de centopéias gravadas. Ela mostrou a
pedra à lua, aos quatro ventos, e despejou um pingo grande
de asfalto quente sobre a pedra, obliterando as imagens,
"matando" as centopéias, que eram símbolos da morte. De
imediato o homem começou a respirar mais facilmente, a
febre deixou seu rosto e, depois de outra série de músicas
cantadas pelas famílias, abriu os olhos e pediu água.
Godfredo chamava isso de magia, enquanto Marimi dizia que
era simplesmente o trabalho dos espíritos. E o que Marimi
considerava magia, Godfredo dizia que era simplesmente
ciência. Quando ele finalmente a persuadiu a experimentar
seus óculos, ela gritou que a magia neles a fez ver um mundo
diferente. Quando ele tentou explicar sobre vidro e lentes,
Marimi não quis ouvir. Especialmente quando ele
demonstrou como podia fazer fogo com seus óculos, apenas
os segurando contra a luz do sol sem precisar girar uma
vareta dentro de um pedaço de madeira.
Ele registrou suas práticas religiosas. No solstício de inverno,
os topaas se reuniram em um cânion sagrado onde toda a
tribo aguardou Marimi sair da caverna. Quando ela saiu,
Marimi bateu três vezes na pedra com o seu bastão-de-sol e
depois ergueu o bastão para o céu e "puxou" o sol para o
norte, significando o fim do inverno e o início do retorno do
sol. Todos festejaram e Godfredo tomou nota.
Godfredo registrou seus costumes sociais. Quando ele
observou Marimi fazer mingau de glandes num cesto,
soltando pedras quentes na refeição aquosa e mexendo
vigorosamente para evitar que o cesto queimasse, Godfredo
disse:
— Por que não usa uma panela?
Ela olhou para ele sem entender e ele percebeu que não vira
cerâmica na aldeia. Fora algumas peças de louça de barro
vidrado, que Marimi explicara terem sido trocadas com o
povo da ilha por asfalto, os topaas não faziam utensílios de
cerâmica de nenhum tipo. Eles cozinhavam suas comidas,
armazenavam suas sementes e carregavam água tudo em
cestos.
Don Godfredo anotou em sua crônica que, entre os mais
velhos, os dentes dos topaas eram todos gastos até as
gengivas — não eram quebrados, mas gastos. Ele descobriu a
resposta depois de suas primeiras refeições: havia areia no
mingau de glandes, e pó de pedra que penetrava nas
sementes, e terra que aderia às raízes e bulbos que eram
comidos crus.
Don Godfredo registrou que não havia plantação crescendo
em nenhum lugar, apenas pequenos lotes de tabaco, a única
planta que os topaas cultivavam. O tabaco era colhido,
secado em pedras quentes e depois esmagados em pequenos
pilões para ser fumado em cachimbos.
Mas a maior parte de sua crônica era sobre Marimi, de quem
gostava cada vez mais. Ele observava suas obrigações para
com os deuses, sua interação com a tribo, o jeito como ria,
sua inteligência vivaz, e um mistério mensal quando ela se
retirava por cinco dias para uma pequena cabana nos limites
da aldeia onde ficava sozinha, sem falar com ninguém, sem
ver ninguém, recebendo comida e água de suas parentas.
Godfredo aprendeu que esta era a prática de todas as moças e
mulheres da tribo durante a menstruação, o fluxo mensal
continha o tremendo poder da lua que precisava ser
reprimido. Se uma mulher falasse com outro membro da
tribo durante o seu tempo, ou tocasse sua comida, ou
passasse sobre sua sombra, ela podia causar-lhes doença e
morte. Acreditava-se também que elas ficavam vulneráveis a
doenças neste período e assim eram proibidas de lavar os
cabelos, comer carne, fazer esforço com trabalhos, dormir
com os maridos.
Finalmente chegou o dia em que Godfredo não pôde mais
conter a pergunta que queimava seu coração. Ele perguntou
a Marimi o que aconteceria se ela dormisse com um homem.
— Isso me faria adoecer e morrer, e toda a tribo também.
— E o que aconteceria com o homem.
— A tribo o mataria.

Ele acordou com um barulho de agitação e cheiro de fumaça.
Saindo da cabana, Godfredo viu o povoado em alvoroço com
pessoas amontoando peixes em cestos e amarrando fardos de
pele de lontra. Eles também estavam queimando suas
cabanas. Marimi explicou que estavam em sua jornada anual
para o interior da região para comerciar com outras tribos,
uma época também de queimar suas casas e construir novas
quando voltassem, em novos terrenos.
Quando Godfredo viu os homens carregando cargas pesadas,
pondo os cestos nas costas e enganchando as tiras sobre as
testas, ele disse para si mesmo: "Eu vou ensiná-los a fazer
rodas e carroças." E quando começaram a andar em direção
ao leste, como camponeses comuns, ele se perguntou se não
haveria cavalos em qualquer parte desta terra, ou quem sabe
burros, qualquer coisa que ele pudesse domar para usar como
animal de carga. A viagem levou dois dias, e durante esse
tempo Godfredo deu asas à imaginação.
Durante sua estada com os topaas seus cabelos tinham
crescido. Não havia nada para cortá-los, pois os topaas não
tinham tesouras ou navalhas ou pentes. Suas facas de pedra
faziam um trabalho tosco. Da mesma forma, sua barba
começara a crescer em desordem e então ele aprendeu a
fazê-la todos os dias com conchas afiadas. Agora, em seu
devaneio durante a caminhada para o leste, ele se imaginou
ensinando os topaas a extrair metal da terra e modelá-lo em
objetos úteis como facas, navalhas e panelas.
Ele fantasiava sobre muitas coisas enquanto seguiam a trilha
do antigo animal, um êxodo em massa de pessoas a pé sem
um único animal entre eles. Passaram por outros povoados,
alguns dos quais também estavam sendo desmontados para a
grande reunião mais adiante, subindo a trilha. Eles estavam
agora mais a leste do que Godfredo viajara, aproximadamente
quinze milhas para o interior, e, embora achasse os costumes
tribais similares, as línguas eram tão variadas como qualquer
língua na Europa. Marimi explicou que a trilha que seguiam
era o caminho que a Primeira Mãe seguira quando veio para
essa planície há muitas gerações. O povo acreditava que a
trilha estava lá desde o começo dos tempos.
Finalmente chegaram ao seu destino, o maciço
acampamento de muitas tribos, todos com abrigos armados
sobre um terreno plano. Marimi disse a Godfredo que era lá
onde eles obtinham a substância que usavam para
impermeabilizar suas canoas e cestos de água.
— La brea — disse ele, dando a ela o nome espanhol dos
poços borbulhantes de alcatrão negro no meio do
acampamento.
Marimi explicou que estavam lá para comerciar com
negociantes das tribos do leste, de lugares tão distantes como
a aldeia Cucamonga e mais além. Quando Godfredo viu que a
antiga trilha continuava diretamente para o leste, ele
perguntou para aonde ia.
— Yang-na — respondeu ela, e pelos gestos ele deduziu que
ela nunca estivera lá.
Marimi nunca fora além desses poços de alcatrão.
— Você não quer saber o que existe mais adiante? —
perguntou Godfredo quando ergueram abrigos com os ramos
e galhos de árvores que trouxeram.
— Para quê?
— Para ver o que há lá.
Ela olhou para ele.
— Para quê?
Pela primeira vez, Don Godfredo, que viajara milhares de
milhas até este lugar, ficou espantado por esta moça não ter
idéia da vastidão do mundo, não ter consciência de que vivia
num globo que girava no espaço, de que catedrais feitas por
homens tocavam o céu em terras distantes para além-mar.
Estes miseráveis poços fedorentos de alcatrão eram a
fronteira a leste mais distante do mundo. Ao norte, sua terra
era limitada por uma cordilheira onde cresciam carvalhos
sagrados que ela não transpunha, e para o oeste e sul ficava o
oceano que ela acreditava escorar o céu!
Mas nós sabemos, faz mais de cinqüenta anos agora, ele
queria gritar, que o mundo não é plano. E certamente não é
do tamanho de uma bacia comum como é o seu limitado
mundo, mas é vasto e aterrador e impressionante em suas
maravilhas. Ele tentou dizer a ela, desenhou na terra,
descreveu grandezas com as mãos, mas foi em vão. Marimi
apenas ria de seus trejeitos e achava que tudo isso era um
bom mito.
Naquele momento, Godfredo soube o que devia fazer.
Enquanto o povo de Marimi se engajava na troca de glandes,
pedra-sabão, frutos do mar, peles de lontra e foca por
artefatos de argila cozida, sementes de algarobeira e couro de
veado, chocalhando seus colares de conchas, que era a
moeda corrente universal, Godfredo formulou seu plano se-
creto. Quando os navios espanhóis retornassem, como estava
certo de que o fariam, ele levaria esta moça com ele e lhe
mostraria os esplendores de seu mundo. Ele a encantaria
com a sensação de sedas e pérolas sobre sua pele bronzeada,
mostraria a ela os monumentos erguidos pelos homens, as
obras de arte, os perfumes, as tapeçarias e os pratos de ouro e
prata, e a levaria para cavalgar em seu cavalo e a
surpreenderia com maravilhas que sua mente primitiva não
podia sequer imaginar.
Naquela noite, ele a observou durante a moagem de pedra, os
seios balançando sedutoramente. Marimi passara tinta
vermelho-ocre no corpo, dando a ele uma aparência lustrosa,
realçando os deleitáveis montes e vales de sua forma
exuberante. A visão dela o encheu com um desejo crescente.
O que havia nessa criatura selvagem que o encantava tanto?
Em primeiro lugar, ela salvara sua vida. Quando ele fora
arrastado para a praia, há muitos meses, ninguém quisera
tocar nele. Mas Marimi bravamente tocara. Mas havia mais
coisas em sua postura do que isso. Havia algo no jeito dela
andar tão graciosamente entre seu povo. Ele vira mulheres
de status semelhante em sua própria sociedade, freiras com
poder, damas com dinheiro e laços de família, mas poucas
eram graciosas e muitas abusavam de sua condição social e
dos seus privilégios.
Havia também algo vulnerável nela. Aqueles estranhos
encantamentos que a atacavam ocasionalmente. Podia ser
em qualquer lugar e a qualquer hora, e na primeira vez em
que os presenciara ele ficou alarmado. Ela gritara de dor e
caíra no chão. Os homens recuaram, enquanto as mulheres
se aproximaram para pegá-la e levar para a cabana. Lá,
Godfredo ficara na entrada da cabana enquanto via sua
cabeça girar de um lado para o outro em agonia. Ela então
caiu num sono profundo e mais tarde disse ter tido visões. As
mulheres lhe disseram que era uma doença sagrada que lhe
permitia comunicar-se com os deuses. Ele vira tais pessoas na
Espanha, freiras e monges santos. Mas eram cristãos que
falavam com os santos, e esta mulher pagã não era cristã.
Finalmente, havia a solidão. Mesmo Marimi sendo parte
integral da tribo, e sendo, de fato, o ponto focal de muito da
religião deles, ela também era ao mesmo tempo separada da
tribo, vivendo sozinha. A noite, nas outras cabanas Godfredo
ouvia conversas e risos, música de flautas, o som das varetas
enquanto jogavam jogos de azar, homens rindo enquanto
competiam vigorosamente. Risos de mulheres, choramingos
de crianças. Mas a cabana de Marimi estava sempre em
silêncio. Sua solidão o lembrava de sua própria, aquela que
carregara no coração depois de deixar os três túmulos para
trás na Espanha, sua esposa e filhos tirados dele quando a
febre varrera a cidade.
"Oh, donzela", lamentou ele em silenciosa agonia. "Então
não sabes o quanto padeço por ti?"

Na última noite do acampamento nos poços de alcatrão
Godfredo finalmente encontrou coragem para dizer a Marimi
o que estava em seu coração. Ele lhe falou das maravilhas de
seu mundo e de como desejava levá-la para vê-las. Para seu
espanto, ela chorou amargamente e confessou que o mesmo
desejo estava em seu coração. Ela não queria nada além de
ser sua esposa e ir com ele aonde ele fosse, mas isso nunca
poderia acontecer. Ela fora dedicada a seu povo e devia
manter seu voto de castidade.
Godfredo titubeou com essa declaração inesperada. Em toda
a sua ânsia carnal pela moça, nunca lhe ocorrera investigar o
sentimento dela por ele. Que ela o desejasse nunca lhe
passara pela cabeça. Mas agora que a confissão estava feita
seu desejo parecia queimar sua pele e subir até as estrelas.
— Não vou suportar ir sem você — lamentou ele. — Mas se
eu ficar não vou poder tê-la também! Marimi, se você for
comigo, as regras que a mantêm celibatária não mais se
aplicarão. Você ficará livre para se casar.
Ela não podia ir, disse Marimi chorosa, e ele nunca mais
devia falar de seu desejo por ela, pois isso era tabu e traria má
sorte para a tribo.
Um arrebatamento entrou em Godfredo naquela noite e,
quando o sono não pôde mantê-lo no colchão, ele saiu para o
cheiro fétido da noite e perambulou pelas praias negras dos
malcheirosos poços de alcatrão, sem se importar com alguns
insones que o observavam. Ele andava e gesticulava e gritava
ocasionalmente numa língua que ninguém de sua audiência
casual entendia. Os povos de Cahuilla, Mojave e de outros
povoados mais além tomavam conta de suas fogueiras e
observavam o torturado homem branco lutar com os
demônios.
Foi quando a idéia lhe ocorreu: ele ensinaria os topaas sobre
o mundo moderno. Ao ensiná-los a fazer papel e minerar
metais, usar a roda e domesticar animais, construir casas de
pedra e viver com relógios, ele abriria os olhos de Marimi,
fazendo-a ver como estava vivendo na ignorância e fazendo-
a querer de todo o coração voltar com ele.

Seu plano falhou.
Cada projeto, embora reunisse uma audiência interessada no
início, logo perdia sua novidade e as pessoas se afastavam.
Don Godfredo conseguiu fazer velas, que maravilharam os
topaas, mas quando as velas queimaram o povo de Marimi
não teve vontade de fazer mais. Quando ele fez um sabão
grosseiro, eles se cobriram de espuma alegremente na
arrebentação, mas perderam o interesse quando o sabão
acabou. Ele plantou um pequeno jardim de girassóis e
mostrou a eles como podiam ter sementes o ano todo, mas
quando as flores morreram por falta de cuidado também
morreu o interesse deles. Por que deviam mudar, as pessoas
perguntavam a Godfredo, quando viveram assim desde o
começo dos tempos e seus costumes sempre foram bons para
os topaas? "Mudança é progresso", ele tentara explicar. Mas,
para a sua exasperação, o progresso era um conceito que eles
não podiam entender.
Ele foi até a cabana de Marimi e perguntou a ela novamente
se não podia ser liberada de seus votos.
— Na sua terra — perguntou ela —, existem mulheres que
dedicaram suas vidas e suas virgindades aos deuses?
— Sim, as irmãs do convento.
— E se você desejasse uma delas, tentaria persuadi-la a
abandonar seus votos?
Ele a pegou pelos ombros.
— Marimi, o celibato é uma lei do homem, não de Deus!
— Você fala com o seu deus?
As mãos dele deixaram seus ombros.
— Eu nem sequer acredito nele.
Ela estendeu a mão para o crucifixo em volta de seu pescoço:
— E este homem, Jesus. Você acredita nele?
— Jesus é um mito. Deus é um mito.
Os olhos negros de Marimi se encheram de tristeza, e ela
olhou para ele por um longo e pesaroso momento. A doença
que agarrara a alma honesta de Godfredo não era mistério:
ele precisava acreditar em alguma coisa.

Levou dois dias para seguir a trilha do antigo animal dos
poços de alcatrão ao cânion em Topaangna.
Quando chegaram às montanhas, Godfredo e Marimi
seguiram uma trilha através de densa vegetação e lilases
selvagens. Aqui, eles se depararam com um caminho de chão
aberto, onde viram um coiote fêmea executando uma dança
louca: abaixava-se até o chão, focinho virado para cima, e
depois investia de repente para cima e para os lados,
abocanhava o ar e depois aterrissava para cavar a terra
loucamente. Quando fez isso repetidas vezes, Godfredo
recuou, temendo estarem diante de um cachorro louco. Mas
Marimi riu, explicando como o coiote estava simplesmente
caçando besouros de chuva. Seu povo chamava o coiote de
"O Trapaceiro", porque sabia-se que ele deitava e se fingia de
morto para atrair os abutres o mais perto possível para agarrá-
los e comê-los.
Quando chegaram a uma caverna num pequeno cânion,
Marimi parou e disse:
— E proibido para qualquer pessoa exceto para mim e outros
curandeiros entrar nesta caverna. Esta lei se aplica para todos
os topaas e membros de outras tribos. Mas você é diferente,
seus ancestrais moram em lugares distantes, e eu acho,
Godfredo, que com os seus óculos que faz você ver coisas
que outros não podem ver, e que faz o fogo aparecer
milagrosamente, você deve ser um xamã em seu mundo.
Então não é tabu para você entrar nesta caverna sagrada.
Enquanto ela o levava para dentro, sua voz ficou mais baixa,
num sussurro reverente.
— Nossa Primeira Mãe repousa aqui.
Godfredo viu que o túmulo era muito antigo, talvez uns mil
anos ou mais, e, quando Marimi depositou flores sobre ele,
ela disse:
— Nós sempre trazemos um presente para a Primeira Mãe.
Depois ela mostrou a ele a pintura na parede e contou-lhe a
história da primeira Marimi.
— Estou lhe contando isso, Godfredo, porque você tem um
vazio aqui — disse ela, pondo a mão sobre o peito. — Isso
não é bom para um homem, porque sem fé para encher o
vazio, maus espíritos encontrarão uma morada nele. Os
espíritos da tristeza e da amargura, do ciúme e do ódio. Eu
trouxe você aqui para encher esse vazio, Godfredo, com a
sabedoria da Primeira Mãe.
Godfredo baixou os olhos para a mão de pele acobreada
contra sua camisa que um dia fora branca. Ele olhou dentro
dos olhos inocentes porém sábios da moça indígena, sentiu o
peso da montanha em toda a sua volta, ouviu estranhos
sussurros na escuridão, sentiu as sombras mudarem e se
moverem, vigilante e esperando. A caverna lembrava-lhe de
uma gruta que visitara quando criança, onde dizia-se que
uma santa encontrara águas curativas. Talvez houvesse tais
coisas como cavernas mágicas afinal, talvez a Primeira Mãe
de Marimi estivesse realmente aqui.
Godfredo aprendera a carregar ferramentas com ele, como
faziam os homens topaas, e então tirou da sacola de couro
que pendia de sua cintura um pedaço de obsidiana, preto e
reluzente. Com sua ponta afiada entalhou numa parte clara e
limpa da parede de pedra: La Primeva Madre. Depois, disse
com um sorriso:
— Agora todas as gerações futuras saberão quem repousa
aqui.
Marimi fixou os olhos nas formas estranhas, admirada.
Quando Godfredo desenhara o mapa e escrevera sua crônica,
ele tentara ensinar Marimi a ler. Mas os símbolos
permaneceram apenas símbolos. Agora, enquanto olhava
para as letras recém-gravadas, uma luz surgiu em sua mente.
Estendendo a mão, tocou os entalhes com a ponta dos dedos
e seguiu o curso de cada um deles, pronunciando cada letra
em súbita compreensão.
Enquanto Godfredo a observava, ouvindo sua voz suave
sussurrar as palavras, ele ficou triunfante. Aqui estava o
milagre que ele desejara, a realização de seus devaneios: ele
ensinara a Marimi alguma coisa de seu mundo. E naquele
instante sentiu seu desejo transformar-se em uma emoção
mais terna. Apaixonou-se por ela.
Tomando-lhe as mãos, fê-la virar-se para olhar para ele.
— Você é uma virgem por causa desta primeira mãe?
— Sim.
— Exatamente como as irmãs na Espanha que dedicam sua
virgindade à Mãe de Deus. Marimi, eu não posso acreditar
em sua primeira mãe mais do que acredito em outra primeira
mãe chamada Maria. Mas respeito sua crença e seus votos.
Não vou mais lhe pedir que vá embora comigo, pois vejo
agora que é errado. Também não posso mais viver com você
entre seu povo. A dor é maior do que qualquer mortal pode
suportar. Eu vou partir.
Quando ela começou a chorar, ele a aconchegou nos braços,
estremecendo por dentro ao perceber que esta seria a última
vez que a veria.
Ele se afastou enquanto tinha força de vontade.
— Você disse que nunca visitam a Primeira Mãe sem deixar
um presente — disse ele, retirando os óculos e entregando a
ela. — Este é o meu presente para ela. — E de súbito ele teve
uma visão do futuro. — Homens virão e destruirão vocês —
disse ele com paixão. — Eu já vi isso acontecer aos impérios
no sul. Eles virão com seus escribas e sacerdotes, seus
homens cultos e soldados, e tomarão o pouco que vocês têm
e não lhes darão nada em retorno exceto subjugação, como
fizeram com os astecas e os incas e todos os lugares em que o
homem civilizado colocou os pés. Então eu vou andar em
direção ao sul para Baja Califórnia e vou dizer a eles que não
há nada aqui para eles, e, com sorte, você e seu povo não
serão incomodados, por algum tempo pelo menos.
Marimi ficou na caverna depois que ele se foi, sentindo o
coração partir em dois. Pela primeira vez na vida, não quis
ser a servidora escolhida da Primeira Mãe. Ela queria
Godfredo.
Olhou para os óculos em suas mãos, esses olhos maravilhosos
que permitiam a visão de outros mundos. Colocando-os
sobre o nariz, olhou primeiro para as letras que significavam
Primeira Mãe e depois para a pintura. Sentiu-se ofegante. Os
pictogramas cresceram! Eles enchiam sua visão e agora
revelavam detalhes pequeninos e imperfeições que nunca
vira antes. E, quando ela movia a cabeça, os símbolos
pareciam se mover também!
De repente uma dor atravessou seu crânio. Ela gritou e caiu
de joelhos, e tombou para o lado enquanto a doença familiar
tomava conta dela, primeiro mergulhando-a em escuridão e
depois em inconsciência.
Em seu sono breve, a Primeira Mãe veio até ela, uma visão
indistinta e trêmula que falou silenciosamente, comunicando
através de significados em vez de palavras, e o que ela disse à
sua servidora Marimi foi que o celibato era uma lei dos
homens, não dos deuses. A Primeira Mãe queria que suas
filhas dessem frutos.
Quando Marimi acordou, sem dor de cabeça, removeu os
olhos mágicos de Godfredo e, percebendo em excitação e
reverência que eles a capacitaram a viajar para o mundo
sobrenatural onde recebera a mensagem da Primeira Mãe,
correu para fora da caverna e pelo cânion abaixo, alcançando
Godfredo onde as grandes pedras estavam entalhadas com
símbolos do corvo e da lua.
— Eu serei sua esposa — disse ela.
Como a Primeira Mãe falara com Marimi e Godfredo não era
um homem comum, tendo vindo do oeste além do oceano
onde seus ancestrais moravam, os chefes, subchefes e xamãs
acharam que eles deviam ter permissão para se casarem. Mas
como isso era tabu, o mundo dos espíritos devia ser
consultado. Os xamãs ficaram na cabana baixa durante cinco
dias, consumindo sementes de estramônio e interpretando
suas visões, e enquanto isso Marimi e Godfredo jejuavam,
rezavam e se mantinham puros. Quando os anciãos saíram,
declararam Godfredo um ancestral reencarnado, um homem
especial enviado pelos deuses para ser parceiro da mulher-
xamã deles e que, na verdade, a união sexual com ele
aumentaria o poder de Marimi e portanto o da tribo.
A tribo celebrou o casamento durante cinco dias, comendo,
dançando e jogando, e quando a última noite culminou num
ritual de fertilidade sob a lua, com todos os membros da tribo
participando com os mesmos costumes que Godfredo certa
vez achara imorais, ele se deitou nos braços de Marimi e
conheceu o contentamento pela primeira vez em sua vida.
Chegou o dia em que mensageiros da costa explicaram que
velas tinham sido vistas no horizonte. Godfredo juntou
rapidamente seus mapas e a crônica e correu excitadamente
para a praia de onde viu o contorno distinto das velas contra
o azul. Marimi juntou-se a ele, com o primeiro filho deles
nos braços. Logo toda a tribo estava sobre as dunas e Marimi
trouxe os aparatos de fazer fogo para acender a fogueira. Mas,
enquanto suas mãos giravam a vareta, Godfredo a fez parar.
Ele de repente percebeu algo que nunca lhe ocorrera antes:
que se levasse Marimi com ele para a Espanha, ela seria uma
novidade, como foram os selvagens de Colombo na corte de
Isabel, um objeto de curiosidade e até de zombaria. Eles lhe
roubariam a dignidade e a alma. E ela definharia e pereceria,
uma flor longe de seu habitat natural. Nem ele mesmo,
percebeu com súbita clareza, poderia ir. Não poderia deixar
sua amada Marimi e o filho deles.
Godfredo lançou os mapas e a crônica dentro da fogueira
apagada, onde o pergaminho eventualmente ficaria úmido,
apodreceria e seria levado pela maré, e, pegando a mão de
Marimi, Godfredo virou as costas para as velas no horizonte
e a levou da praia de volta para casa.
Nas semanas, meses e anos que se seguiram algo estranho
aconteceu com Godfredo: ele começou a sentir um curioso
conforto em ouvir as histórias em volta da fogueira à noite,
contos que foram passados de geração em geração,
emocionando uma audiência que suspirava e sorria e batia
palmas de alegria ao ouvir as bravas explorações de seus
antepassados, ouvir como a tartaruga enganou o coiote,
como o mundo foi feito, como as estrelas capacitavam as
almas dos mortos a zelarem por seus filhos na terra. Don
Godfredo via nas palavras do contador de histórias uma linha
invisível que voltava no tempo, costurando o presente com
o passado até ficar indistinto, se o contador de histórias
estava recontando algo que acontecera há muito tempo ou
simplesmente na véspera. Não importava. As histórias eram
boas. Elas entretinham. E criavam uma sensação de se fazer
parte de alguma coisa, de união, tanto para os outros na
audiência quanto para aqueles que vieram antes deles.
Ele também passou a ver a inutilidade de seus ornamentos
europeus, que não eram mais símbolos de status ali entre
aquelas pessoas nuas, que, na verdade, os veludos
almofadados e algodões apertados não eram práticos numa
terra onde os verões eram quentes e secos, e os invernos
brandos. Godfredo se sentia tão confortável em sua pele
como os homens topaas se sentiam, então ele abandonou seu
gibão e colete e calções e andava como Adão andou no seu
próprio tempo.
Don Godfredo também percebeu que ele não sentia mais
falta de relógios e de dias da semana ou do número do ano.
Ele começou a sentir um novo ritmo de tempo em seus
ossos. Não mais procurava pelo relógio de sol para saber a
hora do dia, mas pelo próprio sol, caminhando no céu. E os
nomes dos dias não eram importantes, nem dos meses,
apenas as estações, que um homem conhecia instintiva-
mente, descobriu ele, como se seu próprio corpo interior
estivesse girando com as estações, aumentando e diminuindo
com a lua, vazando e recuando como as marés. O homem de
ciência estava começando a entender a conexão dos topaas
com a terra e a natureza. Ele viu que a espécie humana não
era separada das feras e das árvores como ele e seus amigos
em casa pensaram. Havia uma rede universal, tecida por um
tecelão cósmico, e todo homem, toda mulher, todo cervo e
falcão e molusco, todo arbusto e flor e árvore estavam
inextricavelmente entrelaçados.
Onde certa vez sentira que estava só e afastado, Godfredo
estava começando a sentir que pertencia àquele mundo
como jamais sentira antes. Sua casa em Castela tornara-se um
sonho. Seus livros e instrumentos, relógios e penas perderam
a importância. E ultimamente não ensinava os topaas sobre
rodas e metais, nem lhes deu um alfabeto ou ensinou-lhes
matemática. Se era desejo de Deus mantê-los na inocência
como Adão e Eva no Jardim do Éden, então quem era Don
Godfredo para oferecer a eles frutos da Árvore do
Conhecimento?
Don Godfredo de Alvarez viveu entre os topaas como
marido de Marimi durante vinte e três verões. Deu a ela doze
filhos e, quando morreu, eles o vestiram com suas roupas
originais, com o crucifixo de ouro no pescoço, e o cremaram
com grande cerimônia. Depois, numa magnífica canoa, eles
levaram suas cinzas para o mar para espalhá-las sobre as
ondas de onde viera. Seu segundo par de olhos, que deram à
Marimi uma vista mágica do mundo e que ele legara a ela
como lembrança de seu amor, ela o enterrara com a Primeira
Mãe na caverna, um presente do homem que viera do mar.

Capítulo Cinco

Passos. Respiração ofegante. O barulho de pás cavando a
terra.
Os olhos de Érica abriram-se repentinamente. Prendendo a
respiração, ela ouviu o silêncio da noite.
Metal batendo na terra. Picareta tinindo contra pedra. Uma
blasfêmia sussurrada. Respiração forçada. Uma... não, duas
pessoas.
— Oh, meu Deus! — gritou ela, saltando da cama e
procurando suas roupas na escuridão. Saiu apressada da tenda
e correu pelo acampamento até onde Luke dormia, num
antigo abrigo de camuflagem do exército. Entrando no abrigo
e quase tropeçando no saco de dormir em que ele se achava,
sacudiu-o pelos ombros e sibilou: — Luke! Acorde! Há
alguém na caverna! Pessoas! Cavando!
— Quê...? Érica? — espantou-se ele, esfregando os olhos.
— Avise os outros. Rápido!
— Érica? — disse ele, soerguendo-se no saco. Mas ela já se
fora.

— Espere! — sussurrou um dos homens, pondo a mão sobre
o braço do companheiro. — Escute! Alguém está vindo.
— Impossível — resmungou o outro, o rosto brilhando de
suor pelo esforço. — Ninguém pode nos ouvir aqui.
Continue cavando.
Mas antes que sua picareta pudesse fazer o próximo contato
sólido com a rocha, uma luz encheu a caverna de repente e
uma mulher gritou:
— O que estão fazendo aqui!?
E então, antes que eles pudessem reagir, ela voou para cima
deles com uma pá, baixando-a sobre suas cabeças e gritando a
plenos pulmões.
Um dos intrusos conseguiu empurrá-la e sair da caverna
onde se precipitou contra um andaime, longe do barulho de
passos agora marchando em direção ao sítio de escavação.
Mas o outro homem ainda estava lá dentro, gritando: "Pare!
Por Deus!", enquanto tentava se desviar dos golpes da pá de
Érica. Quando ela levantou novamente os braços, ele
investiu contra ela com a cabeça baixa, derrubando-a, depois
deu meia-volta e saiu em disparada para a entrada da caverna.
— Pare! — gritou Érica, tentando correr atrás dele. —
Alguém me pare esses homens!
Havia outros gritos agora, e o barulho de pés no andaime do
lado de fora. Quando Érica saiu correndo para fora, colidiu
com Jared, o qual, como todos os outros, estava semivestido
e desnorteado por ter sido acordado de sobressalto.
— Aqueles dois homens! — disse Érica sem fôlego,
apontando para a cratera da piscina de Zimmerman. — Não
os deixem fugir!
Jared desceu apressado pelo andaime.
Luzes de segurança acenderam pelo acampamento. Figuras
foram vistas correndo na escuridão: pessoas perseguindo os
invasores.
Luke desceu a escada desajeitado, os longos cabelos louros
desgrenhados.
— Eu chamei a polícia, Érica. O que houve? Eles
conseguiram fugir?
Mas ela já estava voltando para dentro da caverna, a luz de
sua lanterna varrendo o chão e as paredes.
Ela parou e olhou sem acreditar. O esqueleto...
Érica caiu de joelhos e estendeu o braço com a mão trêmula.
Crânio esmagado. Ossos estilhaçados. Pelve rachada como
um ovo.
— Minha nossa! — sussurrou Luke. — Que diabos eles
estavam fazendo?
— Chame o Sam — disse ela com a voz sumida. O crânio da
Senhora. Em pedaços. O maxilar quebrado. — Ele tem o
sono pesado. Vá acordá-lo.
— Érica...
— Vá!
Ela levantou-se trêmula e ergueu a lanterna para a pintura.
Fendas obscenas na rocha. Os invasores meteram a picareta
nos pictogramas.
Érica quase não ouviu o barulho de botas subindo a escada do
lado de fora, a respiração ofegante de alguém que correra
uma boa distância. Ouviu-o entrar, sentiu a presença dele lá
parado. E depois escutou Jared dizer:
— Eles conseguiram fugir.
Érica fechou os olhos cega de ódio. Ela os encontraria. De
algum modo, ela encontraria os homens que fizeram isso.
Ele entrou até o fundo da caverna, parou na semi-escuridão
por um momento, depois disse:
— Espero que esteja satisfeita.
Ela virou-se para ele. Através dos olhos cheios de lágrimas,
viu manchas de terra em seu peito nu, o brilho de suor pela
perseguição aos vândalos. Não havia como ignorar a fúria em
seus olhos quando perceberam a destruição na caverna.
— Que quer dizer? — disse Érica.
— Você expôs essa mulher quando ela devia ter sido deixada
em paz — disse ele. — Antes de você chegar com suas pás e
pincéis, ela estava segura em seu túmulo, onde esperava
descansar pela eternidade.
Ela olhou fixamente para ele. Ele a estava culpando por isso?
Na escuridão da caverna, Érica enfureceu-se.
— É, olhe para ela! — gritou Érica. — E fui eu quem deteve
os profanadores! Não me lembro de ter visto você fazendo
nada para garantir a segurança deste sítio que você
aparentemente acha tão sagrado, Sr. Comissário. Mas eu fiz
alguma coisa. — Érica tirou um objeto do bolso e botou na
cara dele. — Isto é apenas uma babá-eletrônica. Eu escondi o
transmissor na caverna e pus o receptor ao lado de minha
cama. O barulho dos invasores me acordou. Eu fiz alguma
coisa! O que você fez?
Jared ficou olhando para ela, a boca parcialmente aberta, e
pareceu por um momento que Érica ia atirar o aparelho na
cara dele. Em vez disso, ela o enfiou no bolso novamente e
passou marchando por ele para a entrada da caverna onde
encontrou Luke voltando do acampamento.
— Você estava certa, Érica. Sam estava ferrado no sono.
Ela quase não podia falar.
— Luke, quero que você fotografe tudo dentro da caverna,
exatamente como está, não toque ou mova nada do lugar. E
não... — disse ela, começando a tremer. — Não deixe
ninguém entrar. Vou ter de escrever um relatório completo
sobre esse desastre antes de poder começar por ordem.
— Ei! — disse ele. — Você está bem?
— Eu tenho de sair daqui antes que eu mate aquele homem!
— disse ela, apontando o polegar bruscamente na direção da
caverna.
Ela encontrou Sam no topo da crista, uma alça do
suspensório presa no ombro, a outra solta. Os cabelos
arrepiados eram o de alguém atingido por um raio.
— Você não vai acreditar, Sam, quando vir o que eles
fizeram.
— Luke me deu uma boa idéia do que houve. O esqueleto,
muito danificado?
Lágrimas desceram pelas faces de Érica e ela tremia tanto que
teve de segurar os braços.
— Muito. Nós devíamos ter feito mais para protegê-la.
Sam parecia tão aflito que era como se estivessem falando de
uma pessoa viva.
— Eles levaram muita coisa?
Érica passou a manga do suéter no rosto e segurou as
lágrimas. Depois, olhou para Sam.
— O que você disse?
— Você pode ver se levaram muita coisa?
Érica franziu as sobrancelhas e visualizou a caverna, a parede
e o esqueleto danificados. Depois sua expressão transformou-
se numa cara de surpresa.
— Sam! Eles não levaram nada! Eles não estavam carregando
sacos ou bolsas quando fugiram, e eu não vi nenhum que
pudessem ter deixado para trás.
— Isso é estranho.
— Não, não é — disse ela indignada. — Porque eles não eram
caçadores de relíquias. Sam, você já viu pilhagens de sítios.
Os ladrões apenas pegam os artefatos e fogem. Eles não
param para destruir o sítio, não mais do que um ladrão de
jóias pararia para destruir a casa da vítima. Este foi um
vandalismo intencional.
O veterano arqueólogo apertou os olhos na direção dos faróis
se aproximando. A polícia.
— Mas por quê? Qual é o objetivo do vandalismo?
— Ele deixa a caverna inútil para os arqueólogos e isso deixa
os americanos nativos ficam furiosos o bastante para mandar
lacrar a caverna, e assim os proprietários podem ter suas
casas de volta.
Suas sobrancelhas espetadas levantaram.
— Você acha que Zimmerman está por trás disso?
— Eu apostaria minhas credenciais nisso — disse Érica,
virando-se na direção da caverna, onde pessoas estavam de
pé na beira do rochedo, perambulando sem rumo, como
formigas cujo formigueiro foi chutado.
Ela viu Jared no meio da multidão, falando com os operários
americanos nativos. A maioria deles, como Jared, estava sem
camisa, longos cabelos negros descendo pelas costas nuas.
Eles estavam zangados, alguns levantando os punhos, como
bravos se preparando para a guerra, pensou Érica. Ela voltou
sua atenção para Sam.
— Os proprietários não querem nada além do que acabar com
a escavação. Nossa pesquisa está atrapalhando o movimento
deles contra a execução do título. Se a corte decidir em favor
deles, este cânion pode ser aterrado e suas casas devolvidas a
eles. Mas não enquanto isso for uma escavação arqueológica
vital. Então que melhor maneira de eliminar o obstáculo do
que destruir a caverna além de qualquer utilidade para nós?
Nós precisamos de segurança, Sam. Tenho a sensação de que
ainda não vimos o fim disso.

Jared estava com uma dor de cabeça que nem aspirina dava
jeito.
Passaram-se doze horas desde a invasão e seu humor estava
tão negro como os seus cabelos. Não voltara a dormir —
ninguém dormira mais depois do que acontecera. Havia
perguntas para serem respondidas para a polícia, descrições
vagas dos vândalos e cálculos dos danos feitos dentro da
caverna, uma conversa rápida com Sam Carter, que
transmitiu a teoria de Érica de que os proprietários podiam
estar por trás do ataque, seguido do impulso quase
incontrolável de Jared de marchar até o acampamento dos
proprietários, arrastar Zimmerman pelo colarinho e extrair
uma confissão dele.
Jared voltara ao seu trailer para encontrar as linhas de seus
telefones já tocando — emissoras de televisão, repórteres e
grupos de americanos nativos numa comoção sobre a
profanação de um cemitério indígena sagrado. Eles acusaram
os arqueólogos anglo-saxões de negligência, embora Jared
tenha apontado que foi a Dra. Tyler quem pensara em
colocar um transmissor na caverna e que fora ela quem
impedira os vândalos antes que pudessem causar mais danos.
Não importava. A profanação acontecera. O resultado já era
evidente.
Enquanto Jared engolia outra aspirina e desejava poder ir ao
clube, embora ainda faltassem horas para a sua sessão
noturna regular, não conseguia parar de rever mentalmente a
cena na caverna quando as lágrimas de Érica o gelaram.
Ele pensara que ela fosse um mulher durona. Quando entrara
na caverna, Érica estava de costas para ele. Ele dissera:
"Espero que esteja satisfeita." Mas quando ela se voltara para
ele e ele vira seus olhos cor de âmbar cheios de lágrimas, isso
o derrotara. Érica então desencadeara um discurso e ele
estava muito preso à situação para reagir. Tudo o que pôde
pensar foi que ela de repente estava exposta e vulnerável,
não mais uma adversária mas uma vítima, revelando a ele um
lado indefeso que o fez desejar naquele momento que não
fizesse parte de tudo isso, que nunca tivesse se envolvido no
movimento ativista, que nunca tivesse conhecido Netsuya,
que estivesse de volta em seu escritório em San Francisco,
trabalhando com escrituras, transferências de propriedades e
contratos ao lado do pai.
E depois ela saíra marchando e ele ainda estava atordoado
para sair atrás dela e retratar-se. Ele não quis magoá-la. Suas
palavras vieram da raiva que carregava consigo dia e noite.
Netsuya foi enterrada em um cemitério americano nativo.
Quando ele vira o crânio e os ossos esmagados da
curandeira...
Ele olhou para a tenda de Érica do outro lado do
acampamento ensolarado. Uma babá-eletrônica. Ela não fora
à loja Radio Shack e comprara um equipamento de vigilância
de alta tecnologia ou dispositivos impessoais de detecção
eletrônica. Comprara, ao contrário, uma simples babá-
eletrônica, como se esperasse ser acordada durante a noite
pelo choro brando da mulher anciã.
— Comissário Black?
Ele virou-se e viu um homem parado na porta de tela do
trailer. O dia estava ensolarado e ameno; Jared deixara a porta
destrancada.
— Sim? — disse ele, sem reconhecer o visitante.
O homem estendeu-lhe um cartão de visita.
— Julian Xavier, advogado. Posso entrar? Tenho algo de
natureza confidencial que gostaria de discutir com o senhor.
Depois de sentar-se em uma das cadeiras de couro, o homem
alto e magro, com óculos de aro dourado, colocou a pasta de
pele de enguia cuidadosamente sobre os joelhos e explicou
que estava ali para falar em nome de uma elite de pajés e
xamãs de várias tribos de americanos nativos.
— Eles temem que o que está acontecendo aqui em Emerald
Hills, comissário, seja um sintoma da doença no mundo de
hoje. Dizem que a calamidade ocorrerá à espécie humana se
a caverna não for lacrada.
Jared, que permaneceu de pé, esperou.
Xavier examinou as mãos perfeitamente manicuradas, um
homem medindo as palavras.
— Sei que o senhor já representa vários grupos de americanos
nativos, comissário, e que como membro da CHAN é sem
dúvida um homem muito ocupado. Mas meus clientes
gostariam de contratar os seus serviços.
— Mas o senhor já os representa, Sr. Xavier — disse Jared,
cruzando os braços. — Por que eles iriam me contratar?
O visitante puxou os punhos da camisa, pesados com
abotoaduras de ouro.
— Primeiro, o senhor está mais perto da questão do que eu;
seu envolvimento é bem conhecido; o senhor conhece
todos os fatos, os contatos em Sacramento, e assim por
diante. Vantagens, Sr. Black, que meus clientes acham que
ajudarão a causa deles. Eles também apreciam sua opinião
sobre os arqueólogos, já que é a mesma deles.
— E qual é minha opinião sobre os arqueólogos?
-— Bem — disse Xavier, limpando a garganta —, o senhor
acredita que eles estão profanando um lugar sagrado e
gostaria de vê-los pelas costas o mais rápido possível. O
senhor tem afirmado isso publicamente, comissário.
— E o que exatamente esses clientes querem que eu faça?
— Como eu disse, o senhor tem muita intimidade com o
assunto e tem certas vantagens que alguém de fora como eu
não teria. Deixe-me acrescentar logo, comissário, que meus
clientes possuem capital para um caso assim tão especial e
estão preparados para pagar o que o senhor pedir.
Jared olhou fixamente para o homem.
— E quem o senhor disse que são essas pessoas?
Um sorriso rápido e seco.
— Bem, não tenho liberdade para divulgar suas identidades.
Francamente, isso é uma coisa que até eu não entendo
totalmente. Algo a ver com leis tribais e tabus, e coisas do
tipo.
Jared balançou a cabeça lentamente.
— Mas, se eu decidisse pegar o caso deles, não teria uma lista
com os seus nomes?
— Bem, hã, não, eu acho que não. Eles não podem arriscar o
envolvimento deles nisso se tornando conhecidos por causa
de rivalidades tribais e juramentos prestados, o capital está
depositado e pode ser transferido assim que senhor aceitar.
— O que exatamente eles querem que eu faça?
— Ora, fechar a caverna, é claro — respondeu Xavier,
piscando para ele. — Acabar com a profanação pelos
arqueólogos brancos e proteger o corpo e objetos fúnebres
da mulher no túmulo. Isso é coisa sagrada, comissário. Meus
clientes são homens santos que operam no topo do escalão
em assuntos relacionados aos americanos nativos. Poderia se
dizer que eles são o equivalente indígena do Colégio de
Cardeais.
Jared pensou por um momento enquanto os sons do
acampamento entravam pela janela aberta.
— Bem, Sr. Xavier — disse por fim —, pode dizer a seus
clientes que meus serviços não serão necessários. Muito
provavelmente o Estado reivindicará o domínio eminente,
nesse caso será oferecido aos proprietários o justo valor de
mercado por suas propriedades. As casas serão demolidas e a
caverna ficará então sob a proteção do Instituto de Proteção
Ambiental e muito provavelmente será entregue aos
representantes tribais. Caso isso não aconteça, entrarei com
um pedido de injunção permanente contra a aterragem do
cânion, e nesse caso os proprietários também perderão. De
qualquer forma, Sr. Xavier, a caverna estará protegida.
Uma tosse rápida e nervosa.
— Bem, sabe, meus clientes não querem que a caverna seja
apenas protegida, eles a querem fechada... permanentemente
— disse Xavier, passando as mãos espalmadas sobre sua pasta
cara, como para indicar o conteúdo precioso lá dentro, e
prosseguiu: — Deixe-me enfatizar, comissário, que dinheiro
não é problema para meu clientes, não quando se trata de
prevenir que um sacrilégio seja cometido em campos santos.
Isso já aconteceu muitas vezes na história deles. E, é claro,
eles estão cientes de que o senhor tem um interesse pessoal
nessas questões. Sua esposa...? — disse ele, deixando o
significado pairando no ar.
— Sim — disse Jared. — Minha esposa era uma americana
nativa, e a preservação de cemitérios indígenas era uma de
suas causas.
Jared fez uma pausa para pensar novamente, analisando bem
seu visitante enquanto o homem mantinha um sorriso fixo
no rosto.
— Sr. Xavier — disse ele, indo até a porta de tela e abrindo-a
—, o senhor poderia vir comigo por um instante?
O sorriso de Xavier se desfez.
— Ir com o senhor? Aonde?
— Apenas para me ajudar a esclarecer alguns pontos. Não vai
demorar.

— "Examinando o registro histórico" — ditava Érica em seu
gravador —, "consegui determinar que o dono dos óculos
devia ser um tripulante navegando com Juan Cabrillo que,
em 1542, ancorou em alguma parte entre Santa Mônica e
Santa Barbara e teve um breve contato com os índios
chumashes. Mas por que os óculos do homem foram
enterrados na caverna? Será que ele foi enterrado lá também?
Por que um europeu seria enterrado numa caverna sagrada
indígena?"
Desligando o gravador, Érica fechou os olhos e massageou as
têmporas. Ela não conseguia se concentrar. A destruição do
esqueleto. Embora Sam a tivesse elogiado por ter evitado
uma calamidade verdadeiramente desastrosa, sentia-se
responsável. Ela tivera uma premonição de que algo ruim iria
acontecer e tudo o que fizera foi colocar uma simples babá-
eletrônica na caverna. Sam dissera que tinha sido uma ótima
idéia. Luke e todos os outros estavam dando tapinhas em
suas costas pela precaução. Ela era uma heroína para todos os
envolvidos na escavação de Emerald Hills.
Com uma única exceção. "Espero que esteja satisfeita."
Seus pensamentos mudaram para Jared e sua aparência na
noite passada, seu peito nu sujo de terra e suado. Esguio mas
musculoso, o que a fez pensar novamente aonde ele ia toda
noite por duas horas, fora do alcance de telefone ou bip.
Mas, mais do que isso, foi a expressão que vira em seu rosto
quando ele disse: "Espero que esteja satisfeita." Primeiro de
fúria — a mesma ira negra que vira quando esteve perto do
belvedere numa discussão silenciosa com o oceano —, mas
no instante seguinte ele pareceu surpreso. Teria sido por
causa do que ela dissera? Érica quase não conseguia se
lembrar das palavras que escaparam de seus lábios quando
atacou Jared Black e sua arrogância. Ela ficou surpresa por
não ter atirado a babá-eletrônica nele, tal era sua raiva. E
depois, para seu assombro, ele não dissera nada em resposta.
O que o fizera ficar lá em silêncio e deixá-la sair marchando
sem tentar dar a última palavra?
Ela ainda estava furiosa com ele. Érica raramente ficava
zangada com alguém ou alguma coisa por muito tempo.
Raiva era perda de energia e tempo e não levava a nada. Mas
neste caso não conseguia evitar. "Espero que esteja satisfeita."
Culpando-a por algo que ela sozinha tentara evitar! O que
quer que tenha dito a ele em sua investida, não fora o
bastante. Érica tinha vontade de marchar até o trailer dele, e
gritar: "E tem outra coisa, Sr. Comissário..."
Quando ouviu passos perto de sua tenda, Érica deixou o
trabalho de lado, pensando que fosse Luke vindo entregar o
relatório dos danos na caverna. Ela tentara mais cedo voltar à
caverna e fazer uma avaliação completa do vandalismo, mas
estava tão desolada com o que acontecera que teve de sair e
deixar a tarefa para Luke. Só não me diga que encontrou mais
ossos quebrados.
Para sua surpresa, ouviu Jared chamando pelo seu nome.
Érica foi até à porta e semicerrou os olhos por causa da
claridade. Ele estava vestindo roupas mais casuais
ultimamente, notou ela, pensando que a camisa de cambraia
e o jeans azul lhe ficavam bem, e imediatamente desejando
que não ficassem.
— Dra. Tyler? — disse ele. — Podemos interromper seu
trabalho por um instante?
Ela olhou para o companheiro de Jared, um estranho com
uma expressão intrigada no rosto. Érica notou que o homem
puxava o colarinho da camisa nervosamente.
Ela não os convidou para entrar.
— O que houve?
— Este é o Sr. Xavier, um advogado que representa um grupo
de americanos nativos que deseja contratar meus serviços. —
Érica esperou. Jared olhou para o homem. — Sr. Xavier, o
senhor se importaria em repetir para a Dra. Tyler o que me
disse há alguns minutos?
Um rubor subiu do pescoço do homem até o contorno do
couro cabeludo.
— Bem, eu...
— Apenas repita o que me disse. Algo sobre dinheiro não ser
problema, creio eu?
Xavier ficou aturdido por um instante, e Érica pensou que ele
fosse sofrer um colapso bem ali na frente dela. Depois ele
girou abruptamente sobre os calcanhares e saiu apressado.
— O que foi isso? — perguntou Érica, olhando para Jared.
— Um mercenário enviado pelos proprietários. Oferecendo-
me suborno para fechar a caverna.
Quando ela fez menção de voltar para dentro, Jared disse:
— Dra. Tyler, queria me desculpar pelo que disse ontem à
noite. Eu estava descontrolado e não devia ter falado daquele
jeito. Fiquei muito perturbado quando vi o que os vândalos
fizeram.
Ela olhou para ele por uma fração de segundo, pensando na
expressão franca e honesta em seus olhos cinza e lembrando
das palavras de Sam: "A esposa de Jared? Quer dizer que você
não sabe?" Então ela disse:
— Eu ia fazer um café, se quiser me acompanhar...
Ele a seguiu para dentro.
— Eu também fiquei perturbada — disse ela, enquanto
pegava uma garrafa de água da geladeira e enchia a cafeteira.
— E provavelmente disse algumas coisas para você que não
devia, embora eu realmente não me lembre do que disse.
— Você me colocou no meu lugar — disse ele, sorrindo —,
foi isso o que você fez.
— Sr. Black, nós dois nos preocupamos com a mulher que
está enterrada na caverna. O senhor e eu não devíamos ser
adversários.
Mas ele balançou a cabeça.
— Eu ainda acho que o que você está fazendo é errado. Você
pode chamar o que faz de escavação em nome da ciência.
Mas para mim continua sendo violação de túmulos. E para
quê? Para exibir em museus?
Ela o encarou, com as mãos na cintura.
— Eu vou lhe dizer o que estou fazendo. Quando os
espanhóis chegaram e estabeleceram as missões aqui há 230
anos, os índios foram arrebanhados de suas aldeias e ou
foram subornados ou amedrontados para se converterem ao
cristianismo. Não lhes era percnitido praticar suas velhas
religiões ou continuar com suas tradições. E depois a maioria
deles morreu de doenças do homem branco. A conquista
aconteceu tão velozmente que em duas gerações os
costumes, a história e até as línguas dessas tribos foram
perdidas. Mas os arqueólogos estão começando a reconstruir
essas culturas perdidas. E se você tirar todos esses artefatos
dos museus, como querem os americanos nativos, e os enter-
rar novamente, isso será um retrocesso. Quando levamos
grupos de alunos aos museus, nós ensinamos às crianças
como as pessoas que estavam aqui antes de nós viveram. Se
não fizermos isso, as crianças crescerão sem saber o que
aconteceu antes.
Suas palavras pairavam no ar quando os olhos de Jared
encontraram os dela.
Então ela virou-se para a cafeteira, que acabara de passar o
café, e encheu duas canecas decoradas com figuras de
desenhos animados.
— O desavergonhadamente caro Amaretto — disse ela,
enquanto passava ao comissário a caneca com o Patolino. —
Minha única extravagância — acrescentou com um sorriso,
tentando desfazer a tensão.
Era a primeira vez que Jared entrava em sua tenda, e ele
olhou em volta, tentando não ser óbvio sobre isso,
procurando pistas que jogassem uma luz sobre essa mulher
que continuava sendo um mistério para ele — dura em
certos momentos, vulnerável em outros, dura novamente,
mas sempre apaixonada pelo seu trabalho. O que ele viu o
deixou surpreso. A tenda parecia ser habitada há anos. Ela
certamente tinha a habilidade de se mudar para um lugar e
fazer dele um lar. Pensou em seu próprio trailer, que estava
alugando e era apenas temporário. O Winnebago estava
cheio de luxo e conveniências, mas faltava a personalidade
que via aqui: uma Estátua da Liberdade de trinta centímetros
com um relógio no estômago, um totem em miniatura de um
esquimó, um cartaz do filme As minas de Salomão, um
calendário dos salva-vidas de Malibu, o que parecia um cacto
florido num vaso mas que na verdade era uma vela, uma
caixa de biscoitos aberta; e, finalmente, uma fotografia
autografada de Harrison Ford: "Para minha arqueóloga
favorita." E assinado, "Indiana Jones". Ele olhou para o
computador dela. O pad do mouse era um tabuleiro de ouija.
Quando finalmente fixou o olhar numa estante cheia de
toucas de bebê, Érica disse:
— Meus bichinhos de estimação. Eu as levo comigo em todo
lugar.
Ele viu nomes pendurados nelas: Ethel, Lucy, Figgy.
— Elas se dão muito bem — acrescentou ela com um sorriso.
— Na maioria das vezes.
Mas não havia retratos de família ou de familiares. Depois ele
viu a pilha de correspondência em cima da cama — revistas,
contas, cartas, circulares —, todas endereçadas a Érica em
uma caixa postal em Santa Barbara.
Quando a pegou olhando para ele, Jared ficou levemente
ruborizado e mexeu o café um tanto inibido.
— Então sua casa é em Santa Barbara?
Ela encostou-se na mesa de trabalho e tomou um gole do
café.
— É lá que a minha correspondência é entregue. Não tenho
uma casa permanente. De fato — disse ela, abrindo os braços
—, esta é a minha casa no momento.
Ele tomou o café, olhando para ela por sobre a borda da
caneca, tentando esconder sua perplexidade. Isso era tudo?
Tudo o que ela possuía estava contido neste pequeno espaço?
— Certa vez visitei um amigo que estava fazendo uma
escavação no Novo México. Sua tenda era cheia de artefatos.
Sua coleção particular. Ele nunca viajava sem ela — disse ele,
olhando em volta da tenda. — Acho que esperava ver a
mesma coisa aqui.
— Eu não coleciono artefatos. Não acredito em coleções de
antigüidades particulares.
Ele olhou surpreso para ela.
— Mas há um minuto você disse que...
— Eu acredito em coleções de museus, porque elas são
compartilhadas com o público e porque favorecem o
aprendizado e a compreensão. Sou contra coleções
particulares de objetos arqueológicos. Isso promove o roubo.
Desde que haja colecionadores que paguem bons preços
pelos objetos das tumbas, as tumbas serão sempre saqueadas.
O comércio de relíquias só faz encorajar os roubos de
túmulos que você denuncia.
Jared viu-se de repente pensando nos poucos itens em sua
casa em Marin County, genuínos artefatos pré-colombianos
pelos quais pagara um bom dinheiro. Nunca lhe ocorrera
imaginar a que preço cultural esses objetos foram obtidos.
Quando estava prestes a comentar a tática desesperada de
Zimmerman e dos proprietários, e que todos deviam ficar
mais do que vigilantes nos próximos dias, eles ouviram
batidas de botas no chão do lado de fora, e de repente Luke
entrou, dizendo:
— Érica, você precisa ir ver isso!
— O que foi? — perguntou ela, pondo a caneca sobre a mesa.
— Na caverna! Comecei a limpar um pouco... Não, não, não
toquei em nada, mas... Érica, você precisa ver isso!
Os três correram até a borda do cânion e desceram pelo
andaime. Dentro da caverna, Érica ficou de joelhos e
gentilmente passou o pincel na terra sobre um objeto
recentemente exposto.
— Parece que foi embrulhado em algum tipo de tecido —
murmurou ela. — Apodreceu, mas uma análise microscópica
das fibras... Deus do céu! — disse, de repente. — É um
relicário.
Jared inclinou-se para olhar mais de perto.
— Um relicário?
— Um receptáculo para relíquias. Normalmente os ossos ou
cabelos de um santo — disse ela, removendo um pouco mais
de terra, expondo uma mão e antebraço feitos inteiramente
de prata. — Definitivamente um relicário. Bem, parece que
mais alguém além da Senhora está enterrado nesta caverna.
— Que santo é esse, Érica? — perguntou Luke com a voz
elétrica pelo excitamento. — De quem são os ossos? Você
sabe dizer?
— E como isso chegou até aqui? — pensou Jared em voz alta.
Érica escolheu um pincel mais macio.
— Depois de Cabrillo em 1542, não houve mais contato nos
227 anos seguintes. Imagino que quem quer que tenha
trazido isto para a América não o fez antes de 1769. — Ela
limpou um pouco mais da terra e aproximou a luz. Quando
leu o nome escrito na prata, Érica prendeu a respiração.
Depois olhou para os outros, total descrença em seu rosto. —
Receio que nossa pequena escavação esteja prestes a se
tornar assunto internacional.
— Por quê? — perguntou Jared.
— Porque vou ter de relatar isto — disse ela, apontando para
o braço de prata semi-enterrado — ao Vaticano.

Capítulo Seis

Teresa
1775 da era cristã

Teresa tinha dois desejos: saber o que tanto preocupava o
irmão Felipe e descobrir um meio de resolver o problema.
— Nós colhemos apenas as folhas da dedaleira — dizia Felipe
naquela voz que sempre soava para ela como uma brisa de
verão sussurrando pelo cânion, calma e tranqüila.
Tudo sobre o irmão Felipe era calmo e tranqüilo — o jeito de
andar, tão sem pressa como o de alguns padres, seus modos
tão serenos como o jardim por onde andava. O modo de
comer, esperando minutos entre garfadas como se saboreasse
a generosidade da terra. Quando fazia uma pausa em suas
tarefas, as mãos postas dentro das mangas volumosas da
túnica, e curvava a cabeça raspada num momento de prece e
reflexão. Mas o aspecto mais brando dele eram os seus olhos,
pensou Teresa, gentis como os de uma corça, portas abertas
para um lugar calmo e distante onde não havia ódio ou
violência, dor ou morte. Às vezes, quando Teresa não podia
mais agüentar o sofrimento de seu povo, que estava caindo
doente num ritmo pavoroso, ela olhava nos olhos verdes-
musgo de irmão Felipe e sentia seu espírito voar para dentro
deles, para aquela preciosa e tranqüila solidão.
Pelo menos, era assim até recentemente. Mas uma mudança
perturbadora tomara conta de irmão Felipe nos últimos
tempos, uma mudança talvez tão sutil que só Teresa, que
trabalhava diariamente ao seu lado no jardim de plantas
medicinais, podia sentir. A mudança não era tão evidente em
seus modos ou linguagem, mas havia novas sombras sob seus
olhos, e uma estranha expressão sombria que não estava lá
três anos antes, quando ele chegou à Missão.
Teresa padecia de amor pelo jovem frade, mas nunca poderia
dizer isso a ele. Irmão Felipe era um homem santo cuja vida
era dedicada a seu deus e à purificação dos espíritos. Como os
padres da Missão, ele não pensava em questões envolvendo
homem e mulher, amor e sexo. Ele até prestara juramento de
celibato. Embora não houvesse celibato entre o povo de
Teresa, havia um maravilhoso mito topaa que falava de um
herói que viera do mar certo dia e se apaixonara pela
curandeira do clã. Isso acontecera há gerações. Naquela
época, as mulheres-xamãs não podiam se casar e
permaneciam castas a vida toda. Depois que o herói se casou
com ela, no entanto, todas as curandeiras subseqüentes
receberam permissão para ter maridos, razão pela qual a mãe
de Teresa se casou, e porque a própria Teresa esperava se
casar um dia, embora estivesse destinada a ser a curandeira
do clã. Mas não podia ser com qualquer um. Ela queria
Felipe.
— A dedaleira — dizia ele.
Teresa detectou uma nova tensão em sua voz que
certamente não estava lá na véspera! Estaria saudoso? Estaria
ansiando pela terra de seus ancestrais? Teresa nunca
conhecera ninguém, topaa ou estrangeiro, que ficasse feliz
durante muito tempo longe de sua tribo. Contudo os padres
estavam lá há seis anos, construindo suas estranhas cabanas,
cultivando sua estranha comida e domesticando seus estra-
nhos animais, e não estavam dando nenhuma indicação de
que partiriam logo. Mas o irmão Felipe não era como os
padres, que pareciam feitos de espíritos fortes. Felipe era um
homem gentil, recém-saído da adolescência, com uma pele
clara que ruborizava com facilidade, e um sorriso doce e
tímido. Houve vezes em que Teresa pensou que o irmão
Felipe não fosse um ser humano de verdade, mas um espírito
guia enviado pelos ancestrais para olhar pelos topaas
enquanto os padres estavam ali.
Teresa viera para a Missão há três anos, quando o povo de
sua aldeia fora seduzido pela oferta de comida. Teresa e a
mãe esperavam voltar para a aldeia perto do mar depois, mas
inesperadamente a mãe ficara doente e, apesar dos bons
cuidados dos padres franciscanos, ela morrera. Quando
Teresa, de apenas quatorze anos, pesarosa e cheia de dor, se
preparava para voltar à aldeia, e irmão Felipe a convidou para
ficar na Missão — como os padres estavam convidando os
topaas, acolhendo qualquer um que desejasse viver com eles,
ela olhou dentro de seus gentis olhos verdes, que a fizeram
pensar nos lagos da floresta e nas clareiras enevoadas, e
aceitou.
Foi por causa de irmão Felipe que também aceitou, alguns
meses depois, ser batizada.
Teresa não sabia exatamente o que a água na cabeça
significava, como os outros topaas batizados que viviam na
Missão, aprendia a semear e cultivar a plantação, ordenhar
vacas, tecer mantas e fazer cerâmica. Eles acharam a vida na
Missão mais fácil do que a vida na aldeia, onde as pessoas
tinham de pescar para comer ou entrar na floresta para
colher glandes, muitas vezes voltando com as mãos vazias.
Na Missão, os padres providenciavam comida farta e um teto
onde dormir, desde que o povo dissesse "Nosso Pai", "Jesus"
e "Amém". Eles acompanhavam o padre no ritual matutino,
levantando, sentando, ajoelhando, tocando a testa, peito e
ombros quando ele fazia o sinal-da-cruz no ar, recebendo o
pequeno pedaço de pão em suas línguas e recitando palavras
que não entendiam. Irmão Felipe dissera que aqueles que
foram batizados estavam salvos agora. Salvos do quê?,
perguntava Teresa a si mesma.
Seria por terem sido "salvos" que nunca podiam deixar a
Missão? Embora muita gente gostasse de ficar ali, outros
queriam voltar para suas aldeias, mas os padres diziam que
em virtude do batismo isso já não era possível. Eram,
portanto, trancados à noite, e soldados eram enviados para
trazer de volta os fugitivos. Muitos disseram que se
soubessem que a água em suas cabeças significava serem
prisioneiros na Missão, serem afastados de suas tradições e
religião, nunca teriam aceitado o batismo.
Teresa cogitava se não era por isso que seu povo estava
ficando doente e morrendo.
Depois da morte de sua mãe, era para Teresa ter assumido o
controle da caverna, mas ela nunca completara sua iniciação
nos segredos, nos mitos e encantamentos, nas rezas e rituais
apropriados. A Primeira Mãe não era visitada havia três
verões: seria por isso que o povo estava morrendo? Mas
Teresa tinha medo de abordar os rituais da caverna sem
orientação. Alguns tabus eram tão fortes que o menor dos
erros podia trazer uma calamidade, como um terremoto ou
uma enchente.
Mas o fato de seu povo estar morrendo também não era uma
calamidade?
— Devemos ter cuidado para não machucar a folha — dizia o
irmão Felipe em sua voz melodiosa.
Teresa tentou prestar uma atenção respeitosa. Ela fora
escolhida para ajudar Felipe no jardim de plantas medicinais,
onde ele cultivava ervas curativas, porque ela conhecia tais
plantas. Infelizmente nem ela nem irmão Felipe conseguiam
encontrar ervas curativas para a doença que estava
dizimando os topaas.
— Assim... — disse irmão Felipe quando colheu
delicadamente as folhas da dedaleira.
Ele falava em sua própria língua, o castelhano. Teresa
aprendera a língua dos padres, como exigiram que todos os
topaas, tongvas e chumashes fizessem. A língua era nova,
como era a flor que Felipe estava mostrando a ela, que
continha um espírito que aliviava os males do coração. O
jardim estava cheio de flores novas trazidas de um lugar
chamado Europa — cravos, heléboro, peônias. E além da
cerca havia novos animais — gado, cavalos, ovelhas —
pastando na grama também trazida do outro lado do mar. Os
campos onde seu povo e membros de outras tribos agora se
curvavam em trabalhos, capinando, arrancando mato,
plantando, estavam cheios de plantas novas e estranhas —
trigo, cevada, milho. Toda essa novidade trazida para um
lugar de antigüidade deixou Teresa um pouco preocupada.
Ela não vira os padres pedindo permissão à terra para lavrá-la,
ou para trazer animais pesados para pisoteá-la, ou para alterar
o curso do rio, abrindo canais onde não havia canais. Será
que a ordem seria destruída e o caos viria em seu lugar?
Teresa lembrava do dia em que os estrangeiros chegaram. Ela
estava com onze verões de idade e um boato se espalhara
pelas aldeias de que viajantes do sul acabavam de entrar em
terras ancestrais e não estavam mostrando o devido respeito.
Os invasores estavam pegando água sem antes pedir
permissão ao rio, arrancavam frutas sem pedir permissão às
árvores, cortavam galhos e acendiam fogueiras sem qualquer
dos rituais apropriados. Ficou combinado entre todas as
tribos que deviam fazer com que os estrangeiros
entendessem os costumes do Povo.
Mas quando a multidão se aproximara dos recém-chegados,
mos- trando-lhes suas lanças e flechas para que soubessem
que o povo pretendia proteger os espíritos da terra, os
estrangeiros de repente levantaram uma mulher no ar e a
mantiveram erguida para que todos vissem. Pensando que ela
fosse uma curandeira, o povo ficou em silêncio, esperando
que ela falasse. Mas ela não falou. E também não se moveu.
Estaria morta?, pensaram. Mas seus olhos estavam abertos e
ela sorria. Pensando que os invasores estavam apresentando
uma mulher santa, os chefes depuseram seus arcos e flechas
em sinal de respeito, e suas mães e irmãs se aproximaram
para oferecer pães e sementes. E quando os estrangeiros
construíram uma cabana para a mulher, e depositaram flores
aos seus pés, os topaas e os tongvas e outros da mesma
maneira vieram e deixaram oferendas para ela. Teresa
estranhara na época como a mulher podia ficar tanto tempo
imóvel, mas desde então ela aprendera sobre quadros, e que
a mulher não era de verdade, mas a representação de uma
mulher em alguma coisa chamada "tela". Porém todos
concordaram em uma coisa, invasores e pessoas
semelhantes: que ela se chamava Senhora.
Depois de seis anos, Teresa e os topaas ainda não sabiam por
que os invasores estavam lá. Certamente não podia durar
muito mais, os chefes e xamãs homens e mulheres
especulavam, porque nenhum povo pode ficar distante de
seus ancestrais por muito tempo. E, segundo os padres, eles
viajaram uma longa distância. Mas havia algo sobre os
visitantes que, apesar de seus modos generosos, preocupava
Teresa. Na primavera, o chefe dos padres chegou para uma
visita. Um homem muito pequeno — os topaas eram bem
mais altos que ele — que se chamava Junípero, por causa da
planta junípero. E Teresa ouviu por acaso o padre Serra com
um povo chamado índios que se revoltaram numa Missão
chamada San Diego, e que isso foi uma coisa muito
perturbadora. Depois Teresa ouvira Junípero dizer aos
padres: "Os padres espirituais devem poder punir seus filhos,
os índios, com socos."
Tanta coisa sobre o modo de pensar dos padres a deixava
confusa. Por exemplo, quando os padres descobriram que as
mulheres usavam misturas de ervas para evitar a concepção,
elas foram severamente punidas. Mas todos sabiam que o
controle da concepção era vital para a saúde da tribo, pois de
outra forma a tribo cresceria além da capacidade da terra
alimentar o povo. Foi o que os deuses ensinaram aos topaas
há gerações: que muita gente significava comida insuficiente
e portanto fome. Mas a resposta dos padres foi cultivar mais
alimento. Eles mostraram aos topaas como plantar sementes,
molhar e cuidar delas, e depois como colher o milho, o feijão
e a abóbora que tinham trazido com eles de seu mundo
distante. Como agora havia bastante comida, as mulheres não
deviam mais evitar a concepção. Mas Teresa viu o caos nisso,
desfazer o modelo que os deuses teceram no começo da
Criação. Comida e população crescendo até que não sobrasse
um palmo de terra vazio.
E, de qualquer modo, o plano dos padres não estava
funcionando, porque eles não estavam cultivando alimentos
suficientes para suprir a demanda dos soldados nos presídios,
e agora nas aldeias o povo estava morrendo de inanição.
Todos os dias, mais e mais topaas, tongvas e chumashes
chegavam à Missão, seus cestos vazios estendidos por
comida. Os padres davam comida se os índios ficassem e se
tornassem cristãos. E assim o povo de Teresa encheu suas
barrigas com Jesus e trigo, e permitiram que seus nomes
fossem mudados para Juan e Pedro e Maria.
Seus pensamentos se voltaram para o irmão Felipe e a
crescente preocupação de que uma doença estivesse
comendo o espírito dele.
Se Teresa pudesse olhar dentro da alma do rapaz, veria um
anseio tão grande que o estava consumindo como o fogo.
Felipe viera para o Novo Mundo por uma razão:
experimentar o arrebatamento. Até agora, fora ilusão.
Como o abençoado irmão Bernard de Quintavalle que viveu
há quinhentos anos, pensou Felipe agora enquanto olhava
para as flores com formato de sino em suas mãos, esquecido
por um momento do que devia fazer com elas. Desde que
Bernard tomou o hábito de São Francisco, ele muitas vezes
foi arrebatado por Deus através da contemplação de coisas
celestiais. Oh! Graça Abençoada, experimentar tão sublime
dom de Deus! Felipe sonhava com isso muitas vezes,
imaginando como irmão Bernard deve ter se sentido quando,
na igreja certo dia assistindo à missa, sua mente estava tão
elevada a Deus que ele ficara traspassado e arrebatado,
permanecendo imóvel, olhando fixamente para cima das
matinas até a hora das nonas! Durante quinze dias depois
disso, irmão Bernard foi recompensado com esse tesouro
celestial, seu coração e semblante elevados diariamente a
Deus. Sua mente estava tão completamente desprendida e
afastada das coisas terrenas, que Bernard se elevava como
uma pomba acima da terra, e permanecia às vezes trinta dias
no topo de uma montanha alta contemplando coisas divinas.
Felipe sonhava em ser recompensado como irmão Masseo,
companheiro de São Francisco, fora quando, depois de se
trancar em sua cela e punir seu corpo com jejuns, chicotadas
e orações, ele entrou numa floresta e perguntou ao Senhor
entre súplicas e lágrimas que lhe desse uma virtude divina.
No que a voz de Cristo exclamou do céu: "O que darás em
troca por esta virtude que buscas?" E irmão Masseo
respondeu: "Senhor, eu darei de boa vontade os olhos de
meu rosto." E o senhor disse: "Eu concedo a ti a virtude e
ordeno que conserves teus olhos."
Ouvir a voz de Cristo! Felipe estremecia sob a pesada túnica
de lã. Foi por isso que viera a esta terra selvagem — para ser
abençoado com a revelação divina, para contemplar a Face
Sagrada. Quando Deus o chamou para o serviço missionário,
Felipe respondera avidamente. Que regozijo houvera entre
seu povo, quando foi anunciado que ele fora escolhido para
fazer parte da Missão em Alta Califórnia! Como seu pai ficara
orgulhoso. Como todos se reuniram na pequena igreja para
rezar pela segurança de Felipe e pelo sucesso de sua Missão.
E como o coração de Felipe batera com a esperança e certeza
absoluta de que naquela terra distante seu sonho de uma vida
de encontrar o Salvador em pessoa certamente se realizaria.
Durante toda a longa viagem pelo mar, de meia volta ao
mundo, Felipe imaginara como devia ter sido aquele
primeiro dia de contato há seis anos, quando os padres
chegaram ao rio de Porciúncula e foram ameaçados pela
multidão de selvagens brandindo suas lanças e arcos e
flechas. Temendo estarem prestes a ser mortos, os padres
pegaram um quadro de Nossa Senhora das Dores e o
ergueram para que todos os selvagens vissem. Milagre
abençoado de Deus! Os pagãos reconheceram instantanea-
mente que estavam na presença da Virgem e depuseram as
armas.
Fora um sinal, Felipe estava certo de que era ali que um
homem humilde poderia encontrar a graça.
Graça...
Esquecendo as flores em sua mão e a moça índia ao seu lado,
Felipe levantou os olhos e olhou por um longo tempo para o
horizonte. Uma voz ecoou em sua cabeça: Bendito São
Francisco, que falou com o Senhor cotidianamente, quando
estava moribundo em Porciúncula, na Itália, suplicou para
ser enterrado na sepultura de um criminoso. Eu desejo a
mesma coisa. Eu quero que meu corpo seja enterrado na
sepultura mais humilde, no mais detestável pedaço de chão.
São Francisco chamou a si mesmo de "a mais vil das criaturas
de Deus". Felipe ansiava por ser humilde também, por
degradar a si mesmo como fizera o Santo Bendito. Ele queria
que os homens cuspissem nele e lhe jogassem terra enquanto
ele aceitava de bom grado a humilhação como fizera São
Francisco e seus irmãos. Mas...
E agora o coração de Felipe padecia com a nova dor que o
invadira e estava crescendo dentro dele a cada dia, a dor da
dúvida, da culpa e da auto-abominação. Porque ele tivera
uma revelação certa noite no estábulo, enquanto estava
prostrado sobre o estrume de vaca, rezando por
arrebatamento, e sua voz interior sussurrara de repente:
Homem arrogante! Querer a humildade não é um ato de
orgulho? Como pode ser humilde e orgulhoso ao mesmo
tempo?
Abençoadíssimo Senhor, Felipe quis então gritar, neste
jardim onde trabalhava e na presença da moça pagã tão
recentemente vinda a Cristo. Olhe por este seu servo
desgraçadamente infeliz! Testemunhe a punição que inflijo a
este corpo miserável que se chama Felipe. Observe minha
aversão à comida e à bebida. Veja estas marcas de ferimentos
diários em minha carne indigna! E recompense-me com ao
menos um vislumbre de Sua Face Divina e Abençoada!
Seus ombros caíram. Não era o bastante. Depois de três anos
de renúncia, trabalho duro e humilhação, Felipe
compreendeu em total miséria que não fizera o bastante para
ser recompensado com a visão de Cristo. Ele precisava fazer
mais. Mas o quê? Se ao menos eu pudesse voltar para casa,
para a Espanha, eu atravessaria a Europa rastejando sobre
minhas mãos e joelhos para prestar homenagem em
Porciúncula, onde meu Bendito e Perfeito São Francisco
morreu.
Imaginando o que chamara tanto a atenção de Felipe, Teresa
olhou além do jardim, dos pastos e dos campos de trigo para
onde o rio serpenteava na planície.
— O que está vendo, irmão Felipe?
— Porciúncula — disse ele numa voz estranha. — Nós a
chamamos assim para manter a lembrança do Bendito São
Francisco.
— Chamaram o quê? Quer dizer o rio?
Ela esperou. Seu espanto cresceu.
— Irmão? — chamou ela, tocando suavemente seu braço.
Com se estivesse tendo uma visão que ninguém pudesse ver,
ele disse numa voz distante:
-— Há uma igreja pequenina e humilde perto de Assis,
chamada Porciúncula, que significa "pedacinho". Ela foi
assim chamada porque era uma estrutura muito pequena,
resistindo abandonada e em ruínas. O Bendito São Francisco
deparou-se com ela certo dia, e quando soube que fora
nomeada em homenagem aos anjos que elevaram Nossa
Senhora aos céus em sua assunção, ele decidiu restaurar a
igreja e viveu lá por algum tempo. Foi enquanto São
Francisco estava na Nossa Senhora dos Anjos de
Porciúncula, no ano de Nosso Senhor em 1209, que ele
experimentou uma revelação divina e seu modo de vida foi
revelado para ele. Anos depois, quando a doença tomou
conta dele, ele pediu para ser levado para Porciúncula para
que pudesse morrer lá. E agora nós viemos para cá, para este
lugar, quinhentos anos depois de sua morte, e demos a um
rio o nome da igreja pela qual São Francisco tinha tanta
afeição.
Ele fechou os olhos e oscilou levemente.
— Irmão Felipe? — disse Teresa, segurando o braço dele e
ficando assustada ao sentir sua magreza sob a manga de lã. —
O senhor não está bem?
Quando ele abriu os olhos, precisou esforçar-se para voltar à
terra. Olhou para os dedos bronzeados e fortes que
seguravam seu braço. Depois se lembrou: Teresa. Ele estava
colhendo dedaleira com Teresa. Olhou para ela com os olhos
cheios de dor, encontrando um curioso alívio em seu rosto
redondo e tranqüilo, em sua alma de paciência que o fazia
pensar em séculos. Havia qualquer coisa sobre essa moça —
sua primeira convertida. Mas não sabia exatamente o quê. Ela
não era exatamente igual aos outros índios na Missão. O
nariz largo, o contorno do couro cabeludo quando descia
formando uma ponta, os límpidos olhos negros esperando
por suas perguntas. Ela ficava lá como a encarnação de uma
resposta, mas estava tão além de seu alcance como as
estrelas, o sol e a lua.

A Missão fora construída em volta de um pátio, quatro
cabanas compridas com arcadas internas que conectavam a
capela, as oficinas, a cozinha e o refeitório, as despensas, os
aposentos dos padres e um quarto chamado de monjerio —
convento — onde as mulheres acima dos seis anos de idade
eram trancadas todas as noites e não eram soltas até a manhã
seguinte. Através de uma janela pequena as mulheres
aprisionadas podiam ouvir os homens e suas tribos
aproveitando a vida sob as estrelas enquanto fumavam seus
cachimbos e atiravam varetas para o ar em seus jogos. Os
padres tentaram desencorajar esses jogos de azar, mas com
pouco sucesso, e no final permitiram aos homens sua
recreação — desde que aderissem com dedicação ao regime
diário de orações, trabalho nos campos, mais orações, mais
trabalho.
Era tarde, e a porta do convento estava trancada. Teresa
andava por entre as mulheres deitadas nas esteiras, cada uma
com um cobertor. O número de doentes era alto naquela
noite. Elas tossiam e chiavam e ardiam em febre. Nenhuma
podia comer e poucas podiam beber água. A carne estava
sumindo de seus ossos e seus pulmões expeliam sangue. Não
importava o quanto Teresa tentasse ajudá-las com os chás e
decocções de irmão Felipe, e seus próprios remédios topaas,
a doença estava se alastrando. Uma doença como ninguém
de seu povo jamais vira. Era por causa dos espíritos, Teresa
sabia, trazidos pelos homens brancos, espíritos que não
pertenciam ao lugar, mas a outro mundo distante. Os
homens brancos não morriam quando esses espíritos en-
travam em seus corpos. Alguns nunca sequer ficaram
doentes. Mas os topaas e outras tribos não tinham poder
contra os espíritos invasores.
Muitas dessas mulheres vieram à Missão em busca da
proteção dos padres porque tinham medo dos soldados —
homens sem lei que gostavam de se embriagar e andar a
cavalo perseguindo as indefesas mulheres nativas, laçando-as
como animais e depois estuprando-as. Os maridos e irmãos
das mulheres, com lanças e flechas, eram impotentes para
protegê-las das balas dos mosquetes dos soldados. E assim era
mais seguro deixar as aldeias e procurar segurança na Missão.
Mas a que sacrifício?, pensava Teresa enquanto olhava em
volta da cabana apinhada e ouvia a babel de dialetos
enquanto os tongvas tentavam falar com os chumashes, e as
mulheres tentavam acalentar os bebês em seus braços, e as
jovens se sentavam com seus olhares assombrados,
imaginando como iriam encontrar maridos, quem iria
decorar as linhagens das famílias? Em outra época, outra
vida, as palavras "colapso da ordem social" poderiam passar
pela cabeça de Teresa. Mas tudo o que ela entendia naquela
noite de muitas perguntas era que as coisas de repente não
estavam certas no mundo.
Ela foi até a cama mais afastada e, em silêncio, ajoelhou-se ao
lado da mulher que estava deitada de lado, virada para a
parede. Seu nome de batismo era Benita e ela fora estuprada
por soldados, para descobrir mais tarde que estava grávida.
Quando sofreu um aborto acidental, os padres suspeitaram
que ela o tivesse provocado porque não era casada. E então a
puniram prendendo suas pernas com ferros, chicoteando-a
publicamente, raspando sua cabeça, forçando-a a se vestir
com roupas de aniagem e a se cobrir de cinzas, e carregar a
imagem de uma criança feita de madeira, pintada de
vermelho para simbolizar o aborto, enquanto fazia suas
tarefas diárias. Nas missas de Domingo, ela era forçada a ficar
em frente, igreja da Missão para receber os insultos e
zombarias dos devotos. Essa punição tinha como propósito
forçar as mulheres indígenas a manter as crianças não
desejadas, porque os padres diziam que o aborto era pecado.
Mas os padres pareciam não entender que era a doença que
estava causando tantos abortos acidentais entre os topaas.
Como os espíritos malignos que atormentavam as mulheres
com febre e congestão pulmonar, uma doença que os padres
chamavam de "pneumonia", havia espíritos que causavam
feridas e erupções, que Teresa ouvira os padres chamarem de
"sífilis" e "gonorréia". Estes eram espíritos novos para os
topaas, como as novas gramas, os novos animais e as novas
flores. E o povo não tinha resistência a eles.
Benita estava morrendo. Sua doença não era do corpo mas
do espírito. Ela não fizera a criança ainda não nascida deixar
seu corpo. Mas os padres não acreditavam. Ela devia servir
de exemplo, disseram eles. Da mesma forma que usavam
como exemplo o que faziam com os maridos e irmãos
batizados que queriam retornar à vida antiga: eles eram
caçados pelos soldados e trazidos de volta, e presos em uma
coisa chamada "tronco" para as pessoas zombarem deles.
Teresa sentou sobre os calcanhares e pensou nas mulheres e
meninas amontoadas naquele lugar fechado, sem ventilação,
sem o calor de uma fogueira, sem xamã para impedir os
espíritos de pularem de um corpo para outro. Bastava uma
única mulher ser possuída pelo espírito do sarampo, ou pelo
espírito do tifo, para deixar todas as outras doentes, à medida
que o espírito maligno se apossava delas, uma após outra.
Os padres pareciam não entender. Mas havia tanta coisa que
eles não entendiam.
Por que eles teimavam em suar no calor do verão com suas
túnicas de lã que pinicavam quando fazia muito mais sentido
andar nu? Por que faziam as mulheres se cobrirem, dizendo
que seus seios eram vergonhosos? Por que os padres
chamavam o povo de "índios"? Havia muitas tribos, suas
línguas e mitos e ancestrais eram diferentes. Aquela mulher
ali, por exemplo, pensou Teresa, ela é yang-na. Ela e eu
somos descendentes de raças diferentes. Eu não conheço os
costumes dela, ela não conhece os meus. E aquelas mulheres
lá, elas são tongvas, não têm nenhuma relação com minha
raça. Mas os padres não entendem isso.
Teresa tentara manter a tradição de contar histórias à noite,
os contos e mitos que uniam as gerações desde os primeiros
ancestrais. Mas os padres dividiram os clãs e até as famílias,
levando irmãos para uma Missão, irmãs para outra, avós eram
separados de netos, primos de primas, de modo que as
histórias contadas à noite não eram sempre aquelas da tribo
da própria pessoa. Teresa estava com medo de que, se isso
continuasse, os anciãos morreriam sem passar as histórias
para os mais jovens. Então ela se sentava com as
companheiras prisioneiras e contava a elas sobre a Primeira
Mãe vindo do leste, como ela causou um terremoto quando
pisou na toca de uma tartaruga. Contou a história do
estrangeiro que veio do mar, como ele trouxe olhos mágicos
para os topaas. Mas os mitos de Teresa não significavam nada
para muitas dessas mulheres, porque elas tinham suas
próprias histórias. E quando ela contou a história do homem
que veio do mar uma das pequeninas perguntou: "Era Jesus?"
Os mitos das pessoas estavam começando a se misturar com
os mitos cristãos, e, pior, algumas das pequenas não estavam
conseguindo entender Teresa de modo algum porque
estavam aprendendo a falar só em espanhol. E quando eram
batizadas todas recebiam nomes espanhóis, de modo que as
mais jovens estavam começando a esquecer seus nomes
tribais.
Teresa fechou a mão em volta da bolsa de couro que estava
pendurada em seu pescoço. Ela continha uma pedra-espírito
muito antiga transmitida de geração em geração desde a
Primeira Mãe.
Seria essa a causa de tanta doença entre o povo? Sua própria
mãe morrera de doença nos pulmões, e outras estavam agora
tossindo e queimando em febre. Seria porque as histórias não
estavam sendo contadas? Quando ela olhou para as mulheres
doentes e amedrontadas, Teresa culpou a si mesma. Eu não
devia ter ficado aqui. Eu devia ter voltado e tomado conta da
caverna. Quem está cuidando da Primeira Mãe? Ninguém, e
é por isso que a maldição caiu sobre nós.
Ela sabia o que devia fazer. Para salvar seu povo, devia voltar
à caverna, mesmo sendo uma coisa proibida e sujeita à mais
severa punição. Ela simplesmente teria de certificar-se de
que os soldados não a encontrassem, pois certamente iriam
procurá-la, como faziam com os fugitivos. Ela não temia
tanto a punição como temia o fato de jamais poder retornar à
caverna.
Finalmente, Teresa pensou em Felipe. Partiu seu coração
pensar em deixá-lo, porque uma vez que fugisse jamais
poderia voltar. Mas seu povo estava doente e morrendo. Para
ajudá-los, ela devia deixar o amado Felipe e nunca mais vê-
lo.
A abertura da janela tinha a largura exata. Suas amigas
ajudaram a erguê-la, abençoando-a e lhe desejando boa sorte,
em topaa e em dialetos que Teresa não entendia. Ela
prometeu que não seria pega; prometeu que não deixaria os
velhos costumes serem esquecidos. E depois deixou-se cair,
silenciosamente como um gato, dentro da noite.

Teresa foi primeiro ao jardim de plantas medicinais, entrando
e saindo das sombras, cada uma mais escura que a última, seu
caminho iluminado pelas estrelas e a lua. Das ervas e plantas,
colheu flores e folhas verde-escuras. Depois passou apressada
pelo estábulo, rumo ao leste, onde encontraria a antiga trilha
que levava às montanhas.
Ela parou quando ouviu um barulho estranho.
Espiando por uma rachadura na porta do estábulo, não
conseguiu saber a princípio para o que estava olhando. E
então, de repente, prendeu a respiração. No chiqueiro entre
duas cocheiras, irmão Felipe estava de joelhos, nu até a
cintura, chicoteando a si mesmo com seis tiras de couro com
nós presas em um cabo de madeira. Suas costas estavam
rajadas com sangue.
Abrindo a porta de repente, Teresa correu e caiu de joelhos
ao seu lado.
— Irmão Felipe! O que está fazendo?
Ele pareceu não ouvi-la, enquanto continuou a flagelar-se.
— Pare! — gritou ela, agarrando o chicote e arrancando da
mão dele. — O que está fazendo, irmão?
Felipe olhou para as mãos vazias, depois virou a cabeça e
olhou para ela com os olhos encovados.
— Teresa...
Quando viu como as costas dele estavam dilaceradas e
marcadas por velhos ferimentos, começou a gritar:
— Por que está fazendo isso?
— Quero que Deus me ache digno.
— Eu não entendo! Se o seu deus criou você, como pode não
ser digno? Ele cria seres indignos?
Ela estendeu a mão e tocou gentilmente os vergões
vermelhos em sua pele branca. Queria encostar o rosto nas
costas dele e deixar suas lágrimas o curarem, deixar seu amor
derramar-se sobre ele como um bálsamo.
Felipe começou a soluçar. Como explicar a ela que ansiava
pelo arrebatamento? Queria sofrer com os estigmas como
sofreu o Bendito São Francisco. Ele queria domesticar
pombos selvagens e pregar para os peixes do mar. Ansiava
por uma visão -— o Senhor e Maria apareceram para São
Francisco e seus companheiros, por que não para ele?
Pegando água do cocho, Teresa fez o possível para banhar-
lhe as feridas. Rasgou a bainha da metade de sua saia e secou
o sangue, pressionado gentilmente os lugares onde a pele
estava rachada. Ela chorava o tempo todo, vendo o corpo
maltratado de irmão Felipe por entre as lágrimas.
Ele permaneceu ajoelhado, submetendo-se aos cuidados dela
como uma criança, seu peito esquelético sacudindo com os
soluços amargos.
Finalmente, quando ela limpou o sangue e a pele dele estava
seca, Teresa o ajudou a ficar de pé e ergueu as mangas de sua
túnica cinza, devolvendo-lhe um pouco de sua dignidade.
Depois, na escuridão do estábulo rústico, olhou nos olhos
dele e disse:
— Diga-me o que é que você quer, irmão Felipe.
A garganta dele estava áspera, a voz seca.
— Eu busco a satisfação plena.
— E o que é isso?
— Vou lhe dizer. Num dia de inverno, São Francisco estava
viajando com irmão Leo de Perugia para Nossa Senhora dos
Anjos, e ambos estavam sofrendo com um frio intenso. São
Francisco chamou irmão Leo, que viajava à frente dele: "Se
fosse para agradar a Deus que os frades devessem dar um
grande exemplo de santidade e edificação em todas as terras,
isso não seria a satisfação plena." Depois de passar outra
milha, São Francisco chamou uma segunda vez: "Irmão Leo,
se os frades fossem fazer o aleijado andar, dar visão ao cego,
audição para o surdo, fala ao mudo, isso não seria a satisfação
plena." Pouco tempo depois, ele chamou de novo: "Irmão
Leo, se os frades conhecessem todas as línguas e fossem
versados em todas as ciências, se pudessem explicar todas as
Escrituras e possuíssem o dom da profecia, e pudessem
revelar todas as coisas futuras, os segredos de todas as
consciências e almas, isso não seria a satisfação plena." De-
pois de outra milha, ele chamou novamente com a voz mais
alta: "Se os frades pudessem falar as línguas dos anjos e
pudessem explicar o curso das estrelas e conhecer as virtudes
de todas as plantas, se tivessem conhecimento das qualidades
de todos os pássaros, de todos os peixes, de todos os animais,
dos homens, das árvores, das pedras e águas, isso não seria a
satisfação plena. E se os frades tivessem o dom de pregar de
modo que convertessem todos os infiéis para a fé de Cristo,
isso não seria a satisfação plena." Então, irmão Leo parou na
estrada e disse para o santo: "Padre, ensina-me o que é a
satisfação plena." E São Francisco respondeu: "Se, quando
chegarmos à Nossa Senhora dos Anjos, encharcados de
chuva e tremendo de frio, rebocados de lama e fracos de
fome, e se quando tocarmos o sino do portão e o porteiro
vier atender e lhe dissermos que somos dois dos confrades, e
ele disser irritado que não falamos a verdade, que somos
impostores iludindo a palavra para podermos roubar as almas
dos pobres, e ele nos deixar do lado de fora na neve e na
chuva para passar fome, e se quando batermos novamente o
porteiro nos expulsar com socos, e se, impelidos pelo frio e a
fome, nós batermos de novo, suplicando ao porteiro com
nossas lágrimas para que nos dê abrigo, e se ele nos derrubar
no chão, nos rolar na neve, e nos bater com um pedaço de
pau — se agüentarmos todas estas injúrias, crueldades e
iniqüidades com paciência e alegria, pensando no sofrimento
de nosso Bendito Senhor que compartilharemos por amor a
ele, isso sim, irmão Leo, é a satisfação plena."
Teresa ficou muda.
— Quando São Francisco morreu — acrescentou Felipe
miseravelmente —, ele estava quase cego de tanto chorar
durante sua vida.
— O seu deus quer que você chore a vida toda?
— São Francisco foi chamado por Deus para carregar a cruz
do Cristo em seu coração, para praticar isso em sua vida, e
para pregar isso com suas palavras, verdadeiramente um
homem crucificado tanto em suas ações quanto em seus
trabalhos. São Francisco buscou a vergonha e o desprezo, por
amor a Cristo. Ele se regozijava quando era desprezado e
sofria quando era honrado. Andou pelo mundo como
peregrino e estrangeiro, levando consigo nada além de Cristo
crucificado. Eu desejo ser igual a ele. E desejo ser igual ao
irmão Bernard que, quando chegou em Bolonha e as crianças
nas ruas, ao vê-lo vestido de modo tão estranho e pobre,
riram e escarneceram dele, pensando que fosse um louco,
aceitou seus insultos com grande paciência e com grande
alegria por amor a Cristo. Esperando ser desprezado ainda
mais, irmão Bernard foi ao mercado, onde se sentou, e
quando um grande número de crianças e homens se
reuniram em volta dele e agarraram sua túnica e o agrediram,
alguns atirando pedras e lama nele, irmão Bernard sujeitou-se
em silêncio, tendo no rosto uma expressão de suprema
alegria, e por vários dias ele retornou ao mesmo lugar para
receber os mesmos insultos até que um dia o povo da cidade
parou para pensar e disse: "Este homem deve ser um grande
santo." Eu desejo ser assim — clamou Felipe. — Mas para ser
um grande santo preciso ter humildade em meu coração.
Como posso desejar a grandeza e possuir humildade ao
mesmo tempo? Este é o meu tormento! Meus pecados de
orgulho e vaidade vão roubar de mim essa alegria sublime.
Alarmada, Teresa pensou: a doença não está só entre meu
povo, ela está afligindo o homem branco também. Então ela
estava na terra e no ar, nas plantas e na água, e precisava ser
retificada. O mundo precisava voltar ao equilíbrio.
Ela estendeu a mão.

Felipe seguiu, submisso. Eles pegaram uma mula e seguiram a
trilha enluarada rumo leste da Missão, passaram os poços de
alcatrão e pântanos, até chegarem ao contraforte das
montanhas que os padres chamaram de Santa Mônica. Na
escuridão, seguiram até alcançarem o afloramento de grandes
pedras marcadas com símbolos antigos do corvo e da lua, e
de onde Teresa disse que continuariam a pé. Sentindo-se
impelido por uma força além da própria, Felipe seguiu
passivo, demasiadamente imbuído na própria dor e miséria
para questionar por que colocava um pé na frente do outro.
Quando encontraram uma cascavel no cânion, Felipe
recuou, mas Teresa disse-lhe que continuasse a andar
calmamente que a cobra não lhe faria mal.
— Ela é nossa irmã e vai nos permitir passar se mostrarmos a
ela o devido respeito.
De fato, eles passaram na ponta dos pés e a cobra afastou-se
deslizando.
Quando se aproximaram da caverna, Teresa disse
suavemente:
— Este é um lugar sagrado. Você encontrará a cura aqui.
Ela primeiro depositou as oferendas de flores na antiga
sepultura, explicando a Felipe que sempre traziam presentes
para a Mãe. Depois fez uma pequena fogueira, acendendo-a
com os instrumentos de fazer fogo. Quando deixou cair as
folhas verde-escuras que tirara do jardim sobre as chamas,
instantaneamente uma fumaça pungente subiu, ferroando o
nariz de Felipe com o cheiro familiar de maconha, que ele
cultivava como remédio. Quando o fogo iluminou os símbo-
los pintados na parede, Teresa contou a Felipe a história da
Primeira Mãe, como foi contada a ela por sua mãe, e pela
mãe de sua mãe, desde a primeira história.
Felipe ouviu em silêncio, seus olhos nos símbolos estranhos
na parede, e depois de algum tempo a dor pareceu retroceder
um pouco, e ele sentiu um pequeno alívio em sua angústia.
Enquanto a fumaça enchia a caverna, e o interior ficava mais
quente e aconchegante, e Teresa, que agora se chamava
Marimi, mantinha a suave ladainha da história de sua tribo,
recitando os mitos como lhe foram contados, ela lentamente
retirou as roupas que os padres a forçaram a usar: a blusa e a
saia, as roupas de baixo, os sapatos, até ficar na frente da
Primeira Mãe em seu estado natural.
O jovem frade não ficou chocado como teria ficado há algum
tempo. Quando o incenso encheu suas narinas, cabeça e
pulmões, e o poder curador começou a funcionar, ele
começou a ver que não havia nada de estranho no fato de
estar naquela antiga caverna com uma índia nua, ouvindo
contos que um dia chamara de pagãos e desprezíveis.
E depois de algum tempo, enquanto ouvia o ritmo da voz
dela, ele começou a sentir um ritmo dentro de si mesmo,
como se seus pulsos e respiração, até seus nervos e músculos
estivessem respondendo à recitação contínua de Teresa. Sem
saber que respondia, irmão Felipe começou a despir sua
túnica, sandálias e tanga, até que ele também ficou na frente
da Primeira Mãe em nudez humilde.
Com a descamação da lã pesada, ele sentiu as escamas caírem
de seus olhos e as algemas de sua alma. Experimentou uma
súbita leveza que nunca pensou ser possível. E se sentiu
começando a sorrir.
E então alguma coisa estava tocando sua pele, como asas,
como sussurros. Ele olhou fascinado para os dedos
bronzeados acariciando as cicatrizes de velhos ferimentos
em sua pele. Os olhos de Teresa ficaram cheios de lágrimas
quando ela viu o estado chocante do corpo de Felipe, as
costelas e ossos, evidências de que em sua busca por
arrebatamento ele passara fome, infligira abuso sobre si
mesmo. Quão maltratados estes membros! Quão machucada
esta pele frágil!
— Meu pobre Felipe — disse ela chorando. — Como você
tem sofrido.
Seus braços o enlaçaram e o puxaram para seu o seio quente.
Ele enterrou o rosto em seus cabelos, enlaçando-a com os
braços e a puxando para si. Sentiu as lágrimas dela no peito.
Suas próprias lágrimas pingavam sobre a cabeça dela. Eles
choraram juntos, abraçados no calor da fumaça mística.
E então algo começou a acontecer. Felipe começou a levitar
para fora de seu corpo. Era como se anjos o estivessem
transportando, levantando em suas asas até ele se encontrar
no teto da caverna e olhando para baixo, onde viu duas
criaturas de Deus, abraçadas em seu estado natural,
enchendo os corações um do outro com amor. Ele viu o
homem puxar a moça para o chão e a deitar numa cama feita
de flores e uma túnica franciscana de cor cinza. Os cabelos
longos e negros da moça abriram-se em leque em torno dela;
havia uma expressão de êxtase em seu rosto. Felipe viu as
contusões e as cicatrizes nas costas do homem, e as mãos da
garota acariciando as feridas. Eles se beijaram, longa e
apaixonadamente, fazendo Felipe sorrir. E depois, para seu
espanto, ele começou a rir. Sua forma etérea estava toda
quente e úmida, uma sensação sublime que fez seu coração
subir até a garganta até ele pensar que iria morrer de desejo,
alegria e satisfação.
Ele ouviu o homem chorar em estado de arrebatamento, e
viu lágrimas como diamantes brilhando nos cílios negros da
moça.
E de repente a caverna ficou cheia de luz, brilhante e
maravilhosa, e Felipe viu pessoas em toda parte! Como se as
pedras da montanha tivessem derretido, Felipe podia ver até
o horizonte, uma vasta multidão de seres humanos
espalhados até o infinito resplandecente. Ele percebeu em
cega revelação que estas eram as almas de todos os que
viveram antes dele e que agora moravam na Luz Beneficente
de Deus. A frente dessa grande multidão estavam os profetas
Elias e Moisés, em túnicas resplandecentes. E entre eles
estava Jesus, transfigurado em uma coluna de luz. Pairando
sobre todos estava a Mãe Abençoada, agora uma pomba
radiante, agora uma linda mulher, brilhante e luminosa,
derramando seu amor e graça sobre todos abaixo.
Felipe deu um grito enorme e sentiu seu corpo partir em
pedaços e sua alma ser lançada livremente para os céus.
E depois os anjos o trouxeram gentilmente de volta à terra,
para a caverna e o calor da moça, onde irmão Felipe caiu no
sono mais profundo e mais doce que jamais conhecera.

Quando acordou, primeiro ficou surpreso ao descobrir que
estava nu. Mas depois, lembrando, soube que esse era o seu
estado natural, que foi assim que Deus o criara, e a todos
homens e mulheres, e que não havia vergonha na nudez.
Não havia o Bendito São Francisco removido suas vestes, e
declarado: "Nosso Pai que estais no céu"?
Felipe olhou para Teresa, dormitando docemente. Aqui
estava a resposta que buscara, o mistério da moça que o
intrigara. Ele a observara falar com as plantas, sussurrar para
o vento e cantar para a chuva. Ela não tinha medo dos
animais, mas os entendia e se relacionava com eles como
fizera São Francisco, mas como não fizera Felipe. Ela não se
considerava acima da natureza como os homens faziam, mas
igual a ela. Essa era a verdadeira definição da humildade! Ela
estivera lá o tempo todo para dizer a ele, porém ele andara
muito cego para ver.
Ele soluçou de alegria, suas lágrimas fluindo tão livres como
as de São Francisco fluíram certa vez. Irmão Felipe fora para
a Califórnia em busca de arrebatamento, e encontrara.

Eles chegaram à Missão antes do amanhecer, mudos, ambos
cheios de admiração e sabendo que uma magia restauradora
acontecera naquela noite. Teresa subira pela janela de volta
ao convento, e Felipe foi para sua cela.
Mas ele não ficou na Missão. Antes do sol atingir seu zênite
no dia seguinte, ele estava na trilha rumo leste, levando nada
além de um pão e um pequeno embrulho enfiado na manga.
Estava cheio de reverência, glória e alegria. Não havia dor,
nem mais perguntas. De repente tudo estava no lugar, e ele
entendia.
Quando São Francisco morreu, no ano de 1226, foi
enterrado na Igreja de São Jorge em Assis. Quatro anos
depois seu corpo foi secretamente removido para uma
grande basílica construída por irmão Elias. Durante aquele
novo enterro clandestino, um irmão no auge do fervor
religioso removeu o dedo mínimo da mão direita do santo e
o escondeu num pequeno monastério na Espanha. Durante
os anos, a relíquia foi guardada em vários recipientes, cada
um mais precioso e mais valioso que o anterior, até os
benditos ossos finalmente descansarem num relicário de
prata confeccionado em forma de uma mão humana e
antebraço. Quando os padres içaram velas para a Nova
Espanha para assumirem sua Missão na Alta Califórnia, o
relicário foi secretamente confiado aos seus cuidados, que a
presença do santo na terra distante e selvagem assegurasse
sucesso à Missão deles.
Este era o presente de Felipe para a Primeira Mãe.
Dentro da caverna, ele ficou só de tanga e gentilmente
enrolou o relicário na túnica, depois disso ele o enterrou no
chão da caverna. Então, lembrando dos quarenta dias e
quarenta noites de jejum de São Francisco, durante os quais
ele comeu meio pão em reverência ao Senhor Bendito, que
jejuara quarenta dias e quarenta noites sem. comer nada,
Felipe deixou a caverna com apenas seu rosário e um pão e,
em vez de voltar descendo em direção à boca do cânion, que
levava à Missão, continuou subindo dentro do cânion, o
rosto para o sol, um sorriso radiante nos lábios, subindo e
subindo até desaparecer entre o deserto e o céu.


Capítulo Sete

Se Los Angeles tivesse um coração, pensou Érica, seria
Olvera Street.
Enquanto andava pelo passeio, do comprimento de um
quarteirão, sentiu seu ânimo levantar naquela rua
pavimentada de lajotas coloridas onde comerciantes vendiam
bonecos, artigos de couro, ponchos, sombreros, estátuas de
santos e comida mexicana autêntica, enquanto uma banda de
mariachi tocava uma versão animada de Guantanamera. Érica
acabara de almoçar um chili relleno apimentado no pátio de
um exótico restaurante que fazia qualquer um esquecer que
estava no meio de uma metrópole de cinco milhões de
habitantes.
Érica estava voltando da Missão São Gabriel quando saíra
impulsivamente da auto-estrada. Ela não sabia por que,
exceto que precisava pensar. A visita fora bem-sucedida.
Embora os registros da Missão remontassem à sua fundação
inicial em 1771, não havia menção nos arquivos de que
índios ou padres houvessem fabricado o tal objeto
encontrado por Érica naquela manhã na caverna e que ela
esperara que alguém na Missão pudesse explicar. Por causa
de sua iniciativa, ela agora andava alegremente entre uma
multidão de turistas e locais que visitavam os lugares
históricos que faziam parte da alma oculta e romântica de
Los Angeles. A Igreja de Nossa Senhora dos Anjos,
construída em 1818 pelos índios operários que
transportavam madeiras das montanhas São Gabriel, e onde,
nas manhãs de domingo, havia quinceaneros, festividades
que marcavam a chegada dos quinze anos para as meninas,
uma celebração espiritual que acreditava-se ter vindo dos
antigos rituais americanos nativos e que a Igreja Católica es-
tava tentando suprimir. A Casa Sepulveda, uma beleza
vitoriana construída em 1887; a Casa Pelanconi, construída
em 1855, a primeira construção de tijolos em Los Angeles; e,
é claro, o Avila Adobe, tido como o prédio mais antigo de
Los Angeles, construído em 1818, trinta e sete anos depois
da fundação da cidade. Tudo isso vibrando, Érica estava
certa, com as paixões e histórias do passado.
Quando ela emergiu na Plaza iluminada pelo sol, um parque
em estilo mexicano dominado por uma figueira enorme,
ficou feliz por ter saído da auto-estrada no último minuto. A
solidão tinha os seus méritos, mas às vezes a alma ansiava por
lugares cheios de gente. Os bancos estavam todos ocupados
por turistas descansando os pés ou por cidadãos locais com os
narizes enfiados no Los Angeles Times ou La Opinion.
E então ela viu os fantasmas, pessoas transparentes com
trajes fora de moda, e cavalos e carroças, cachorros
sarnentos, casas de adobe caindo aos pedaços, calçadas de
madeira. Érica estava acostumada a ver fantasmas, mesmo no
centro da cidade de Los Angeles em pleno meio-dia. Os
mortos nunca desapareciam na verdade. A arqueologia
provava isso. Ela viu mulheres com sombrinhas, um homem
de pernas arqueadas usando uma insígnia de xerife, caçadores
de peles a cavalo e hombres valentões procurando um bar.
As pessoas pensavam que Los Angeles era selvagem hoje.
Deviam vê-la há 150 anos. Aqui era a estação terminal do
Oeste na época dos pioneiros.
Érica viu um jovem casal hispânico, dos dias atuais, com os
braços em volta um do outro, cabeças juntas, parecendo estar
em lua-de-mel. Érica nunca pensara em Los Angeles como
um lugar para passar a lua-de-mel, mas a Plaza, com seu
ambiente de Velho México, as flores, a música, a comida
boa, pessoas com trajes típicos, e a atmosfera festiva, parecia
o lugar perfeito para duas pessoas apaixonadas.
Quando Érica viu o empregado de um restaurante asiático
com o avental branco e sujo encostado no poste e lendo a
edição da manhã do Times, foi trazida de volta para a
realidade. Emerald Hills estava na primeira página — outra
vez. Desta vez com a palavra "mal-assombrado" na
manchete. Um tablóide de supermercado cavara velhos
relatos sobre irmã Sarah e alguns acontecimentos estranhos
no Cânion Mal-assombrado. Irmã Sarah declarara inclusive
que a idéia de construir sua Igreja dos Espíritos onde
construíra lhe ocorreu quando foi visitada pela visão de uma
"mulher com túnicas". Érica suspeitava que a visão tinha
mais a ver com teatro do que com realidade. Apesar disso, a
história desencadeou uma erupção de "visagens" na caverna
e os trabalhadores estavam agora dizendo que havia sensa-
ções estranhas em volta do lugar.
Havia outra grande história na imprensa. Depois de
encontrar o relicário com os restos mortais de São Francisco,
Érica contatara o Vaticano. Eles disseram que o relicário fora
trazido para a Califórnia em 1772 e catalogado nos registros
da Missão como extraviado em 1775, junto com um frade
chamado irmão Felipe, que desaparecera misteriosamente e
acredita-se que tenha sido morto por ursos pardos. Érica não
sabia por que um frade franciscano enterraria os ossos de São
Francisco numa caverna tão distante de casa. E numa
sepultura indígena ainda por cima.
O Vaticano enviara um representante imediatamente. Érica
não ficou surpresa com a rapidez com que eles agiram. Não
porque o relicário fosse em si mesmo tão importante (havia
milhares deles em todo o mundo) ou porque São Francisco
fosse um grande santo. Era uma questão política. Junípero
Serra fora beatificado, o primeiro passo para a santidade, mas
muitos partidos estavam protestando contra a sua
canonização, tornando o caso uma questão sensível. Mais e
mais sobre o tratamento dado aos índios pelos padres das
Missões estava vindo à tona, e a Igreja Católica estava sendo
criticada. A descoberta dos ossos de um santo enterrados
com os ossos de uma índia levantava mais questões
candentes.
Embora o relicário estivesse a caminho de Roma, recebera
tanta atenção por parte da imprensa que as pessoas estavam
fazendo fila na cerca de segurança de Emerald Hills, na
esperança de que lhes fosse permitido entrar para rezar no
lugar onde os ossos do Bendito São Francisco tinham sido
enterrados. Pessoas com filhos doentes ou pessoas amadas
em cadeira de rodas, recitando seus rosários enquanto
esperavam para entrar. Os latinos estavam dizendo que La
Primera Madre referia-se a uma visão da Virgem Maria na
caverna, fazendo a mídia compará-la com a caverna em
Lourdes. Uma foto no jornal do plástico transparente que
protegia o esqueleto e o pesado portão de ferro que guardava
a entrada da caverna davam ao local um ar de mistério
religioso — parecia mesmo um lugar de milagres.
Naquela manhã, quando Érica descera a colina dirigindo, viu
na parte inferior, onde a estrada se junta à Pacific Coast
Highway, policiais prendendo dois rapazes que
aparentemente tinham erguido uma barreira sobre a estrada
com um sinal que dizia: Sítio de Escavação de Emerald Hills
— $5,00 por pessoa. Isso a fizera sorrir. Los Angeles não
dormia no ponto.
Voltando ao mundo moderno que passava apressado por ela,
de salto alto e sapatos de pontas viradas, Érica enfiou a mão
na bolsa e tirou um pequeno saco de pano e o esvaziou na
palma da mão: um crucifixo primitivo feito de estanho e com
uma data gravada: Anno Domini 1781. "Talvez tenha sido
feito para comemorar um evento especial", dissera o padre
na Missão quando Érica explicou que o crucifixo fora
enterrado com cuidado e reverência num buraco forrado
com flores. "Um nascimento, talvez", concluíra ele.
Um nascimento? Mas de quem?
"Você nasceu aqui, Dra. Tyler?", perguntara Jared quando o
acaso os juntou na mesma mesa da cafeteria. E acrescentara
rapidamente: "Você é tão apaixonada pela história da
Califórnia."
Ela ficara surpresa com a pergunta e com o fato de ele ser
observador, e por um momento também ficara lisonjeada ao
pensar que estava curioso a respeito dela. Mas depois
pensara: não é por interesse amigável que está perguntando,
está me estudando, assim como eu o venho estudando. Não é
o que os adversários fazem, buscando os pontos fortes e
fracos um do outro? Ela lhe dera a resposta padrão: "Sou de
San Francisco." Pelo menos este era o lugar de nascimento
em sua certidão de nascimento. A verdade era um pouco
mais difícil de explicar.
A assistente social do hospital, dizendo gentilmente:
— Então o seu nome é Erica1 Você não tem um sobrenome?
Tudo bem, Erica, pode me dizer se o homem que a trouxe
aqui é seu pai?
Erica respondendo:
— Eu acho que não.
Ela só tinha cinco anos de idade, mas mesmo naquela época
já reconhecia a expressão de perplexidade no rosto de um
adulto.
— O que quer dizer com acho que não?
— Eu tenho muitos pais.
A assistente social escrevendo algo e Erica fascinada pelas
unhas compridas, pintadas com um esmalte de cor bonita, e
pelo anel de ouro faiscando no dedo da moça gentil.
— E a mulher que veio com você, era a sua mãe!
E rapidamente corrigindo-se:
— Ela é a sua mãe?
Porque eles ainda não haviam contado a Érica que a mulher
morrera na sala de emergência.
Jared perguntara então: "Sua família ainda mora em San
Francisco?"
"Eu não tenho família", respondera ela. "Só eu." Não era
exatamente uma mentira, já que Erica não sabia mesmo.
Mais tarde, em outra sala, a gentil assistente social dizendo:
— Teve sorte!
E o homem careca, sem saber que a pequena Érica podia
ouvi-los:
— Minha suspeita estava certa. Eu acho que a menina deve
ter vin- do de uma comunidade hippie. A overdose da
mulher, o sujeito que a trouxe, o modo como estava vestido.
Bem, eu achei a comunidade. Parece que a menina foi
abandonada. Eles disseram que a mãe dela foi embora com
um motoqueiro. Quanto ao pai biológico — a mãe chegou à
comunidade grávida e teve a criança lá. Ela nunca
mencionou o pai. Duvido que ela fosse casada.
— Você descobriu o nome da mãe?
— Ela era chamada de Moonbeam. Foi tudo o que eu
consegui saber. Eu não acho que você vai encontrá-la ou o
pai. Duvido até que fossem casados. Provavelmente nem
tinham uma certidão de nascimento da menina.
— Eu mandei fazer uma. Nós registramos o lugar de
nascimento como San Francisco.
— E agora?
— Bem, vai ser difícil arranjar uma adoção para ela, com
cinco anos de idade.
— Você acha? Alguns casais querem crianças mais velhas,
especialmente uma menina bonitinha assim.
— E, mas há alguma coisa estranha sobre ela...
Foi crescendo sabendo que a mãe a abandonara, sendo
transferida de lar de adoção para lar de adoção, sua assistente
social mudando com uma regularidade assustadora, o que fez
Érica refugiar-se na fantasia. As histórias se tornaram sua
balsa salva-vidas; a ficção, sua sanidade.
Na quarta série ela fantasiara sobre um homem bonito de
farda entrando na sala de aula a passos largos e dizendo em
voz de comando: "Eu sou o general MacIntyre e venho do
campo de batalha para reivindicar minha filha e levá-la para
casa." Eles se abraçariam na frente de todas aquelas crianças
— Ashley, Jéssica e Tiffany, as barracudas da Campbell Street
Elementary — e sairiam de mãos dadas, os braços de Érica
cheios de brinquedos novos. Na quinta série se viu deitada
na cama de um hospital depois de uma cirurgia cerebral, à
beira da morte porque precisava de uma transfusão de sangue
que só um parente próximo poderia doar, e seus pais
correndo para ela, dizendo que estavam procurando por ela,
quando viram sua fotografia no jornal e a manchete que
dizia: "Alguém Pode Ajudar Esta Menininha?" Eles eram
muito ricos e doaram dinheiro para a construção de uma
nova ala no hospital que teria o nome da filha.
Na sexta série Érica começou a fazer um álbum de família
com fotografias de outras pessoas e escrevia nelas: "Mamãe e
eu na praia", "Papai me ensinando a andar de bicicleta." Na
sétima série, quando a puberdade trouxe um novo senso de
urgência em sua vida, ela começou a ligar regularmente para
os serviços de assistência à infância para saber se a mãe
entrara em contato com eles.
As assistentes sociais iam e vinham, os lares de adoção
mudavam, as escolas, os bairros. Érica sentia como se
estivesse numa máquina de pinball, batendo em
amortecedores e barbatanas e nunca parando. Ela cresceu
flexível, imaginativa, afável. Alguns lares estavam cheios de
garotas delinqüentes, valentonas. Mas Érica sobreviveu,
porque elas gostavam de suas histórias. Ela fingia que lia
palmas de mãos e folhas de chá e sempre previa futuros
felizes.
Ela nunca deixou de acreditar que seus pais iriam buscá-la.
Olhando para o crucifixo na palma da mão, pensou: será que
ele comemorou um nascimento? Mas de quem? E então,
enquanto olhava para as construções restauradas, indagando
novamente por que viera a este velho coração de Los
Angeles por impulso, ela viu uma placa de bronze que dizia:
Pueblo de Los Angeles, Monumento Histórico — 1781 d.C.
E de repente Érica soube.
O crucifixo não comemorava o nascimento de uma pessoa
mas de um lugar...

Capítulo Oito

Angela
1781 da era cristã

Que tipo de lugar era este para fundar um povoamento?,
pensou o capitão Lorenzo de mau humor. O rio ficava a
léguas de distância, não havia enseada ou defesas naturais ao
longo da costa. Todas as grandes cidades do mundo tinham
sido construídas junto a rios ou enseadas defensivas, mas este
lugar ficava no meio de nada!
De fato, Lorenzo sabia que o governador Neve escolhera esta
área de propósito para estabelecer seu novo pueblo. Não
importava que não tivesse enseada, nem rio navegável. Os
colonizadores estavam aqui para plantar e criar gado, e nesse
sentido a planície fumarenta era perfeita. Lorenzo pensou
que Neve estava muito satisfeito. E ele também devia estar, já
que cumprira sua tarefa de estabelecer dois povoamentos na
Alta Califórnia, um na região norte e o outro na região sul,
um recebendo o nome de São Francisco e o outro o nome da
Virgem Maria.
Dios mio, pensou Lorenzo filosoficamente. Dar à cidade o
nome de um rio daqui, que por sua vez recebeu o nome de
uma capela na distante Itália! Um nome tão grandioso, um
nome que enche tanto a boca para ser dito que um homem
não poderia dizê-lo e comer seus feijões ao mesmo tempo. El
Pueblo de Nuestra Senõra la Reina de Los Angeles dei Rio de
Porciuncula. A Cidade de Nossa Senhora a Rainha de Los
Angeles do Rio de Porciuncula. As pessoas já estavam
zombando. Elas riam e diziam que Porciuncula era irônico
porque significava "porção pequena", e não era isso o que o
governo estava dando a elas para se estabelecerem aqui? E os
Anjos? Ninguém via anjos aqui, só um bando de colonos
maltrapilhos trazidos do México, não mais do que onze
famílias de raças diferentes: índios, africanos, mulatos,
mestiços e até chineses das Filipinas! Os soldados mexicanos
de Lorenzo mais os padres espanhóis com sua leva de índios
das Missões completavam a audiência do governador para a
fundação de uma nova cidade. Mas não havia anjos.
Lorenzo era um dos recrutadores designados para subornar
homens do México para povoar a região da Alta Califórnia.
Cada colono devia receber um lote para construir uma casa,
dois campos de terra irrigada e dois campos de terra seca.
Cada qual devia também ter direito às terras comuns do
povoado para pastagem e armazenagem de lenha. Cada
família receberia o salário de três anos de dez pesos por mês
mais roupas e ferramentas, duas vacas e dois bois, duas
ovelhas, duas cabras, dois cavalos, três éguas e uma mula. Em
troca, os colonos tinham de trabalhar na terra por no
mínimo dez anos.
Embora Lorenzo achasse que os atrativos fossem generosos,
ele e o capitão Rivera descobriram que era impossível
recrutar o número exigido de colonos. O que ganhariam
naquele lugar esquecido por Deus?, perguntavam as pessoas.
E certamente a comunicação com os parentes seria
impossível. Por fim, os recrutadores não alcançaram a quota
almejada e partiram para o norte numa árdua jornada com
apenas vinte e três adultos e vinte e uma crianças, uma das
quais, filha de Lorenzo, morrera no caminho.
E agora estamos aqui, pensou ele enquanto esperava os
discursos acabarem, olhando com os olhos apertados para as
montanhas distantes e o oceano, onde uma névoa fumarenta
pairava perpetuamente no ar. Um lugar solitário, pensou ele,
cortado da civilização, e onde os nativos nos excedem de
milhares para um. Embora fosse um criollo, de descendência
espanhola mas nascido no México, Lorenzo não desprezava
os índios como o faziam seus companheiros. De fato, ad-
mirava suas habilidades no jogo e achava que essa era a única
boa qualidade em sua promessa de se estabelecer neste lugar
indomado. Aceitara a tarefa de recrutar os colonos, porque
sua recompensa era a dispensa do serviço militar, e Lorenzo,
uma vez estabelecida sua residência aqui, planejava uma
aposentadoria calma, dedicada à criação de gado, caçadas e
jogos de azar.
O ânimo de Lorenzo arrefeceu. Que tipo de vida ele teria
agora? Sua esposa, Doria Luisa, não conseguia parar de
lamentar a perda da filha. Pior, ela não permitia que Lorenzo
dormisse em sua cama.
Voltou a pensar na cerimônia acontecendo sob o sol
escaldante enquanto um par de falcões de rabos vermelhos
circulava no céu. A nova plaza já fora demarcada com postes
fronteiriços fixados para marcar os lotes de construções que
ficariam de frente para ela. Uma procissão formal,
encabeçada pelo governador da Alta Califórnia, com índios
de Missões carregando uma grande bandeira da Virgem Ma-
ria, marchou solenemente em volta da plaza, enquanto, à
distância, os índios de Yang-na, o nome nativo desta terra,
olhavam passivamente.
— Nós estamos aqui em mensagem de Deus para salvar
almas — dizia o padre da Missão agora.
Almas!, pensou o capitão Lorenzo cinicamente. Ora, estamos
aqui por causa da preocupação da Coroa com os russos que
estão aumentando suas caçadas na Alta Califórnia e se
estabelecendo no norte. É porque os britânicos botaram os
olhos da cobiça na costa da Califórnia que precisamos de uma
presença espanhola notável neste lugar. Pois nossa principal
tarefa não é criar o maior número possível de cidadãos
espanhóis católicos no menor espaço de tempo, encorajar a
conversão entre os pagãos e encorajá-los a multiplicarem-se,
porque quanto mais cidadãos espanhóis católicos houver
aqui, mais difícil será para outra nação reivindicar esta terra?
O capitão Lorenzo estivera na corte na Espanha há treze
anos, quando o embaixador da Rússia dissera que os russos
estavam planejando ocupar a área da baía de Monterey. O rei
da Espanha não pensou duas vezes.
E nós somos o resultado dessa decisão, pensou o capitão
Lorenzo, enquanto o padre fazia uma oração na nova plaza.
Lorenzo não se preocupava nem um pouco em trazer Jesus
para os pagãos. Seu interesse estava no gado e nos cavalos.
Toda esta terra, até onde a vista podia alcançar, livre para ser
tomada. Um homem podia ficar rico...
Seu olhar caiu sobre a esposa, Dona Luisa, sentada com a
esposa do governador e as esposas de outros oficiais na
sombra de um telhado de sape sobre quatro postes. Uma bela
mulher, pensou ele com agonia, possuidora de uma fortaleza
interior bastante necessária nessa fronteira selvagem. Criolla
como ele, Luisa descendia da nobreza espanhola. Isso era
aparente em sua postura ereta, na reservada expressão do
rosto. Ela guardava o choro para a privacidade de seus
aposentos. Se ao menos eles tivessem tido mais filhos. Mas
Selena fora o centro do universo de Luisa, e agora aquele
centro fora apagado como uma vela. O que uma dama bem-
nascida faria aqui, onde todos os trabalhos e ocupações eram
feitos por índios? Não que Luisa fosse pôr suas mãos
delicadas em tarefas como cozinhar e costurar. Seu papel era
criar os filhos de seu marido, educá-los e orientá-los. Mas
não havia filhos. Nem parecia que jamais haveria.
Lorenzo tentou prestar atenção à cerimônia novamente,
depois da qual haveria uma festa para comemorar a fundação
do povoado, quando então se retiraria, com o mínimo de
ofensa possível, esperava, ao governador e aos padres.
Do outro lado da plaza, num terreno onde algum dia uma
igreja de adobe seria construída, os índios das Missões
prestavam uma atenção respeitosa à cerimônia. Eles usavam
os crucifixos de estanho estampados com o ano e pendurados
em cordas de cânhamo que lhes foram dados como
incentivo para fazerem parte da procissão da Missão ao sítio
onde o novo Pueblo seria construído. Teresa pedira per-
missão para participar das festividades, mesmo estando
doente e precisando descansar, porque era uma oportunidade
para escapar.
Ela trouxera consigo a filha Angela de cinco anos, assim
chamada porque era filha de um santo e porque fora
concebida na caverna da Primeira Mãe.
Os pensamentos de Teresa se voltavam com freqüência para
irmão Felipe, que desaparecera há quase seis anos e que,
murmuravam, havia roubado os ossos de São Francisco da
Missão. Ele voltara para a Espanha, diziam todos. Ele dera as
costas para Deus e voltara para casa para vender a relíquia
abençoada e viver a vida de um homem rico. Mas Teresa
sabia a verdade. Irmão Felipe havia partido para se unir a
Deus.
Enquanto tentava respirar com inspirações curtas por causa
da dor no peito causada pela doença do homem branco, ela
olhou para os soldados e novos colonos, que estavam
impressionados com a façanha de terem "reivindicado" esta
terra, enquanto os yang-nas ficavam de lado, sem
compreenderem, sem perceberem que a terra de seus
ancestrais estava sendo tirada deles. Teresa estava estarrecida.
Nós pensamos que essas pessoas fossem nossos visitantes.
Mas agora eles vão construir casas na terra que pertence aos
ancestrais de outro povo.
Teresa ficou à espera de uma oportunidade para escapar.
Desde o momento em que descobriram que ela estava grávi-
da, os padres da Missão ficaram de olho nela, designando
uma índia batizada e obediente para vigiá-la todo o tempo.
Eles sabiam que de alguma forma ela saíra do convento, mas
não podiam provar. Se uma índia pudesse escapar impune,
disseram os padres, todas tentariam, e seria um êxodo em
massa de volta para as aldeias, deixando os padres sem
ninguém para labutar nos campos ou para construir suas
igrejas. Nos seis anos desde que Teresa visitara a caverna as
regras ficaram mais rigorosas, as punições mais severas.
Houve várias revoltas violentas entre os índios da Missão,
rebeliões contra sua subjugação pelos padres. Soldados com
armas foram trazidos, e os índios, sem defesa contra tais
armas, foram subjugados novamente.
E então Teresa percebera que esta seria uma oportunidade,
quando os padres estivessem distraídos com os soldados e os
colonos. Apesar da febre que queimava sua pele e da dor nos
pulmões, Teresa estava determinada: ela e Angela escapariam
de uma vez por todas.

Armado com sua escritura da Coroa Espanhola, o capitão
Lorenzo cavalgou as fronteiras do que um dia seria seu
rancho: ao sul do riacho que não tinha nome e que ele
batizou de Ballona em homenagem à terra de seu pai na
Espanha, a leste dos pântanos, identificados como la denega
na escritura, e ao norte de la brea, os poços de alcatrão, com
uma antiga trilha que seguia para leste e oeste ao longo da
fronteira setentrional. Ele não recebera a terra como posse
imediata, antes adquirira direitos com a condição de que em
alguns anos, se a tivesse ocupado e melhorado, poderia
requerê-la e receber a concessão plena em seu nome.
Quando esse dia chegasse, já decidira, chamaria sua nova casa
de Rancho Paloma.
A terra cobria quatro mil acres e grupos de trabalhadores
indígenas já estavam fazendo tijolos de adobe: um grupo
num grande poço de lama, amassando argila e palha com os
pés, um outro pressionando a mistura em fôrmas de madeira,
e um terceiro retirando os tijolos secos das fôrmas e os
empilhando, prontos para serem usados na construção. Os
índios trabalhavam quase de graça, especialmente por
comida e contas de colares, as quais usavam para jogar seus
intermináveis jogos de azar. Eles deixaram suas aldeias e
construíram cabanas nos limites da propriedade de Lorenzo.
Ele questionava se, uma vez terminada a construção do
rancho, eles retornariam à vida antiga. Esperava que não,
pois precisaria de mãos para cuidar do gado e dos cavalos.
Que belo rancho seria! Logo haveria uma casa, com estábulos
e anexos, sombreados por árvores que o capitão Lorenzo
estava mandando vir do Peru. Ele imaginava os
caramanchões de rosas e fontes, os caminhos de ladrilhos e
arcadas arejadas. Dentro, haveria pisos de madeira polida e a
mobília pesada de Luisa, que fora transportada do México em
grandes trenós puxados por bois e que esperavam, no
momento, sob tendas de lona no assentamento do Pueblo,
para se rem removidas para seu lar final: camas de quatro
colunas, laboriosamente entalhadas; cômodas, armários e
mesas. Luisa trouxera pratarias e tapeçarias, artigos de peltre
e acolchoados, castiçais para lareiras, travessas para a
cozinha. Seria uma casa digna de uma rainha, pensou
Lorenzo com orgulho.
Mas, então, ele se lembrou de como deixara Luisa, lá no
povoamento, gritando suas ordens aos criados indígenas
enquanto trabalhavam com óleo e panos para polir e
preservar a mobília da senhora. Luisa se tornara fanática
quanto aos cuidados com as cadeiras e cômodas desde que
enterraram a pequena no deserto de Sonoran. Será que esses
objetos se tornariam seus filhos?, pensava Lorenzo,
tristonho. Será que ela se preocuparia mais com a condição
de sua preciosa escrivaninha do que com o conforto de seu
marido?
De repente ele teve uma visão assustadora do futuro: Doria
Luisa, sem filhos e sem amigos — as esposas dos colonos
dificilmente seriam companhias adequadas para uma dama
espanhola bem-nascida —, ficando cada vez mais amarga
com o passar dos anos, andando silenciosamente por entre
suas mobílias, inspecionando para ver se perderam o brilho
ou se estavam empoeiradas, ressentida com as empregadas
indígenas por suas fecundidades e descontando nelas ao ver
manchas e salpicados. Lorenzo se viu ignorado, esquecido,
procurando conforto nos braços de mulheres de pele
morena, mas sem encontrar alegria na própria casa a que,
Dios mio, todo homem tinha direito! Não fora para isso que
viera para a Califórnia.
Precisavam de outro filho, mas Doria Luisa vinha rejeitando
suas investidas amorosas. Sendo um cavalheiro, Lorenzo
nunca a forçaria, nem era de seu gosto fazer amor com uma
mulher que ficava imóvel como um cadáver.
Seu bom humor arruinado, Lorenzo decidiu que iria caçar.
Quando virou o cavalo na direção das montanhas de Santa
Mónica, pensou: alguma coisa grande. Só um veado ou urso
pardo o satisfaria hoje.

Enquanto os padres e o governador estavam celebrando, e os
novos colonos começavam a olhar suas novas terras, falando
sobre o que construiriam aqui e plantariam ali, Teresa
rapidamente subiu numa mula e, com a filha nos braços,
seguiu a antiga trilha para as montanhas.
No fim da tarde elas chegaram ao destino, onde
desmontaram e, com cada respiração uma luta, causando
uma dor aguda em seu peito, Teresa conduziu Angela para
além das marcas do corvo e da lua, subindo o pequeno
cânion e para dentro da caverna.
O pôr-do-sol estava em tal ângulo que projetava raios de luz
sobre a parede pintada.
— Aqui está a história da Primeira Mãe — disse Teresa.
As histórias estavam se perdendo. Poucas pessoas moravam
nas aldeias, de modo que algum dia as aldeias não existiriam
mais. As tribos estavam todas misturadas nas Missões: tongva
com chumash, kemaaya com topaa, e os padres as estavam
chamando de gabrielino e fernanderio por causa dos nomes
das Missões. Histórias erradas estavam sendo contadas à
noite ou não eram sequer contadas. Em vez disso, as histórias
eram sobre Jesus e Maria, de modo que os ancestrais dos
topaas logo seriam esquecidos. Mas Teresa ensinaria a Angela
as histórias e lhe diria que ela deveria passá-las adiante para
que a história de seu povo não fosse esquecida.
— Você não viverá sob os costumes dos invasores — disse
ela enquanto retirava o crucifixo de seu pescoço. — Eles não
entendem nosso povo.
A expressão no rosto dos padres quando lhes contara que
estava grávida, as horas de interrogatório — quem foi o
homem? —, a insistência deles em saber quem era o pai, para
que fosse trazido à Missão e recebesse o batismo. Mas Teresa
orgulhosamente ficara calada. O que ela fazia com o seu
corpo era problema dela, como sabia toda mulher topaa.
Estes homens que se chamavam de "padres", embora não pu-
dessem gerar filhos por causa do celibato, tentavam impor às
mulheres nativas como deveriam agir, como deveriam se
conduzir sexualmente. Nenhum homem topaa ousaria
tamanha impertinência.
Explicando a Angela sobre deixar um presente para a
Primeira Mãe, Teresa enterrou o crucifixo num leito de
pétalas. Em seu estado febril, não lhe ocorrera que seu ato
era também simbólico, que ela enterrara a nova religião no
seio da antiga religião.
Retirando a pedra mística do pescoço, ela a colocou no
pescoço de Angela. Depois ajoelhou-se diante da menina e,
segurando seus ombros, disse:
— Seu nome é Marimi. Você não se chama mais Angela. Eu
vou levá-la a uma aldeia onde o povo não ouviu falar do deus
dos espanhóis, que manda seu povo roubar a terra dos
outros. Você será criada dentro dos costumes dos topaas e da
Primeira Mãe.
Ela passou a mão no rosto da menina, este anjo que lhe fora
dado por um santo, e disse:
— Minha preciosa filha, você é uma pessoa especial e
escolhida. A doença que às vezes você sente na cabeça não é
uma aflição mas um dom, e algum dia você entenderá isso.
Mas antes que isso aconteça...
Teresa tossiu de repente e curvou-se de dor.
— Mamã! — gritou a menina.
Teresa prendeu a respiração até a dor diminuir. A cavalgada
da nova plaza até aqui a enfraquecera. Ela não sabia que
estava tão doente.
— Ouça o que vou dizer, minha filha. Seu nome é Marimi,
entende? Você não é mais Angela, pois esse é um nome dos
estrangeiros cristãos que não pertencem a este lugar. Você é
Marimi e será a nova Guardiã da Caverna. Entendeu?
— Entendi, mamã.
— Diga, filha, diga-me o seu nome.
— Eu sou Marimi, mamã.
— Muito bem... E agora nós partiremos. Existem aldeias a
oeste daqui onde os intrusos nunca pisaram. Nós ficaremos
seguras lá. Os soldados nunca nos acharão. — Mas quando
Teresa virou-se para a entrada da caverna, suas pernas
enfraqueceram e ela caiu no chão. — Não posso continuar
— disse ela, ofegante. — Marimi, preste atenção. Você
precisa buscar ajuda. Desça o cânion e ande em direção ao
mar. Pode fazer isso?
A menina fez que sim com a cabeça, respeitosamente.
— Há uma aldeia... alguns dos nossos ainda moram lá. Diga a
eles que estou nesta caverna, a caverna da Primeira Mãe, e
que estou doente. Repita para mim, minha criança. Eu quero
ver se você entendeu. — Angela repetiu as instruções e
Teresa recostou-se na parede. — Eles vão ter remédios. Vão
recuperar minha saúde. E depois nós vamos viver entre
nosso povo. Vá agora, criança. Para o mar. Para a aldeia. E
traga-os de volta. Eu vou esperar.
A garotinha desceu o terreno difícil do cânion, atenta à sua
incumbência, mas acabou se perdendo. Para qualquer lado
que se virasse, havia mais cânions, mais pedras, e não havia
mar nem aldeia. Ela começou a chorar.
De repente, um homem seminu apareceu diante dela, os
cabelos longos e emaranhados, a pele queimada pelo sol, a
expressão selvagem.
Angela desviou-se e correu, mas foi bloqueada. O homem
selvagem ficou entre ela e a abertura do cânion.
Ele caminhou em sua direção, olhando para ela com uma
expressão confusa, emaciada, com cicatrizes e feridas no
corpo sujo e apenas um pedaço de pano velho em volta do
lombo. Mas ele tinha olhos verdes inteligentes e depois de
algum tempo um tipo de luz desceu sobre ele.
— Por que está chorando, minha criança?
Sua voz era surpreendentemente gentil, o que a fez parar de
chorar.
— Minha mamã está doente e eu não consigo encontrar a
aldeia.
Ele piscou. E depois olhou em volta.
— Onde ela está?
— Na caverna.
O homem ficou imóvel. A caverna. Ele se lembrava de uma
caverna... mas isso fora anos atrás ou apenas ontem? A
caverna onde vivenciara seu arrebatamento e fora tocado
pela Mão de Deus, e desde então andara diariamente com
Jesus nestas montanhas.
Ele franziu as sobrancelhas enquanto olhava a garota mais
atentamente. O contorno do couro cabeludo, o formato dos
olhos, os lábios carnudos. Teresa!
E algo mais. Uma pequena pinta no lado direito do queixo.
Sua própria mãe... sua mente lutava com as lembranças que
há muito abandonara. E uma irmã. A mesma pinta.
— Não chore, pequena — disse ele, sorrindo agora para
revelar dentes quebrados. — Eu sei onde sua mãe está. Eu
conheço a caverna. Nós vamos ajudá-la. Nós vamos fazer ela
ficar bem — acrescentou ele, estendendo a mão nodosa que
Angela segurou.
— Pare! — gritou uma voz de repente, ecoando pelas paredes
do cânion.
Angela e o homem selvagem se viraram para ver um oficial
espanhol na base do cânion.
— Solte-a! — comandou ele.
Irmão Felipe deu um passo à frente, mãos espalmadas,
pronto para explicar. Mas o gatilho foi mais rápido, e a bala
do mosquete bateu direto em seu coração, fazendo-o tombar.
Angela começou a gritar. Lorenzo correu até ela e a pegou
nos braços para afastá-la da visão do homem morto. Quando
ele saiu do cânion e estava de volta onde deixara os cavalos,
pôs a garota no chão e tentou acalmá-la.
— Ele não pode machucar você, pequena. O homem
selvagem foi embora.
Ela ficou em silêncio, olhando para ele.
— Habla Espanol? — perguntou ele.
Ela balançou a cabeça, afirmativamente. E depois começou a
chamar pela mãe.
Uma criança linda, pensou ele, intrigado pelo modo como o
bico-de-viúva em sua testa dava ao seu rosto um charmoso
formato de coração. Quase da mesma idade de sua filha
quando morreu.
Suas roupas indicavam que ela era uma índia da Missão.
Fugitivas?
— Cómo te llamas? — perguntou ele.
— Eu preciso voltar para minha mãe — respondeu ela em
espanhol. — Ela está doente.
— Doente?
Ele olhou em volta do cânion, escurecendo agora com longas
sombras e uma friagem no ar. Então a mãe fugira com a filha
e viera para estas colinas para se esconder dos padres. E ela
estava doente. Quando a noite chegar, a mulher ficará
indefesa contra os leões da montanha e ursos pardos que
vivem por aqui.
Uma idéia começou a se formar na mente de Lorenzo.
— Eu vou levar você para a sua mamã se você me disser o seu
nome — disse ele com um sorriso.
Ela esfregou os punhos nos olhos. Sua cabeça estava
começando a doer. Mamã lhe dissera alguma coisa sobre seu
nome, mas ela não conseguia lembrar. Então ela disse:
— Angela.
Ele pôs a menina em seu cavalo e ela cavalgou em silêncio
por algum tempo em seus braços, mas quando viu que
estavam se afastando das montanhas começou a gritar e a
chamar pela mãe, então Lorenzo pôs a mão sobre sua boca,
esporeando o cavalo para ir mais rápido, sabendo que com o
tempo ela esqueceria, sendo tão jovem, especialmente
quando sua esposa a recebesse como filha e a enchesse de
carinho.
Enquanto galopava pela planície, longe das montanhas e do
mar, a criança presa e calada em seus braços, e pensando em
como Luisa sairia do luto e o aceitaria em sua cama, Lorenzo
decidiu que a caçada do dia fora, de fato, bem-sucedida.

Capítulo Nove

— Ele ficou louco depois que a esposa morreu, sabe.
Érica virou-se, assustada. Ginny Dimarco tinha um sorriso
duro sob o olhar duro. Ela seguira Érica até o deque da
piscina, longe dos convidados barulhentos e dos Gypsy Kings
cantando Hotel Califórnia através de enormes caixas de som.
Apesar do ar frio da noite, alguns convidados estavam
nadando na piscina aquecida. Mas a praia além do deque
estava escura e deserta.
Érica sabia que Jared Black fora convidado para o coquetel na
casa de praia dos Dimarco e que recusara. Suspeitava que
Ginny Dimarco estava agora recorrendo à vingança da
anfitriã ofendida: fofocas rancorosas sobre o convidado
ofensor — especialmente estando o convidado no comando
da Comissão para a Herança dos Americanos Nativos,
achando-se a própria anfitriã, uma socialite rica e
patrocinadora das artes, empenhada numa cruzada pessoal
para criar um museu indígena com o seu nome associado a
ele.
Cinco minutos antes, dentro da fabulosa casa dos Dimarco na
praia de Malibu, que era uma vitrine de cerâmica Pueblo,
cestaria da Costa Oeste, talismãs zuni, bonecos kachina,
postes de totem esquimó e máscaras kwakiutl, Ginny
encurralara Érica, os olhos estranhamente febris.
— Como é trabalhar com Jared Black novamente?
Érica não quisera ir à festa dos Dimarco, mas Sam lembrara-
lhe que era uma boa ocasião para se fazer um pouco de
relações públicas e ser gentil com as pessoas ricas que
financiavam suas subvenções. Então Érica vestiu seu único
vestido de festa — um tubinho preto de alça — e penteou os
cabelos para cima aparentando o estilo dos salões de beleza.
O salto alto e as meias de náilon davam uma sensação
estranha depois de semanas de botas de trabalho e meias de
algodão.
— Eu não estou trabalhando com ele.
— Brigando com ele então — disse ela com um sorriso
cortante. E depois os olhos de Ginny se fixaram em Érica e
ela fez uma pausa antes de acrescentar: — É uma pena o Sr.
Black ter um compromisso anterior para esta noite. Tem
pessoas aqui que gostariam muito de conhecê-lo. Pessoas
importantes.
Érica percebeu uma tremor de hostilidade nos olhos de
Ginny.
— O convite foi feito há semanas — acrescentara a Sra.
Dimarco, num tom cheio de significado.
Érica sabia que Ginny esperava que ela preenchesse a
informação que faltava, a desculpa que Jared dera para esta
desconsideração imperdoável. Ela imaginava se de fato
Ginny usara o nome de Jared como chamariz, se havia
convidados que vieram com a intenção de conhecer e se
mesclar na esperança de fazer contatos em Sacramento.
Enquanto Érica lutava para manter a língua presa — sentira-
se tentada a dizer que Jared estava no acampamento
assistindo à volta de I Love Lucy na TV —, outro convidado
interrompeu para dizer a Ginny que a festa estava fabulosa.
Érica aproveitara a oportunidade para escapar para o deque
da piscina e para encher os pulmões com o ar fresco do
oceano e fugir das conversas e mexericos da festa, para ficar
sozinha e tentar compreender suas emoções desencontradas.
Jared estivera invadindo lentamente seus pensamentos e
sonhos, sussurrando para ela: O que você vê não é o que eu
realmente sou. Érica precisava sondar essa preocupação
crescente com Jared, para encontrar suas causas e entendê-
las. Mas sua anfitriã, como um predador, a seguira.
— Sabia que ele ficou louco depois que a esposa morreu? —
repetiu ela, os olhos predatórios observando Érica.
Por que esse ataque implacável?, pensou Érica. E então lhe
ocorreu que Ginny estava esperando que Érica voltasse ao
acampamento com histórias para contar, para deixar o
comissário rude saber a falta imperdoável que cometera.
— Logo depois do funeral — continuou Ginny, como se
Érica a tivesse instigado por mais — ele desapareceu. A
família iniciou uma caçada humana, seus parentes estavam
desesperados. Bem, eu não acho que eles realmente
pensaram que ele cometeria suicídio, mas havia
especulações.
Érica pestanejou para a mulher. Jared? Suicídio?
— Você não sabia?
— Eu estava na Europa.
— Essa foi simplesmente uma das maiores histórias da época,
como Jared desapareceu e a polícia não conseguia achá-lo.
Foi por acaso que uma equipe de biólogos marinhos o
encontrou quatro meses depois numa das Ilhas Channel. Ele
virara um índio. Eles o encontraram completamente nu e
pescando numa lagoa com uma lança. Os cabelos estavam
longos e a barba crescera e ele estava queimado feito um
tição, disseram.
Figuras escuras estavam começando a se materializar agora
nas dunas — famílias chegando em bandos para estacionar
nas laterais da Pacific Coast e se lançar à praia com lanternas
e sacos para a migração anual de grunions. Érica, sua mente
cheia com as imagens de uma figura desesperada e sozinha
entre madeiras flutuantes, lavandeiras e algas, estava apenas
vagamente ciente delas.
— Eles tiveram de persegui-lo — continuou Ginny, vendo
como cativara sua convidada, e apreciando o fato. — E
depois ele se escondeu em algumas cavernas. Na verdade,
eles o rastrearam como a um animal. O modo como
finalmente o pegaram foi esperando até que a noite caísse e
vissem a luz de sua fogueira.
Érica redescobriu o copo de vinho em sua mão e tomou um
longo gole, seus olhos estavam longe no horizonte onde as
estrelas tocavam o oceano. De repente ela foi tomada de uma
fúria abrasadora.
— Foi uma comoção geral, é claro — prosseguiu Ginny. —
Quando os biólogos o trouxeram para casa, o pai dele exigiu
uma avaliação psiquiátrica, quis até internar o filho numa
instituição para observação. Mas Jared simplesmente cortou
os cabelos, fez a barba e voltou ao trabalho como se nada
tivesse acontecido. Mas mesmo assim isso não é normal, não
é? Certamente espera-se que um homem sofra depois da
morte da esposa, mas chegar a tal extremo? — disse ela
sorrindo, e os diamantes em seu pescoço faiscaram no clarão
da lua. — Dificilmente eu esperaria que meu Wade se
tornasse um aborígine simplesmente porque eu morri!
Érica apertou mais a mão em volta do copo. Queria jogar o
vinho na cara da mulher. Em vez disso, reforçou sua atenção
nas fogueiras que agora queimavam ao longo da praia.
Grunion é uma espécie de peixe costeiro, com vinte
centímetros de comprimento, de boca pequena e sem
dentes. Todo ano, de março a agosto, eles migram e fazem
desovas noturnas nas praias do sul da Califórnia — milhares
de grunions deslizando nas ondas com as fêmeas escavando
freneticamente a areia e depositando os ovos enquanto os
machos circulam e os fertilizam. Depois, todos deslizam nas
ondas de volta para o mar até a próxima migração. A não ser,
é claro, que sejam agarrados antes pelos humanos que
esperam na arrebentação para apanhar os desprevenidos
grunions com as próprias mãos e jogá-los no saco.
Érica estivera em caçadas aos grunions antes, havia segurado
a lanterna ou o saco, e depois participara do churrasco à
meia-noite e comera alegremente os infelizes migradores.
Esta noite, no entanto, o espetáculo a enchia de uma tristeza
inexplicável.
Ele ficou louco. Érica imaginou o santuário que Jared devia
ter construído para a esposa no quarto de seu trailer. Ele teria
um retrato de Netsuya e flores verdadeiras que trocava todos
os dias, talvez até velas. Jared falaria com Netsuya todas as
noites antes de deitar e ela seria a primeira pessoa com quem
falava de manhã.
Érica colocou a mão no peito. De repente não podia respirar.
À distância, ondas de arrebentação se quebravam na praia, e
um par de crianças, correndo na areia, seus gritos como os
das gaivotas, balançando as lanternas. Um raio de luz
apunhalou os olhos de Érica.
A luz forte do sol da Ilha Channel, selvagem e varrida pelo
vento.
No instante seguinte, algo bateu em seu peito, como uma
onda de choque invisível. Ela ofegou.
— Olhe para aquilo — disse Ginny com um sorriso animado,
mas balançando a cabeça em seguida. — Os grunions não
têm nenhuma chance. Onde mais a não ser no sul da
Califórnia os peixes se jogariam na praia? Não precisa nem de
vara de pescar! Não surpreende que os índios fossem tão
antibélicos.
Érica ficou olhando para ela. Depois colocou o copo na mesa
do pátio, pediu desculpas e entrou.
Ela passou se desviando de pessoas bem-vestidas e garçons
de paletós vermelhos oferecendo bandejas de champanha e
canapés, determinada e sem parar, sentindo uma pressão
crescer em torno do coração. Encontrou Sam, convenceu-o
de que precisava ir, e quando ele lhe deu a chave do carro,
dizendo que pegaria uma carona para o acampamento mais
tarde, Érica estava fora da casa dos Dimarco e em alta
velocidade na Pacific Coast, mais rápido do que a maré que
trazia os peixes condenados à praia.
Érica ficou um longo tempo sentada no carro depois de
desligá-lo e apagar os faróis. Descansando a testa suada no
volante, fechou os olhos e tentou examinar seu interior.
O que acontecera no deque dos Dimarco? Um colapso
cardíaco? Uma ataque de pânico? A dor ainda estava lá, atrás
de seu esterno, angustiante, encurtando a respiração. "Eles o
encontraram numa das Ilhas Channel, nu e pescando com
lança..."
Érica sentiu uma vontade imensa de chorar, mas as lágrimas
não vinham. Enquanto respirava com dificuldade, tentando
se recompor, sentiu o peso acomodar no peito, como se algo
novo houvesse entrado ali. Era escuro e pesado, como um
pássaro indesejável que viera empoleirar-se, as asas mofentas
fechadas pela longa distância percorrida.
Érica conseguiu sair do carro e seguiu para o acampamento
iluminado, sua pele nua arrepiada. A lua brincava de
esconde-esconde com os galhos acima, um olho espiando
Érica, como os olhos dos fantasmas que ela acreditava
habitarem a floresta Topanga. Ela olhou para o trailer de
Jared. Estava escuro. Ele ainda não voltara de sua escapada
noturna para Deus sabe onde. E se ele estivesse aqui, o que
ela diria a ele?
Quando se aproximou de sua própria tenda, Érica viu que a
aba não estava fechada como deixara mais cedo.
Entrando com cuidado, acendeu a luz e olhou em volta. Sua
primeira preocupação era com a descoberta que fizera
naquela tarde no Nível IV. Mas o objeto ainda estava lá,
exatamente como deixara sobre a mesa de trabalho.
Conferindo o arquivo de metal, viu que ainda estava
trancado. Já que não mantinha dinheiro ou jóias na tenda,
Érica não conseguia imaginar por que alguém arrombara sua
tenda. E no entanto ela estava certa de que alguém estivera
lá.
Foi então que viu algo. Sobre o travesseiro.
Era uma machadinha comum, encontrada em qualquer loja
de ferragens, exceto que esta fora enrolada com tiras de
couro cru e decorada com penas para torná-la parecida com
uma tomahawk indígena. Érica sabia o que isso significava.
Era uma declaração de guerra.
Ela começou a tremer. Alguém violara sua privacidade, da
mesma forma que Ginny Dimarco violara a de Jared. Por um
instante, Érica literalmente ficou enfurecida. Depois saiu
apressada para a noite fria e, esquecida do fato de que ainda
estava de vestido de festa e salto alto, atravessou o
acampamento marchando para a tenda da cafeteria,
tomahawk em punho. Os índios não estavam no canto
costumeiro jogando dardos, como se soubessem que ela viria
atrás deles. Voltando para fora, viu-os na beirada do
acampamento, iluminados por uma fogueira, um círculo de
guerreiros atirando dardos contra uma tábua pregada numa
árvore.
Quando se aproximou, viu um homem gigantesco, os cabelos
grisalhos em longas tranças indígenas, dominando o jogo. Ela
não o conhecia. Ele usava uma jaqueta de náilon de
bombardeiro com um selvagem tigre asiático bordado nas
costas e, embaixo, em letras carmim e amarelo: Vietnã,
junho 1966. Quando ele se virou, Érica viu a insígnia militar
de uma lança em chamas em um dos ombros, rotulada, 199a
Brigada de Infantaria. Ele tinha os sobrolhos grossos e um
queixo pesado, sua postura era agressiva e o sorriso, de
desprezo, quando disse:
— Ora, ora, se não é nossa amiga antropóloga...
— Quem é você? — perguntou ela, indo até ele. Apesar do
salto, ele ainda era uma cabeça mais alto que ela. — Você
não faz parte da nossa equipe.
Ele levou a lata de cerveja até a boca e tomou um longo gole,
os olhos apertados fixos nela.
— Isto é seu? — perguntou ela, mostrando a tomahawk.
Limpando a boca com a mão grande, o gigante disse:
— Sabe de uma coisa? Eu me lembro de quando era garoto na
reserva, e vocês, putas brancas, vinham de universidades
próximas e passavam o verão nos estudando.
— Eu perguntei se isto é seu? — insistiu ela, erguendo mais a
arma.
— Vocês passeavam com suas câmeras e blocos de anotações,
usando shorts curtos para mostrar as pernas longas aos
fogosos garotos índios, enquanto se agarravam
defensivamente em seus namorados branquelos, antrobobos,
com suas jaquetas de falsa camuflagem e mochilas. Vocês
achavam que todos nós morríamos de tesão em vocês, não é?
Quando tudo o que realmente fazíamos era rir de vocês por
ganharem notas pelo semestre escrevendo as histórias que
contávamos, porque vocês não sabiam que nós as
inventávamos — já que nós certamente não íamos revelar
nossas histórias verdadeiras e sagradas.
Quando Érica abriu a boca para responder, ele deu um passo
à frente, ameaçador.
— Ficamos sabendo que você vai fazer testes de DNA nos
esqueletos. Mas nós temos uma surpresa para você. Você não
vai raspar nenhuma célula de meus ancestrais e colocá-la no
microscópio. Nós não precisamos de nenhum laboratório
para nos dizer quem foram nossos antepassados.
Ele deu mais um passo para a frente, e, quando Érica deu
uma olhada para trás na direção do acampamento através das
árvores, ele riu e disse:
— Não é horrível como nunca há uma cavalaria por perto
quando precisamos de uma?
Só que ele pronunciou "calvário".
Então eles ouviram barulho de passos esmagando galhos
secos, e um recém-chegado emergiu dentro do círculo da luz
da fogueira. Jared, carregando sua sacola de ginástica.
— Charlie, que diabos está fazendo aqui?
Os olhos do gigante ficaram ainda mais estreitos e maus.
— O nome é Coiote, homem.
— Você não faz parte da equipe. Está invadindo o
acampamento.
— Este é um país livre. País de índio. De um mar ao outro.
Quando Jared olhou interrogativo para Érica, ela lhe
entregou a tomahawk.
— Isto estava em minha tenda.
— Algum de vocês reconhece isto?
Os homens o ignoraram e voltaram a jogar dardos. Jared
sentiu o peso da tomahawk no ar, inclinou-se para trás e
atirou a machadinha com tanta velocidade que quando ela
atingiu a mosca do alvo a tábua se partiu em duas. Voltou-se
para Coiote:
— Arrombamento e invasão são delitos graves. Lembre-se
disso.
— Leis de homem branco, não nossas — disse Coiote,
golpeando o ar com o dedo grosso. — Vocês anglos fizeram
o que puderam para negar a nós índios californianos nossa
língua e nossa identidade. Os tratados da década de 1850
nunca foram ratificados pelo Senado, logo não tivemos
permissão para manter nossos territórios. Os índios da
Califórnia têm sido sistematicamente negligenciados pelo
Escritório de Assuntos Indígenas, então nós temos a menor
taxa per capita para a obtenção de recursos de todas as áreas
do EAI. Merda, homem, metade de nossas tribos não possui
sequer reconhecimento federal, então nós não recebemos o
dinheiro, como os outros índios recebem. Os índios da
Califórnia estão sofrendo perdas econômicas e assistenciais
por causa de nosso histórico desalojamento de terra, que é o
pior da nação. Então vá se danar com o seu delito grave.
Jared agarrou o homem grande pela camisa e disse em voz
baixa:
— Seja lá o que tencione fazer, sugiro que arrume suas coisas
e saia imediatamente.
Coiote afastou-se, alisou a camisa.
— Lembre-se de uma coisa, homem. Nós não vamos mais
tolerar imposições. Nós estamos nos organizando, estamos
nos mobilizando. Vocês acham que nós somos apenas um
bando de índios idiotas, mas nós temos uma grande surpresa
vindo por aí. Vocês deixam essas pessoas chegarem e
rezarem aqui — disse ele, arremessando um enorme braço
na direção da cerca de segurança do outro lado de Emerald
Hills Drive, onde um grupo de fanáticos estava de mãos
dadas e cantando mantras. — Isso nos ofende, esses cristãos
com suas falsas religiões, vindo para nosso lugar de adoração
e fingindo que são devotos. O que vocês achariam se nós
colocássemos nossas penas e nossos colares e fôssemos
dançar a dança da chuva no meio da Catedral de São Pedro?
Os tempos estão mudando, homem. Nós temos processos
contra editoras que publicam dicionários com a palavra
squaw. Essa palavra é insultuosa para nossas mulheres. Nós
estamos fazendo os botânicos mudarem os nomes das plantas
que vocês anglos chamam de squaw'weed e squaw-bush .
Estamos dizendo aos zoólogos para descobrirem outro nome
para squaiv-fish . Nós vamos inclusive acabar com a palavra
índio, porque nós não viemos da índia, homem. E nós não
somos americanos nativos, nós somos os primeiros america-
nos. Então fique de olho aberto, Senhor Advogado Branco, e
testemunhe o poder dos filhos de Touro Sentado e Cavalo
Doido.
Jared segurou o cotovelo de Érica e a levou embora
rapidamente.
— Nós precisamos ficar atentos — disse ele calmamente. —
Coiote não está aqui por razões sociais. Ele está aqui para
agitar. Enquanto nossos rapazes são geralmente apolíticos e
não militantes, interessados apenas em ganhar um salário,
Coiote pode ser muito persuasivo. Ele faz parte do núcleo
dos Panteras Vermelhas.
Érica sentiu um choque com o toque inesperado de Jared em
sua pele. Naquele momento, ela se preocupava mais com
Coiote e a tomahawk, com os índios ou mesmo com a
caverna. Jared estava aqui, tocando-a, e o impacto da história
de Ginny Dimarco voltou de súbito.
— Os Panteras Vermelhas? — ela se ouviu dizer. Mas queria
mesmo era perguntar sobre as Ilhas Channel. Encontrara o
que estivera procurando lá?
— Eles são membros radicais do movimento em prol dos
índios americanos, e desde Alcatraz e Wounded Knee que
eles procuram um novo lugar para expor suas queixas. E
estão de olho na caverna.
— Quem é esse Coiote? — perguntou ela, mas sentindo a
pressão no peito aumentar.
— O nome verdadeiro dele é Charlie Braddock. Ele tentou se
filiar a todas as tribos que você conhece, dos suquamishes
em Washington aos seminoles na Flórida. Nenhuma delas
pôde aceitá-lo, porque ele não conseguiu provar
consangüinidade. Então ele decidiu se filiar a uma tribo não
reconhecida em âmbito federal, porque assim não teria de
provar linhagem.
— Quer dizer que ele não é um americano nativo?
— Se Charlie tem sangue índio, ele o conseguiu na Cruz
Vermelha. Antes de se juntar ao movimento ele passou um
tempo como mercenário na África, e antes disso foi
motorista de ambulância até ser preso por se passar por
médico. Toda aquela conversa sobre viver na reserva
indígena é fabricada. Charlie nasceu e se criou em San
Fernando Valley, e freqüentou um colégio só para brancos. E
aquela jaqueta que estava usando — ele nunca serviu no
Vietnã. Quando fizeram a convocação, Charlie atravessou a
fronteira às escondidas para o Canadá, escapando. Felizmente
para ele seu número nunca foi chamado. Mas não o
subestime. Ele é perigoso, para ambos, brancos e índios.
Quando entraram na luz do acampamento, Jared trocou a
sacola de ginástica de mão e fez uma careta de repente,
segurando o flanco.
Érica olhou para ele assustada.
— Você está bem?
— Eu estou bem — disse ele, mas não parecia. Estava pálido,
Érica viu agora, e transpirando apesar do vento frio da noite.
— Está tudo bem, sério. É só um mau jeito. Um estúpido
mau jeito.
— O que aconteceu?
— Eu fiz zigue quando devia ter feito zague. — disse ele,
tentando sorrir.
— Quer que eu encontre uma enfermeira?
— Eu só preciso de um drinque — respondeu, balançando a
cabeça. — O dia foi longo.
Seus olhos passaram pelos cabelos dela, que ainda estavam
presos, e depois exploraram seus ombros nus.
— Bonito vestido — disse ele.
Os pulmões dela se contraíram.
— Eu acabo de voltar da festa dos Dimarco.
Ele continuou parado lá, no meio dos carvalhos e tendas,
com pessoas passando, como se ele e Érica estivessem
sozinhos no topo do mundo sem pensar em ninguém exceto
neles.
— Continua sendo um vestido bonito — disse ele
calmamente.
O coração dela deu um salto. Ele ficou louco depois da morte
da esposa.
— O que você acabou de fazer foi um ato de coragem,
enfrentado Charlie e sua turma desse modo.
— Eu aprendi a lidar com gente do tipo dele.
"Não há nada mais poderoso do que olhar diretamente nos
olhos de alguém. Lembre sempre disso, Érica. Quando
confrontada por uma valentona, olhe diretamente para ela.
Se confrontada por um grupo, escolha uma e olhe
diretamente para ela. Ela retrocederá e as outras a seguirão. E
quando estiver na sala do tribunal, olhe nos olhos do juiz.
Não olhe para nenhum outro lugar. Não olhe para seu
advogado ou oficial de justiça ou relator. Você ficará surpresa
com o poder que há em seus olhos."
A voz do passado referira-se ao sexo feminino, porque as
valentonas que Érica tivera de enfrentar eram garotas
duronas da instituição juvenil que puxavam seus cabelos e a
chamavam de "pobretona do vale".
— Vou alertar a segurança para ficar de olho no Coiote e na
sua tenda — disse Jared. — Venha tomar um drinque
comigo e me contar o que perdi na festa.

Érica estivera apenas uma vez no trailer de Jared, no começo
do projeto. Ela se lembrava do espaço da "sala de estar" atrás
do motorista e do banco de passageiros, com um sofá e duas
cadeiras de couro com T\WCR entre elas. Fora um "centro
de negócios" impressionante, com fax, telefones e um
computador, pilhas de papéis legais, correspondência, livros
de direito, e, mais adiante, a quitinete, totalmente guarnecida
com geladeira, máquina de lavar pratos, fogão, microondas e
uma moderna máquina de cappuccino. Pela porta do quarto,
Érica lembrava ter visto uma grande cama.
Mas, ao seguir Jared enquanto ele acendia as luzes, viu que
uma mudança surpreendente acontecera.
A escrivaninha fora trocada por uma mesa de desenho.
Esboços de casas e prédios de escritórios estavam presos no
quadro de avisos, cobrindo memorandos legais e reportagens
sobre Emerald Hills. Onde ela lembrava ter visto porta-
canetas e blocos de papéis oficiais havia agora acessórios de
desenho e lápis. Mais impressionante de tudo: a pequena
mesa de jantar, feita para ser dobrada e tirada do caminho
quando não estivesse em uso, agora sustentava a maquete de
uma casa fabulosa, em estilo contemporâneo, completa com
jardim e piscina.
— Está projetando isto para alguém? — perguntou Érica,
admirada.
— É apenas um hobby — disse ele, mas havia orgulho em sua
voz e ele estava claramente satisfeito pela reação dela. Jared
devotara muitas horas da madrugada projetando modelos de
construções meticulosas com cartolina e balsa, até as
minúsculas maçanetas de bronze em todas as portas.
Havia móveis lá dentro, Érica viu, e pessoas pequeninas.
— Quem são? — perguntou ela.
— As pessoas? Estão aí só pela proporção.
Ela pensou por um instante, os olhos percorrendo os
pequenos aposentos espaçosos, construindo as vidas que
estavam vivendo neles.
— São os Arbogast — disse ela. — Sophie e Herman
Arbogast, e seus filhos Billy e Muffin. Sophie não trabalha,
mas preenche seu tempo como voluntária no St. John's
Hospital e como docente acompanhando grupos no Museu
Getty — disse ela, espiando os aposentos de cima, onde
escadas davam para lugar algum. — Herman é um
cardiologista passando por uma crise de meia-idade. Ele está
pensando em começar um romance com sua enfermeira.
Acha que Sophie não sabe, mas ela sabe e espera que ele
tenha esse romance, porque ela mesma está tendo um caso
com o sócio de Herman desde o ano passado — continuou
Érica, abaixando-se para olhar a cozinha espaçosa e a sala
íntima adjacente. — Billy está animado porque está para ser
promovido de lobinho a escoteiro, e Muffin está andando
nas nuvens porque suas espinhas finalmente desapareceram
e ela acha que um certo garoto na sua turma de história gosta
dela.
Érica endireitou-se e olhou para Jared.
— E uma bela casa. — Quando viu como ele a olhava, corou
e disse: — É um hábito terrível que eu tenho, inventar
histórias.
Ele sorriu e balançou a cabeça. Depois abriu a divisória
deslizante e desapareceu no quarto.
Érica olhou em volta para a curiosa metamorfose que parecia
estar acontecendo no mundo particular de Jared, livros de
direito dando lugar a desenhos e lápis, mandados judiciais a
plantas. Era como se o arquiteto estivesse se apoderando do
advogado, reclamando sua antiga vida. Como se alguma coisa
dentro de Jared estivesse tentando sair, tentando tomar
forma e significado.
Ele saiu do quarto, a mão pressionado um dos lados, e foi
para o banheiro, onde cautelosamente tirou a camisa para
inspecionar as costelas. Érica viu seu reflexo no espelho: uma
lesão feia já estava se formando.
— Foi lá que você se machucou, em seu curso de atirar
tomahawk? — perguntou ela.
— Como disse? — perguntou Jared, pondo a cabeça para fora
da porta.
— É lá onde você vai todas as noites, para aprender a lançar
tomahawk?
Ele olhou para ela sem entender. Depois ele riu, se
contorcendo.
— Esgrima — disse ele, saindo do banheiro com um kit de
primeiros-socorros.
— Esgrima! Estacas? Postes e tábuas? Ferro batido?
— Floretes, espadas e sabres — disse ele, estendendo o braço
num gesto impetuoso que o fez encolher de dor. — Eu não
estava concentrado e meu valioso oponente me acertou.
Érica o viu de repente, en garde, declarando: "Pela França e
pela rainha!" E depois esquivando-se e fintando, leve e
rápido sobre os pés, florete cortando o ar com um som
sibilante, gritos de "touché!". Um esporte para nobres. Um
esporte mortal.
Enquanto ele pegava uma atadura e removia o plástico e
clipes de metal, Érica ficou ciente do pequeno espaço dentro
do trailer de Jared, de que estavam apenas a alguns passos um
do outro, ambos semivestidos — ou seminus como diria um
otimista, pensou Érica frivolamente —, ele sem camisa, ela
com aquele vestidinho de festa. Quando ele tentou enrolar a
atadura em volta do peito, sem sucesso, pois a atadura estava
desajeitada e ele a deixava cair, Érica se aproximou e disse:
— Deixe-me ajudá-lo.
Ela ancorou uma ponta em seu esterno e pediu que ele
segurasse enquanto ela desenrolava a atadura em volta de
suas costelas. Ele tentou não fazer careta, mas ela podia ver
que estava doendo.
Enquanto desenrolava a atadura, passando-a pelo seu peito,
depois estendendo-a para trás para ajustá-la nas costas, ela
notou que ele cheirava suavemente a Irish Spring e que as
pontas de seus cabelos da nuca ainda estavam aneladas pelo
vapor do chuveiro. Mas sua pele estava quente e seca, e sob
ela, músculos rijos estremeciam. Todas as noites, sem falhar,
Jared Black entregava-se a um esporte vigoroso e exigente.
Por quê? Para manter o físico? Ou havia razões mais
profundas que o forçavam a levantar espadas contra outro
homem?
Quando ele finalmente gemeu, Érica parou e disse:
— Desculpe. Você acha que está quebrada?
— Não. Não é assim tão ruim como parece. Só dói quando
meu coração bate.
Ela terminou o curativo.
— Onde você aprendeu esse toque tão leve? — perguntou
ele.
— Lidando com objetos frágeis.
Seus olhos se encontraram.
— Eu não sou frágil.
Ela não acreditava nisso. Havia alguma coisa dentro dele que
era muito frágil, porque ele fazia muito esforço para protegê-
la. Ela queria saber, mas não se pode simplesmente dizer a
alguém: "Eu fiquei sabendo que você ficou louco um dia."
Então, em vez disso, ela disse:
— Sentimos sua falta na festa.
— Eu preferia fazer um tratamento de canal.
— Mas pensei que você gostasse dos Dimarco. Eles fazem
muito pelos nativos.
— São pseudo-intelectuais liberais que injetam dinheiro de
investimento em filmes como Dança com lobos, mas não
sonhariam em ter um americano nativo em sua mesa de
jantar. Havia algum índio na festa?
— Havia um, eu acho, um chefe de uma das tribos de
Coachella Valley.
— E aposto com você como ele estava usando um terno
Armani e chegou num Porsche. Esses chefes de cassinos são
ricos. Muito pouco dos lucros com o jogo vai para o povo da
reserva. Ginny fez o discurso dela sobre a falta de sabão na
reserva? E a sua tirada favorita no lanche das senhoras,
garantia de abrir muitos talões de cheques. Os pobres índios,
sem sabão na reserva.
Érica ajustou a atadura em seu peito, depois a passou pelas
costas, pegando-a com a outra mão de modo a envolvê-lo
brevemente com os braços. Seus rostos ficaram, por um
instante, muito próximos.
— Ginny não fez esse discurso, mas ofereceu uma teoria
sobre os grunions serem a razão pela qual os espanhóis
acharam a Califórnia uma conquista tão fácil.
Ela continuou enrolando a atadura, em volta e na frente,
braços envolvendo mas sem tocar.
— Eu gosto de seus cabelos desse modo. Espere, espere, um
escapou — disse ele, pegando um cacho errante de sua nuca
e o prendendo de volta na fivela de strass.
Érica quis de súbito desabar contra ele, apoiar a cabeça em
seu ombro, abraçá-lo, desistir de sua luta e ser fraca com ele.
Mas continuou seu trabalho até finalmente terminar o
curativo. Ao prender o clipe, Jared, olhando para ela,
murmurou:
— Pelo amor de Deus, Montressor.
— Como disse?
— Seus olhos estão da cor de xerez — disse ele, e sorriu. — E
agora suas faces estão da cor de maçãs.
— Eu detesto quando fico vermelha. Invejo as mulheres que
conseguem esconder suas reações calmamente — disse ela,
afastando-se. — Você está pronto. Para o futuro, eu o
aconselharia a não brincar com facas.
— O que for — disse Érica, escondendo o sorriso.
— Eu não gosto de mulheres que conseguem esconder suas
reações calmamente. Corar lhe fica bem. Como este vestido.
Suas faces ficaram ainda mais quentes. Os olhos dele
encontraram os dela por um segundo, depois ele se afastou
para abrir uma caixa da tinturaria e pegar uma camisa limpa,
passada e dobrada, dentro de um saco plástico.
— Prefere vinho ou uísque?
Érica hesitou apenas uma fração de segundo.
— Vinho. Branco, se tiver.
Ela olhou enquanto ele vestia a camisa — que parecia sedosa,
bem-cortada e cara — e apreciou o modo como o tecido caiu
perfeitamente sobre suas costas largas. Ele abotoou todos os
botões exceto o último de cima, deixando o colarinho aberto,
depois enfiou a camisa dentro da calça.
Enquanto Jared servia os drinques, eles de repente ouviram
um barulho suave, sussurrante. O tamborilar dos pingos de
chuva no telhado do trailer. Os dois olharam para cima,
como se o teto fosse transparente e eles pudessem ver as
inesperadas nuvens de chuva no céu da noite. A intimidade
dentro do pequeno espaço ficou mais intensa.
Érica pigarreou.
— Temos realmente algo a temer dos Panteras Vermelhas?
— Eles acham que eu devia ter encerrado o trabalho de vocês
há semanas — disse ele, entregando-lhe o vinho. — Sabia
que já existem nove tribos reivindicando a posse da caverna?
— Eu não sabia que alguém a queria! — exclamou Érica,
alteando as sobrancelhas.
— No momento há oito tribos da Califórnia brigando pelo
reconhecimento por parte do governo federal. O problema
está em provar a legitimidade da linhagem histórica. Uma
tribo local que possa reivindicar ligação com a caverna e
portanto com o esqueleto tem uma forte causa para
conseguir o registro federal da tribo, e assim se qualificar para
receber os fundos. — Ele colocou mais gelo no uísque. —
Infelizmente, as outras tribos não querem que novas tribos
sejam reconhecidas, porque assim haveria menos dólares
federais para dividir. O que coloca nós dois no meio de uma
briga feia.
Eles provaram seus drinques em silêncio.
— Então, por que esgrima?
Ele recostou-se na bancada da pia. Nenhum dos dois parecia
querer se sentar.
— E para controlar a raiva. Uma válvula de escape. Se eu não
cruzar espadas com alguém, poderia fazer algo de que me
arrependeria.
— De quem você tem raiva?
— De mim.
Ela esperou.
Ele olhou para dentro do copo e ouviu a chuva por um
momento, examinando os pensamentos, chegando a uma
decisão. Finalmente:
— Netsuya era diferente de qualquer pessoa que eu já
conheci — disse ele. Sua voz era suave, como a chuva. —
Ela era exótica, irada, apaixonada. Mas não era fácil estar
casado com ela. Ela não gostava de anglos e tinha dificuldade
para reconciliar seu amor por mim com sua cruzada. Muitas
vezes ela ia a reuniões nas quais eu era barrado.
Ele tomou uma respiração profunda que o fez fazer careta,
depois tomou um gole do uísque. Érica teve a sensação de
que Jared estava prestes a abrir uma porta muito reservada.
— Quando Netsuya suspeitou de que estava grávida, ela não
foi a um médico habitual. Em seu círculo de amizades havia
uma mulher pomo que era parteira. Netsuya queria ter o
bebê em casa, com o que concordei, mas só mais tarde vim a
saber que eu não tomaria parte no parto. Algo sobre rituais
secretos de mulheres, onde a presença de homens não era
permitida. Eu tinha de respeitar isso.
Ele tomou outro gole do drinque, mas não estava relaxando
dentro de sua história. Érica ouviu a tensão em sua voz.
— Eu queria que ela fosse a um médico, mas ela não ia. Disse
que os homens brancos aprenderam a prática da obstetrícia
há duzentos anos quando ficaram com inveja e tiraram a
prática das mãos das mulheres brancas. Disse que seu povo
vinha tendo bebês por milhares de anos sem a intervenção
de médicos brancos. Quando lhe sugeri que visse uma
médica, ela recusou. Nós discutimos. Eu disse a ela que o
filho também era meu e que eu podia expressar minha von-
tade. Mas Netsuya argumentou que afinal o corpo era dela e,
portanto, a palavra final também.
Jared tomou outro gole, os olhos pousados no telhado da
maquete como se imaginando como os Arbogast lidaram
com os nascimentos de Muffin e Billy.
— Quando Netsuya entrou em trabalho de parto, ela chamou
a parteira, que chegou com uma assistente, e também uma
índia puro-sangue. As três mulheres entraram no quarto e
fecharam a porta.
Jared fez uma pausa longa o bastante para adicionar outra
dose de uísque no copo, outra pedra de gelo.
— O trabalho de parto durou horas. De vez em quando me
deixavam entrar e sentar com Netsuya enquanto a parteira
fazia chá de ervas e a assistente enchia o quarto com fumaça
sagrada e recitava orações nativas. Quando a criança nasceu,
fui impedido de entrar porque minha presença era tabu.
Então esperei do lado de fora da porta e fiquei escutando.
Netsuya gritou, e depois ficou em silêncio. Continuei
escutando, esperando pelo choro da criança. Quando não
ouvi nada, entrei.
O gelo chocalhou em seu copo. A chuva intensificou no
telhado.
— Havia... — disse ele, apertando o copo de cristal e olhando
dentro dele, como um homem prestes a cair. Sua voz ficou
tensa. — Havia muito sangue. E a parteira... nunca vou
esquecer a expressão no rosto dela. Ela estava apavorada.
Enrolei Netsuya em cobertores e a levei para o hospital. Nem
sei como dirigi. Só sei que fiquei com a mão na buzina e
passei sinais vermelhos. Os médicos fizeram o impossível
para salvar a vida de minha esposa e do meu filho, mas já era
muito tarde.
O silêncio pairou atrás de suas palavras enquanto Érica
permaneceu imóvel.
— Eu sinto muito — disse ela por fim.
Uma veia saltou na testa de Jared. Ele engasgou nas palavras.
— Não há um só dia em que eu não pense sobre meu filho e
imagine como ele estaria agora, com três anos. Não posso
perdoar Netsuya pelo que ela fez. Não posso perdoar a mim
mesmo.
— Mas você não teve culpa, não foi culpa de ninguém. Essas
coisas acontecem.
— Essas coisas não acontecem — disse ele, olhando
furiosamente para ela. — Podia ser evitado. Foi o que me
disse o médico depois, quando me perguntou se Netsuya
tinha tomado remédios durante a gravidez. Eu disse a ele que
ela não tomava sequer uma aspirina. Ela não permitia que
fumassem perto dela. Netsuya era tão preocupada com a
saúde que só bebia chás de ervas e suplementos naturais.
Então o médico quis saber sobre os suplementos... Lembro-
me que Netsuya visitava regularmente a parteira para pegar
um composto de ginkgo biloba, alho e gengibre, que a
parteira prescrevera para prevenir coágulos sangüíneos. O
negócio é que essas ervas também prolongam o
sangramento. O médico disse que foi isso o que
provavelmente causou a hemorragia.
Jared ficou sombrio, olhos melancólicos sobre Érica.
— Ele disse que as pessoas pensam que porque estão usando
ervas naturais estão fazendo algo saudável, quando na
verdade podem estar fazendo algo letal para si mesmas. Ele
disse que é um problema crescente à medida que mais e mais
pessoas estão usando suplementos naturais, e que agora virou
rotina para os cirurgiões perguntarem a seus pacientes no
pré-operatório se estão fazendo uso de tais suplementos,
porque certas ervas causam problemas de sangramento, e
que se Netsuya tivesse visitado um médico licenciado, ela
teria sido avisada sobre isso. Ela e o bebê não teriam...
Ele afastou-se, e por um momento Érica pensou que ele fosse
espatifar o copo na parede. Agora ela entendia seus
encontros noturnos com espadas, seu compromisso
estabelecido com pontas e lâminas afiadas. É claro que ele
usaria almofadas e máscara e as espadas seria rombudas, mas
isso não importava. Era a própria luta que era necessária,
cortando o ar com sua fúria e sofrimento, matando os
demônios repetidamente numa dança interminável de culpa,
raiva e auto-recriminação.
— Meu Deus — disse ele, quebrando o silêncio. — Eu os
matei...
Ela deu um passo em direção a ele.
— Você não fez isso, Jared, não foi culpa sua.
Ele virou repentinamente para ela.
— Foi! Eu devia ter interferido. Ele era o meu filho também.
Ele merecia o melhor tratamento médico. Em vez disso, eu o
deixei à mercê da ignorância e da superstição.
Érica procurou as palavras, desesperada para ajudar.
— Netsuya era culta, ela conhecia os fatos, e aquele foi o que
ela escolheu. Você fez a coisa certa em respeitar sua vontade.
Jared olhou para a bebida, apertando o copo como se fosse
esmagá-lo.
— Eu tenho pesadelos — disse ele, calmamente. — Eu estou
correndo, tentando chegar a algum lugar, sempre chegando
tarde. Acordo suando frio.
Eles então ficaram em silêncio, ouvindo a chuva. As
emoções de Érica estavam em carne viva, como se tivessem
sido peladas e expostas aos elementos. Ela não sabia o que
sentir. Jared e sua dor, sua culpa. E seu próprio demônio,
acocorado maleficamente atrás de seu coração. Ela queria
confortar Jared, sofria por ele, queria sentir seus braços em
torno dela, a boca na sua.
— Nos últimos três anos, não falei disso com ninguém. Você
é a primeira.
Érica queria confortá-lo, mas não sabia como. Mães adotivas
lhe dizendo para parar de chorar porque ela não era a única
pessoa com problemas, professoras lhe dizendo que se ela
aprendesse a se defender as crianças não implicariam com
ela, assistentes sociais acusando-a de choramingar. Se Érica já
fora confortada alguma vez por alguém, não conseguia
lembrar-se. Talvez na comunidade hippie, quando sua mãe
ainda a amava. E preciso ensinar as crianças a confortar,
assim como são ensinadas a amar e odiar. É preciso deixá-las
entrar nos segredos dessas habilidades.
— Bom — disse Jared de repente, vendo o seu copo vazio. —
Eu já tomei muito o seu tempo. — E, com um suspiro
entrecortado: — Não era minha intenção lhe contar a
história de minha vida.
Érica percebeu horrorizada o que fizera. Ela hesitara. Esse era
o segredo para confortar alguém — você faz sem pensar,
você não fica lá parado pensando no que fazer a seguir. Ela
queria uma segunda chance. Ela queria fazer o relógio voltar
um simples minuto, para o momento em que ele dissera:
"Você é a primeira", e então ir até ele, lançar os braços em
torno dele, pressionar seu calor contra ele e deixá- lo saber
que alguém se preocupava.
Em vez disso, o momento se prolongou muito, tornando-se
frio e oco, Jared com as costas viradas para ela agora, a mão
estendida para a garrafa de uísque.
— É melhor eu ir — disse ela, deixando o copo. — Deixei
minha janela aberta.
Ela esperou.
E depois saiu para a noite chuvosa.

Quando Érica trocou a roupa de festa pelos confortáveis
moletons, a tempestade aumentara, criando um rugido
abafado dentro da tenda. Ela imaginou os pescadores de
grunions correndo para os seus carros — e os peixes
deslizando pelas ondas como sempre fizeram por milhares de
anos, sem ameaça de captura. Depois voltou a atenção para o
objeto em sua mesa de trabalho, a descoberta surpreendente
daquela tarde no Nível IV.
Na hora da descoberta, ela ficara extasiada, sua mente
centrada no objeto como um cachorro num osso. Mas agora
ela quase não sabia o que era a coisa e por que dera tanta
importância a ela. Só conseguia pensar em Jared.
Ela forçou a si mesma a dedicar-se ao trabalho. Era o que
tinha feito a vida toda, e foi isso o que a impediu de
mergulhar na própria dor. Não pense no demônio que a
assombra e ele não existirá. "Os cabelos são pretos e não há
sinal de fios brancos", ditou ela no gravador numa voz que
parecia um pouco alta, "entrelaçados numa trança de trinta e
cinco centímetros que parece ter sido cortada na nuca. Estou
surpresa por ser uma trança de mulher." Usando pinças ela
pegou o que parecia ser um floco cor-de-rosa. "A trança
parece ter sido enterrada com pétalas", disse ela, girando o
floco frágil na luz e examinando com lente de aumento.
"Buganvília", pronunciou ela depois de um momento.
Ela engoliu com dificuldade. O peso no peito ainda estava lá,
como uma criatura sinistra, de penas pretas, que estivera
esperando por ela nas sombras além do deque da piscina dos
Dimarco, esperando por um momento de fraqueza quando a
guarda de Érica estivesse baixa e ela pudesse entrar voando e
empoleirar-se dentro de seu peito.
"Como a buganvília só foi introduzida na Califórnia depois de
1769, e já que a trança foi encontrada num nível mais baixo
de onde encontramos a moeda americana de um centavo,
mas num nível mais alto de onde encontramos o crucifixo,
seja qual for o estranho ritual que aconteceu na caverna
envolvendo o corte da trança, isso aconteceu entre 1781 e
1814-" Ela fez uma pausa, seus olhos ficaram fora de foco,
suas mãos gelaram sobre o espécime, e ela pensou: Estamos
nos aproximando no tempo.
Ela pegou a trança com as duas mãos, sentiu o cabelo pesado
em seus dedos, cachos que uma vez coroaram a cabeça de
uma jovem, e imaginou por que um ato tão brutal fora
cometido — pois certamente cortar os cabelos de uma
mulher num século em que todas as mulheres usavam
cabelos compridos deve ter sido uma punição ou um ato de
disciplina ou humilhação. A vítima não era americana, Érica
sabia disso por certo. Não no nível onde a trança fora
encontrada. Então ela fora uma mulher espanhola que fora
arrastada para a caverna por irmãos moralmente ultrajados,
onde cortaram seus cabelos por manchar a honra da família.
Ou quem sabe foram as irmãs mexicanas de um jovem que
cometera suicídio quando ela desprezou seu amor. Ou fora
ela mártir num esquecido sacrifício indígena?
Érica fechou os olhos e sentiu as lágrimas descerem pelas
faces. Esse cabelo certa vez aquecera as costas de uma
mulher, balançara quando ela correra, voaram livres ao
vento; foram escovados, lavados, acariciados, talvez beijados.
E, finalmente, carinhosamente trançados com pétalas de
buganvília para ser cortados num ato selvagem.
Pressionando a trança contra o peito, pensou em Jared
levantando o cacho de sua nuca e o prendendo na fivela de
strass. Tamanho gesto de intimidade era poderoso nas
respostas que evocava. A dor de repente invadiu Érica como
uma onda de pesar, frio e resistente. Um soluço escapou de
seus lábios. O peso expandiu dentro do peito. Ela imaginou
Jared sozinho na ilha, correndo de seus resgatadores,
querendo ficar sozinho. E anteriormente, numa corrida
louca para o hospital, a culpa e o medo o apunhalando como
espadas. "Podia ser evitado..."
E de repente ela soube o que era, a coisa empoleirada atrás de
seu coração como um duende malévolo. Era a realidade. De
Jared. E dela própria. Agora ela sabia por que andava
pensando nele ultimamente. Era por causa da solidão dele.
Todos nós precisamos de alguém que cuide de nós, mas nem
todos têm a sorte de ter alguém. Eu. Jared. A Senhora na
caverna. Nós estamos sozinhos e vulneráveis àqueles que nos
atacariam.
Ela, de repente, queria proteger Jared das Ginnys Dimarco do
mundo, assim como estava protegendo a Senhora dos
vândalos. Mas não tinha idéia sequer de por onde começar.

Capítulo Dez

Luisa
1792 da era cristã

Elas iam fugir. Dona Luisa e sua filha, Angela.
Exceto que Angela não sabia disso. Nem o capitão Lorenzo,
marido de Luisa. Nem os padres nas missões, nem os outros
colonos que moravam dentro e em volta da vila de Los
Angeles. Luisa, sozinha, tramara o segredo e planejava
mantê-lo assim até que ela e Angela chegassem a Madri, na
Espanha. E lá ficariam de uma vez, para nunca mais voltar
para a Alta Califórnia e suas vidas de cativeiro.
Ocorreu a Luisa que as pessoas poderiam considerar pecado o
que estava planejando, porque estava abandonando o marido.
Mas não era verdade. Ela pretendia escrever para Lorenzo
assim que chegasse à Espanha e pedir a ele que se juntasse a
elas lá. Se ele se recusasse, então o pecado recairia sobre ele
por abandonar sua esposa e filha.
E, de qualquer forma, a Mãe Bendita, que sondava o coração
de todos, veria que Luisa estava fazendo a coisa certa. Isso
era tudo o que importava.
Ela estava em seu jardim colhendo ervas medicinais e, por
causa da viagem pelo mar, que seria longa e perigosa,
apanhava mais do que a quantidade habitual de ópio. O
remédio era para Angela.
A menina de seis anos sofria de fortes dores de cabeça e
desmaios desde o dia em que Lorenzo a trouxera, uma
criança abandonada nas montanhas. O ópio não era tanto
para aliviar a dor durante os ataques quanto para impedi-la de
falar. A primeira vez que Angela foi acometida, ela gritou de
repente, agarrou a cabeça, e desmaiou. Num delírio estranho
que alarmou seus pais, a menina gritara: "Eles estão pegando
fogo! Eles estão queimando!" E depois gritara histericamente.
Quando acordou mais tarde, Angela não lembrava do
incidente e Luisa não deu importância, achando que fosse
um pesadelo. Mas quando um incêndio irrompeu nas
montanhas Santa Mônica naquela noite e queimou por sete
dias infernais até ser extinto por uma tempestade de verão —
e mais tarde se soube que várias famílias indígenas haviam
perecido no inferno —, Luisa olhara para sua filha adotiva
alarmada. Como Angela estava usando roupas da Missão e
falava espanhol quando Lorenzo a encontrou, Luisa tinha
achado que ela fora batizada como cristã. Mas nem toda a
água benta do mundo, Luisa sabia, podia apagar a raça de uma
pessoa. Se a menina era índia, então não haveria acusações
de bruxaria, caso o dom da profecia dela fosse conhecido?
Embora as bruxas não fossem mais queimadas na Espanha,
quem sabe o que os padres da Missão, que tinham uma in-
clinação para punir severamente os índios, fariam? Então
Luisa começara a manter um suprimento de ópio à mão para
sedar a menina quando tivesse o ataque. Como
conseqüência, embora ainda houvesse as dores de cabeça,
felizmente não houve mais declarações proféticas.
Luisa fez uma pausa em seu jardim de brilhantes papoulas
cor-de-rosa e, apoiando a mão na parte inferior da coluna,
espreguiçou-se. A rigidez em suas juntas lembrou-lhe que
recentemente celebrara seus quarenta anos — seus dezenove
anos longe da Espanha. Luisa fora com sua família para a
Cidade do México em 1773, quando tinha vinte e um anos.
Seu pai fora nomeado professor de ciências na Universidade
do México, um cargo muito prestigiado, e como seu tio era
vice-rei da Nova Espanha, e outro tio, o alcaide de
Guadalajara, Luisa gozara a vida privilegiada da classe alta.
Menos de um ano depois ela conheceu o bonito e destemido
capitão Lorenzo, casou-se com ele e deu à luz a primeira
filha deles. Luisa achara que sua vida era perfeita.
E então eles deixaram a Nova Espanha indo para o norte em
busca de um sonho insano e enterraram a filha no caminho.
Foi então que Luisa começara a planejar sua fuga desta
colônia esquecida por Deus. Agora, onze anos depois, seu
sonho estava prestes a se tornar realidade.
Ela tivera de obter a permissão de Lorenzo para viajar, que
ele, a princípio, se recusara a dar. Quem dirigiria a casa
enquanto ela estivesse fora? Quem supervisionaria as
mulheres indígenas e asseguraria que ele e seus homens
fossem alimentados? Luisa dissera a Lorenzo que ele poderia
escolher entre as mulheres uma de confiança, insinuando até
que ele poderia trazer tal mulher para dentro de casa, porque
Luisa sabia que Lorenzo tinha amantes indígenas. Depois
Luisa procurara o apoio de padre Xavier, oferecendo-se para
trazer, quando voltasse, rosários e livros de orações, e
dizendo que ficaria feliz em levar objetos da missão para
serem benzidos pelo bispo em Compostella, onde os restos
de São Tiago foram enterrados. Mas foi quando ela prometeu
a Lorenzo que traria dinheiro de seu irmão e primos em
Madri para investir no rancho dele é que ele finalmente
concordou. Depois veio o problema de encontrar o capitão
de um navio que levasse como passageiras duas mulheres. O
mestre do navio Estrella só concordara quando soube do
preço que Luisa estava disposta a pagar. Então Luisa e sua
filha agora tinham permissão para viajar, pagaram suas
passagens e no dia seguinte estariam viajando no Estrella,
ancorado ao largo da península de Paios Verdes.
Quando Luisa virou para a fileira seguinte de papoulas, viu
Angela montada em seu árabe cinza-prateado, Siroco,
galopando pelos campos, seus cabelos negros balançando nas
costas. Usando uma saia com fendas dos lados para poder
montar como um homem, sem silhão, ela cavalgava com os
braços em volta do pescoço do garanhão, os cabelos negros e
esvoaçantes mesclando-se com a crina prateada. Angela e
Siroco eram inseparáveis. Todos os dias, ao amanhecer, antes
do chocolate da manhã, Angela selava o cavalo e cavalgava
em direção ao sol nascente. Galopavam juntos, cavalo e
menina, durante uma hora, antes de voltarem, ofegantes e
jubilosos, Siroco para a cocheira, Angela para o café da
manhã e lições com o professor particular. Quando
informada sobre a iminente viagem para a Espanha, Angela
perguntara se poderia levar Siroco com elas. Mas Luisa
explicara que a viagem seria desagradável e possivelmente
prejudicial para o cavalo, e assegurara que ele seria bem-
tratado enquanto estivessem fora. Penalizava Luisa saber que
sua filha nunca mais veria seu amado cavalo, mas o sacrifício
valia a liberdade das duas. Em Madri, deixaria a filha escolher
qualquer cavalo, esperando que com o tempo ela esqueceria
Siroco.
Luisa ficou olhando Angela finalmente levar o cavalo para o
complexo e desmontar, entregando-o a um cavalariço.
Enquanto Angela andava em direção à casa, alta e delgada,
com dignidade e graça, Luisa pensou em como ela era jovem
e bonita. Bem-educada também em leitura e escrita, em
história e até matemática elementar. Mas Angela era
inocente sobre as coisas do mundo. Talvez inocente demais,
pensava Luisa com preocupação. O poder dos padres da
Missão era forte na colônia, e sua máxima de que as mulheres
deviam ser submissas e confinadas em casa era seguida pela
maioria das famílias. Como resultado, Angela raramente se
aventurara além das terras de seu pai. Exceto em visitas à
Missão para ir à missa em dias santos e breves passeios pela
pequena vila de Angeles, Angela conhecia um mundo
restrito a quatro mil acres.
Luisa queria mais para sua filha. O Angeles Pueblo era
constituído de apenas trinta construções de adobe cercadas
por um muro. Angela nunca vira uma cidade, ou catedral e
palácios, universidades e hospitais, fontes e monumentos, ou
ruas estreitas cheias de gente, que se abriam de repente para
plazas ensolaradas. Há gente em toda parte, nos mercados e
nas estradas! Aqui, podia-se andar quilômetros sem
encontrar vivalma. Bom, índios perambulando, mas isso não
era a mesma coisa.
Luisa queria que Angela tivesse experiência, cultura, noção
de independência e livre-arbítrio, e poder por si mesma e
não através de um marido. Tal coisa não seria possível neste
lugar atrasado, na opinião de Luisa, os padres exerciam poder
demais.
Bastava ver o que acontecera com Eulalia Callis, esposa do
governador Fages, que acusara publicamente o marido de
infidelidade. Fages negou, e quando Callis persistiu na
acusação, surda à advertência dos padres, foi detida e
trancafiada num quarto sob vigilância na Missão de São
Carlos por meses. Enquanto esteve presa, o padre de Noriega
a condenou de seu púlpito e ameaçou repetidamente puni-la
com grilhões, chicotadas e excomunhão. Embora o resto dos
colonos denunciasse a mulher por escandalizar o bom nome
do marido, Luisa, em particular, achou que o pedido de
divórcio de Callis era uma estratégia de sobrevivência.
Grávida quatro vezes em seis anos, primeiro ela deu à luz um
menino, sofreu um aborto no ano seguinte, fez a viagem
perigosa para a Califórnia enquanto estava grávida
novamente, ficou gravemente doente depois do parto da
filha, e enterrou um bebê de apenas oito dias um ano depois.
Luisa sabia o que causara a ação drástica da mulher: Eulalia
Callis esperava ter permissão para voltar para o México e
assim assegurar a própria sobrevivência e a de seus dois filhos
restantes.
Na Alta Califórnia uma mulher não tinha soberania sobre si
mesma. As leis civis e da Igreja davam aos membros
masculinos da família autoridade sobre a sexualidade da
mulher. Apolinaria dei Carmen, uma viúva de um rancho
vizinho, apanhara do filho quase até a morte quando ele a
descobriu na cama com um de seus índios caballeros.
Apolinaria foi banida pelos colonos e excomungada pela
Igreja; seu filho herdou o rancho quando ela morreu um ano
depois.
E depois houve a triste história de Maria Teresa dei Vaca,
noiva no dia de seu nascimento com um homem chamado
Dominguez, um soldado que servia na Missão de San Luis.
No dia que completou quatorze anos Maria foi forçada a se
casar com Dominguez, então um homem de quase cinqüenta
anos e quase sem dentes! Foi o boato do Pueblo como a
pobre garota fugiu três vezes até que, espancada até a
submissão, resignou-se ao seu destino e agora estava grávida
do quarto filho.
Luisa jurara que esses destinos não eram para Angela. A Mãe
Bendita não queria que suas filhas fossem vendidas e
possuídas como gado.
Angela entrou no jardim, os cabelos negros brilhantes
descendo sobre os ombros e costas, os olhos vivos de
excitamento por acabar de cavalgar com Siroco.
— Bom dia,mamá! Olha!
Ela estava carregando um cesto com os primeiros jalapas que
estava cultivando. Tubérculos com a textura de batatas e o
sabor doce de castanhas, o legume grande em forma de nabo
era produzido nos caules enterrados de trepadeiras com
lindas flores brancas ou púrpura. Angela plantara as sementes
seis meses antes e estava visivelmente orgulhosa de sua
primeira colheita. Ao pegar o cesto, Luisa decidiu que
serviria o jalapa cru com limão, pimentão em pó e sal — um
lanche popular na Cidade do México.
— E eu encontrei o lugar perfeito para plantar o meu pomar,
mamá. Espero que papá me deixe fazê-lo. São só alguns
acres, lá embaixo nos pântanos.
Luisa não tinha idéia de onde vinha essa noção de Angela,
plantar árvores frutíferas no rancho. Os padres da Missão
estavam introduzindo laranjas na Califórnia, e Angela parecia
tomada pela idéia de cobrir o Rancho Paloma com pomares.
Havia muitas coisas, coisas misteriosas, sobre sua filha que ela
não entendia. Como a inquietação inexplicável que tomava
conta dela todo outono. Angela cavalgava por horas com
Siroco, sem falar com ninguém, apenas galopando como se
quisesse voar das extremidades da terra. E então de repente
ela ficava completamente parada e olhando na direção das
montanhas. Essas reações estranhas sempre coincidiam com
a época da colheita anual de glandes dos índios. Eles seriam
vistos durante dias caminhando ao longo da Estrada Velha,
vindo de aldeias distantes, carregando bebês e todos os seus
bens, uma marcha estranha e selvagem.
— A propósito, mamá, eu encontrei padre Ignacio. Ele
perguntou se poderíamos trazer papel para ele. E cadernos
para escrever.
Todos estavam pedindo alguma coisa de casa. Neste remoto
posto fronteiriço, onde às vezes demorava um ano para
receber suprimentos, as pessoas tentavam fazer itens
necessários como velas, sapatos, cobertores, vinho. Mas não
podiam fazer papel. Ou seda. Ou objetos de prata e ouro.
Alguns dos colonos entregaram cartas a Luisa para levar para
casa e presentes para as famílias na Espanha.
Angela aceitou agradecida a xícara de chocolate quente de
uma criada índia e, antes de tomar um gole, disse:
— Ah, mamá, um bando de gaivotas apareceu no céu vindo
do nada! Elas circularam no alto, fazendo muito barulho. E
depois que eu as olhei por um momento, todas se viraram
em conjunto e voaram para o oceano rumo a oeste. Isso é
um presságio de que nossa viagem será segura, estou certa
disso, mamá!
Luisa sentiu uma pontada de medo. Se Lorenzo descobrisse
que ela estava planejando nunca mais voltar, ele a trancaria
pelo resto da vida. Ela rezou para que as gaivotas de Angela
fossem mesmo um bom presságio, embora ela não confiasse
somente em sinais e presságios, mas também em preces por
intercessão dos santos e da Mãe Bendita.
Quando Angela entrou casa adentro para terminar o café,
Luisa retornou ao seu trabalho, sentindo o calor benevolente
do sol da Califórnia em suas costas. Estas eram papoulas
especiais, cultivadas de sementes importadas, já que as
papoulas nativas da Alta Califórnia não produziam ópio. Luisa
as cultivava com muito cuidado, sempre plantando depois do
equinócio do outono, alimentando as plantas com bastante
água e estrume, beliscando os primeiros caules das flores para
que muitos botões florescessem em vez de apenas um. E
depois ela as inspecionava todos os dias, pois era vital
começar a extrair o látex da cápsula de sementes exatamente
no momento em que a faixa cinza onde as pétalas estiveram
ficassem escuras. Luisa sempre começava a extrair o látex de
manhã, cortando as cápsulas com uma faca afiada e depois
voltando no dia seguinte para fazer a raspagem do limo
branco e deixá-lo no sol para secar.
O segredo para uma colheita abundante de ópio estava na
incisão precisa da cápsula: corte muito profundamente, e a
planta morre rapidamente, mas corte apenas o suficiente, e a
planta pode continuar a produzir látex por mais dois meses.
Dona Luisa do Rancho de Paloma era conhecida por ter o
toque mais delicado em Los Angeles Pueblo. Seu láudano —
uma tintura de álcool e ópio — vivia em constante demanda.
Enquanto Luisa recolhia a substância branca e grudenta das
cápsulas de semente e depositava num pequeno saco de
couro, ela pensou na casa dos pais em Madri: se uma pessoa
precisasse de algo para dor, poderia simplesmente ir ao
boticário do bairro. Mas não havia boticários neste distante
posto fronteiriço do império espanhol. Suplementos
medicinais vieram uma vez do México pela rota de terra de
Sonoran, mas a revolta sangrenta dos índios yumas no rio
Colorado, há onze anos, fechara a rota. E já que não era
permitido aos navios estrangeiros chegar perto da costa da
Califórnia, os colonos eram forçados a contar com
suprimentos ocasionais e não confiáveis vindos do México.
Assim eles voltaram para seus jardins em busca de remédios.
Alguns visitavam secretamente os xamãs e curandeiros
indígenas, mas muitos iam à casa de Doria Luisa, onde seu
solário estava sempre bem suprido com ervas frescas,
unguentos, pomadas e tinturas.
Quando ela se aproximou do fim de suas tarefas da manhã, já
tendo colhido também caules de acariçoba para fazer
unguento para machucados e folhas de meimendro para
fazer cataplasma para reumatismo, Luisa viu homens
chegando a cavalo, vindo da direção da Estrada Velha. Uma
nuvem atravessou o sol, deixando o jardim brevemente nas
sombras e enviando um arrepio de medo pela coluna de
Luisa. Ela sabia por que os homens vieram.
Lorenzo trabalhava muito pouco no rancho. A maior parte
do trabalho nos campos e com o rebanho era feita pelos
índios treinados para serem vaqueros, deixando Lorenzo e os
amigos livres para passar seus dias jogando, caçando e se
espreguiçando ao sol. Mas os homens que estavam chegando
agora não tinham vindo para rolar dados ou caçar veados,
mas para barganhar com Lorenzo a posse da filha.
Angela era um prêmio para ser disputado.
À medida que as notícias de Los Angeles se espalharam pelo
sul em direção às províncias do baixo México, mais colonos
estavam vindo para o Pueblo em busca de uma vida melhor.
O problema, no entanto, era que a maioria dos recém-
chegados não eram casados. O governador, ansioso por
domesticar sua fronteira selvagem, providenciando esposas
para os homens, enviara vários pedidos desesperados ao vice-
rei do México para mandar doncellas — "virgens saudáveis
— para a Califórnia, mas sem sucesso. Depois ele
simplesmente pediu que mandasse "cem mulheres". Quando
isso não surtiu efeito, o governador resolveu aceitar crianças
enjeitadas — meninas órfãs que eram arrebanhadas no
México e trazidas para a Califórnia, onde eram distribuídas
entre as famílias.
Estes homens de agora, a quem Lorenzo recebia com gritos
alegres e copos de vinho, queriam Angela não apenas porque
ela era disponível e bonita, mas também porque era hispana.
Casando-se com uma mulher de puro sangue espanhol, um
homem de sangue mestiço podia requerer um decreto oficial
de legitimidad y limpieza de sangre — "legitimidade e pureza
de sangue" — para seus filhos, um decreto certificando que a
linhagem não estava contaminada por judeus, africanos ou
qualquer outro sangue não-cristão, assegurando-lhes assim
proeminência e alta posição social na colônia.
Ninguém sabia a verdade: que Angela não era hispana, mas
índia. O "presente de Deus" de Luisa.
Luisa lembrava do dia e da hora em que Lorenzo trouxe o
anjo para casa. Os joelhos de Luisa estavam em carne viva de
ajoelhar para rezar para a Virgem Bendita. Sua filha,
enterrada no deserto de Sonoran, tinha morrido, mas seu
amor não. Ela precisava de um escape para seu amor
materno. Luisa não tivera sequer o conforto de uma
sepultura para visitar, para tomar conta, limpar o mato, alisar,
nenhuma laje tumular sobre a qual depositar flores, nenhum
monte de terra gramado para onde ir quando a alma
precisasse de conforto. Lorenzo, sendo homem e tendo suas
obrigações, preencheu seu tempo com o trabalho. Luisa só
tinha os vestidinhos de Selena que nunca mais se- riam
usados. Enquanto ela fazia sua promessa à Mãe Bendita —
ajude-me a ter outro filho e eu devotarei minha vida a fazer
o bem em vosso nome — lá estava Lorenzo com uma
criança nos braços. A menina estava chorando: "Mamã!
Mamã!" E logo que pôs os braços em torno da criança, Luisa
sentiu o amor represado fluir de seu coração como um riacho
purificador. Ela sabia que esta era a resposta de Maria Bendita
a suas preces, e enquanto ela sempre lamentaria a pequenina
enterrada no deserto, Luisa amaria este anjo de todo o
coração e devotaria sua vida a fazer o bem como prometera.
Ninguém questionara o súbito aparecimento de uma criança
na pequena casa de adobe do capitão Lorenzo. Todos na
colônia estavam muito ocupados tentando sobreviver para se
preocupar com os assuntos particulares dos outros. Se as
pessoas faziam comentários sobre a cor amorenada de
Angela — Luisa sendo branca —, Luisa simplesmente dizia
que a menina puxara à mãe de Lorenzo, que era olivácea.
Luisa não considerava essa mentira um pecado, porque acre-
ditava que isso tinha uma ponta de verdade. Luisa
secretamente acreditava que Angela não era uma índia de
raça pura. Enquanto a menina tinha uma semelhança com os
índios que viviam na Missão, sua pele era mais clara e o rosto
não era tão redondo. Luisa imaginava se a menina não era
filha de algum soldado espanhol.
As vozes de Lorenzo e dos visitantes eram carregadas pelo
vento e davam voltas pelo jardim onde Luisa trabalhava. Ela
desprezava esses homens. Bastardos arrogantes, e no entanto
nem uma gota de sangue racial puro corria em suas veias.
Luisa era uma dama espanhola bem-nascida que fora criada
num país onde as linhas das classes sociais eram bem
definidas: havia a classe dos nobres, dos mercadores
abastados e dos camponeses. Raramente elas se misturavam.
A linhagem era tudo. Mesmo na Nova Espanha, onde os
espanhóis governavam por meros duzentos anos desde a
conquista da população nativa, fronteiras raciais restritas
eram mantidas. A nova aristocracia no México eram os
peninsulares — brancos nascidos na Espanha —, o que
causou ressentimento entre os brancos nascidos no México
— os criollos. Só os peninsulares podiam ser chamados de
Don e Dona, e eles não se casavam fora de suas classes.
Depois vinham os mestizos, aqueles de descendência
espanhola e nativa — uma classe grande e amorfa de pessoas
que eram lojistas, artesãos, serviçais. Abrangendo a camada
social mais baixa estavam os indígenas — os índios nativos
— usados principalmente para a mão-de-obra. As regras de
raça e classe eram tão rigorosas que um indígena pego
usando roupas européias era punido com chicotadas. Luisa,
sendo uma peninsulara, ficara muito confortável com a
estrutura de classe mexicana.
Mas na Alta Califórnia não havia linhas sociais claramente
definidas. Quase todos vinham de alguma mistura racial, com
muito poucos europeus brancos. Era difícil saber a posição
social de alguém. Embora Doria Luisa não tivesse dúvida
sobre o lugar dela e de Lorenzo nessa sociedade fronteiriça,
havia rancheiros ricos, mestiços de índio e espanhol que
foram camponeses no México! Era como uma sopa onde
todos os sangues estavam sendo misturados. Isso incomodava
seu senso de classe. Lorenzo, como um patrón com
quinhentas cabeças de gado, membro da aristocracia
espanhola e oficial militar reformado, era tratado com
respeito. Mas, na insanidade da mente fronteiriça, o mesmo
respeito era dado a Antonio Castillo, um homem de sangue
mexicano e africano, casado com uma índia local, só por ele
ser o ferreiro do Pueblo! Aqui a ocupação de uma pessoa era
mais importante do que seus ancestrais, o que para Doria
Luisa era um pensamento retrógrado e prejudicial para uma
jovem sociedade.
Sentindo seu medo ferroá-la novamente ao ver os visitantes
de Lorenzo — faltavam menos de vinte horas para sua fuga
da Califórnia —, Luisa deixou o jardim e foi para o frescor do
solário, onde mantinha seu vasto estoque de ervas e
remédios.
Sua casa não era tão grande como Lorenzo prometera há
uma década, mas o suficiente para refletir a posição mais
elevada deles. Feita de adobe com teto de colmo, a estrutura
consistia de quatro dormitórios, uma sala de jantar, um salão
para entreter os visitantes e uma grande cozinha que
alimentava não só o capitão, sua esposa e filha, mas também
as índias que lavavam, costuravam, cozinhavam e faziam
velas, e seus maridos, os vaqueros e caballeros.
Os homens e suas promessas não cumpridas, pensou Luisa,
desdenhosa, enquanto escolhia folhas dos galhos e as
separava num cesto. Não só Lorenzo não lhe dera a casa
grande que prometera, como ainda o sofrido povoado não
estava de acordo com a visão original do governador Neve.
Aqui temos a oportunidade, declarara ele na cerimônia de
dedicação há onze anos, de projetar uma cidade como ne-
nhuma outra na Europa, pois será uma cidade planejada antes
mesmo que o primeiro habitante estabeleça residência. Ele
apresentara uma planta da cidade, mostrando o desenho da
plaza, campos, pastagens e terras nobres. Não haveria
crescimento desordenado em Los Angeles Pueblo,
prometera Neve. E no entanto os recém-chegados já estavam
construindo onde queriam! Luisa podia ver como essa cidade
primitiva seria esparramada um dia.
Enquanto punha o ópio para secar — mais tarde ele seria
enrolado, formando uma bola pegajosa, e guardado num
estojo de couro —, Luisa examinou a consciência mais uma
vez e não viu razão para se sentir culpada por fugir. Ela não
cumprira a promessa à Virgem bendita?
Luisa tinha orgulho do número de índias que convertera ao
cristianismo. Elas iam à capela todos os domingos, vestiam-se
modestamente, e quando uma delas queria se casar exigia-se
do futuro marido que se convertesse. Como era uma senhora
justa e generosa, a maioria de suas serviçais era leal. Muitas
até a imitavam. Doria Luisa usava seus longos cabelos presos
num coque, coberto por uma pequena mantilha de renda
preta, espanhola, que só retirava para dormir. E assim suas
empregadas cobriam seus cabelos com lenços. Elas recitavam
o terço e nomeavam as filhas Maria e Luisa. Apenas
raramente uma fugia, voltando para a aldeia indígena e vida
antiga. Mais e mais acampamentos brotavam nos ranchos,
construídos por índios que deixaram a vida nativa para
trabalhar para os colonos, tornando-se cavaleiros peritos,
vaqueiros, ourives de prata e carpinteiros. Como havia carne
em toda refeição, eles não viam necessidade de fazer a
jornada anual às montanhas para pegar glandes. Uns poucos
ainda iam, para ouvir as histórias e arranjar casamentos, mas
as reuniões na floresta estavam diminuindo a cada ano. O
festival de cinco dias que por gerações acontecia em
homenagem de Chinigchinich, o Criador, estava sendo
substituído pelos feriados de Natal e a Festa de Santiago,
santo padroeiro da Espanha.
O solário estava cheio de cestos feitos pelas índias de Luisa,
alguns eram primorosos e supostamente os padrões
contavam histórias. As mulheres que teciam os cestos
contaram alegremente esses mitos para Luisa — explicando
para a senora como o mundo foi criado e como o
Antepassado Tartaruga causou terremotos. A pequena
Angela contou as mesmas histórias no início, sobre coiotes,
tartarugas e uma Primeira Mãe que veio do leste para
começar uma nova tribo, mas Dona Luisa substituíra esses
contos pagãos na mente de Angela com histórias cristãs e
contos de fadas espanhóis: a história das duas irmãs, Elena e
Rosa, que viviam num reino de safiras e como foram
transformadas pela avó; o conto da felicidade, o conto do
jovem Gonzalito, que, com a ajuda de animais mágicos,
salvou a princesa e seu reino de um anão malvado; e a
história de aventura sobre quatro príncipes em busca da mão
da princesa Aurora. Histórias com as quais Luisa crescera e
que agora eram de Angela.
Ela olhou pela janela aberta e viu que Lorenzo e seus
convidados ainda estavam bebendo à sombra do
caramanchão. Um homem, um palmo mais alto que o resto,
chamou sua atenção: Juan Navarro. Luisa não gostava dele.
Havia algo estranho em seus olhos. Não tinham calor,
fazendo Luisa pensar nos olhos de uma fria criatura do mar.
E o sorriso não era tão natural como o retroceder dos lábios
para expor os dentes. Rumores diziam que Navarro estava na
Alta Califórnia fugindo da Inquisição, sob a acusação de ler
livros proibidos. Ele ganhou a vida com os mortos. Navarro
pilhara as tumbas dos astecas e encontrou fortunas em ouro,
prata, turquesa e jade. Dado que eram tumbas pagãs que ele
roubara, nenhuma profanação acontecera. No entanto,
parecia vampirismo para Luisa tirar o anel de um cadáver e
usá-lo na própria mão. Ela sabia qual era a ambição dele na
Califórnia: Navarro era um homem de origem humilde que
queria se casar dentro da aristocracia.
O medo a apunhalou novamente, e ela rapidamente o
suprimiu. Deixe Navarro pedir a mão de Angela. Luisa não
estava preocupada. Ela concordaria prontamente com o
noivado — com a condição de que o casamento se realizasse
depois que retornassem da Espanha.
Deixando o solário, Luisa entrou em casa, onde as mulheres
estavam lustrando os móveis e esfregando o chão, e foi para
os seus aposentos particulares, onde os baús estavam prontos
para a viagem. Este era o santuário privado de Luisa, onde
Lorenzo nunca pisara desde que a casa fora construída. Ele
ficava no próprio quarto à noite, vendo a esposa e a filha
apenas no jantar. Luisa sabia que ele não sentiria a falta dela
por muito tempo. Talvez no início ele ficasse ultrajado
quando percebesse que ela não voltava nunca, mas então
seus amigos viriam para jogar dados, o vinho fluiria, e as duas
mulheres que um dia ocuparam espaço em sua casa seriam
esquecidas. Lorenzo não ficaria sem consolo. Luisa não
apenas sabia de suas amantes índias, mas também de seus
bastardos indígenas.
Sentada em sua penteadeira, Luisa abriu a tampa de uma
pequena caixa de madeira e levantou o forro de veludo. Sob
ele estava uma chave de bronze. Enquanto segurava a chave
na palma da mão, passando os dedos em volta dela, Luisa
sentiu uma nova esperança fluir do metal para sua pele. A
chave era de um pequeno porta-jóias que estava aos cuidados
de padre Xavier.
O porta-jóias secreto começara por acaso, há dez anos,
quando Antonio Castillo, o ferreiro, cavalgara
freneticamente de Pueblo para dizer a Luisa que seu filho
estava doente com febre e que precisavam da ajuda da
senora. Com ervas especiais Luisa trouxera a criança das
portas da morte para a vida e a Senora Castillo ficara tão feliz
que insistira em lhe dar um anel de ouro como prova da
gratidão da família. Luisa tentara recusar, mas o anel lhe foi
entregue, e sua aceitação fez da Senora Castillo uma pessoa
mais feliz. E então quando Luisa ajudara uma jovem esposa
num parto arriscado, com poções que aprendera de uma
velha índia, o marido agradecido oferecera humildemente a
Luisa um broche de prata como presente. Depois de algum
tempo, Luisa parou de recusar. Ela não via por que uma
pessoa podia fazer o bem em nome da Mãe Bendita e não
receber pagamento por isso. Os padres da Missão não
passavam o prato da coleta durante a missa?
Lorenzo não sabia do esconderijo secreto de Luisa. Quando
ela juntou os primeiros itens valiosos, receara que ele os
descobrisse e os perdesse no jogo. Com os colonos e
soldados Lorenzo jogava cartas e dados, e com os índios a
aposta poderia ser no número de dedos que um jogador
estava ocultando atrás das costas. Lorenzo até ficaria com os
colegas rancheiros embaixo de uma árvore, olhando para El
Caminho Viejo, e eles apostariam na cor do próximo cavalo
que viria trotando. Então Luisa levara seu pequeno tesouro
para o padre Xavier na Missão e o deixara a seus cuidados.
Durante os meses e anos, sempre que Lorenzo estava fora,
jogando ou caçando, Luisa visitava a Missão e depositava a
aquisição mais recente com padre Xavier, como se ele fosse
um banqueiro. Havia moedas no porta-jóias também: oito
moedas de prata de pesos mexicanos, reales espanhóis e
alguns dobrões de ouro. A redenção de uma dama.
Tudo isso seria de sua filha. Angela devia ser independente
mesmo que casasse. Se Luisa tivesse o dinheiro quando a
filha morreu no deserto de Sonoran, ela teria dado meia-
volta e voltado para o México. Mas ela dependia de Lorenzo.
Isso não devia acontecer com Angela. Luisa daria todo o
dinheiro para ela em Madri, onde planejava providenciar
uma documentação legal onde constasse que o marido de
Angela, fosse quem fosse, não poderia tocar no dinheiro.
Quando ouviu uma batida na porta, ela rapidamente guardou
a chave no esconderijo, a caixa na gaveta, depois mandou a
pessoa entrar.
Para sua surpresa, era Lorenzo. E podia ver, mesmo ele
estando do outro lado do quarto, que andara bebendo. Ela
cruzou as mãos com força sobre o colo. Com menos de um
dia para a viagem, Luisa não se atrevia a pôr em risco seus
planos agora. Mas quando viu os olhos dele sobre os baús
cheios de roupas e presentes para a família, seu coração
pulou. Ele mudara de idéia!
Luisa manteve as costas eretas. Não importava se ele tivesse
descoberto seu plano de ficar na Espanha. Lorenzo nunca
acordava antes do meio-dia. Ela e Angela sairiam antes do
amanhecer e arranjariam um jeito de chegar à costa...
— Talvez as coisas não tenham dado certo para nós — disse
ele com voz densa, como se não estivesse acostumado a falar
com ela. — Certamente não do jeito de marido e mulher,
mas eu amei você, Luisa. Dios mio, eu amei você.
Embora seus cabelos estivessem grisalhos e a pele castigada
pelo sol, Lorenzo ainda era um homem bonito com postura
militar. Mas ele não a sensibilizava como outrora, no México,
quando eram jovens e apaixonados. No dia em que
enterraram a filha, Luisa fechara seu corpo para ele. E
quando, há onze anos, ela rezara pedindo à Virgem outro
filho, ela rezara por um milagre, pois mesmo então, mesmo
só para ter outro filho, Luisa não permitiu Lorenzo em sua
cama. Em vez disso, a Virgem mandara uma criança crescida,
poupando-a da indignidade de sofrer o abraço íntimo de um
homem e das dores do parto.
Ela permaneceu em silêncio. Ele estava falando como um
homem prestes a fazer uma confissão. Luisa preparou-se para
isso.
— Você não pode ir para a Espanha.
Ela permaneceu calma.
— O Estrella não está zarpando?
— O Estrella vai zarpar, você não vai.
— Eu não entendo.
— Não temos o dinheiro da passagem.
— Mas nós já pagamos ao capitão Rodriguez.
— Eu peguei o dinheiro de volta.
Ela olhou pestanejando para ele.
— Você pegou o dinheiro de volta?
— Eu devia o dinheiro a outro homem. Bem como muito
mais. — Lorenzo moveu-se em desconforto, sentindo-se
fora de lugar neste quarto cheio de flores, tapetes coloridos e
pequenos retratos de santos. — Eu tive uma maré de má
sorte. Dívidas que tenho. E teve o navio onde investi pesado.
Carregado de peles, com destino à China para negociar
especiarias, mas ele afundou nas Filipinas.
Ele fez uma pausa, olhando para todos os lados, menos para a
mulher.
— Todo o nosso dinheiro se foi? — perguntou ela, tentando
manter a fúria afastada da voz. O tolo! Que direito tinha ele
de esbanjar nossa fortuna? Mas Luisa manteve a calma. Não
devia ficar zangada. Anime-o. Encoraje-o. Qualquer coisa,
até que ela e Angela pudessem chegar ao Estrella. — Então
devemos vender alguma coisa.
Ele abaixou a cabeça.
— Não temos nada para vender.
— Mas nós temos muita coisa, Lorenzo — disse ela
suavemente, abrindo os braços para abranger a bela mobília,
a roupa de cama, a prataria e a tapeçaria.
—- Mulher, você não é dona nem dos botões em seu
vestido.
Não havia rancor ou impaciência em sua voz. Ele estava
simplesmente expondo os fatos, como se estivesse
comentando sobre o tempo.
Ela olhou para os botões de pérola em seu corpete. E olhou
perplexa para ele.
— Como você pôde perder tudo?
— Eu perdi, e isso é tudo. Eu fiz o melhor que pude.
Ela viu derrota nos olhos dele, atordoamento e desilusão.
Onde estava seu bravo capitão militar que lhe prometera
tanto? Será que perdera seu orgulho no jogo também?
— Nós perdemos... até o rancho? — sussurrou ela.
— Essa é a melhor parte, Luisa! — disse ele, animando-se
agora. — Eu arranjei com um homem de posses para
eliminar minha dívida. Em troca, ele terá o título do rancho
com tudo o que há nele, mas nós podemos continuar a viver
aqui!
— Mas como? — perguntou ela, franzindo as sobrancelhas.
— Ele paga suas dívidas e você dá a ele nossa casa. Por que
ele permitiria que vivêssemos aqui?
— Porque... eu dei a ele Angela também. Como noiva.
Luisa ficou rígida como um tronco.
— Vocês duas me agradecerão mais tarde — acrescentou ele
rapidamente. -— Os tempos estão perigosos na Europa com a
febre da revolução queimando como uma moita cerrada.
Camponeses decepando cabeças de reis. E melhor você e a
menina ficarem aqui onde é seguro.
— Quem... — começou ela, mas já sabendo em seu coração e
com um medo terrível o nome do homem, pois só havia um
homem em Angeles Pueblo que tinha tanto dinheiro. —
Quem vai se casar com minha filha?
— Navarro.
Ela fechou os olhos e fez o sinal-da-cruz.
— Santa Maria — murmurou ela. — O homem que roubou os
mortos.
— Sinto muito, mas é assim que deve ser.
Ela pensou sobre isso, depois lentamente concordou.
— Que seja assim. Angela se casará com Navarro. Depois que
voltarmos da Espanha.
— Mas eu já expliquei que vocês não podem ir. Não temos o
dinheiro da passagem.
— Eu tenho o meu próprio dinheiro — disse ela, preparada
para o seu olhar de surpresa, sentindo também um momento
de triunfo. Mas então o momento se prolongou, e havia
qualquer coisa nos olhos de Lorenzo, e de repente um
choque de pânico a percorreu. — O que foi? — perguntou
ela.
Ele emitiu um suspiro entrecortado. Lorenzo de repente
sentiu cada um dos dias de seus cinqüenta anos.
— Esse dinheiro também se foi.
Ela beliscou o queixo.
— Você não sabe de que dinheiro eu estou falando.
— Por Deus, eu sei — disse ele, um pouco de seu orgulho
retornando, um leve rubor de indignação nas faces. — No
dia em que você procurou padre Xavier para envolvê-lo em
seu plano secreto ele me procurou e me contou tudo. Eu sei
disso há onze anos.
Ela olhou para ele em estado de choque. O porta-jóias!
— Ele não tinha o direito de lhe contar!
— Ele tinha todo o direito! — retrucou ele. — Você é minha
esposa, por Deus, e tudo o que você possui pertence a mim.
Todo o dinheiro se foi — acrescentou ele mais calmamente,
de repente desconfortável sob o olhar dela. — Eu peguei o
seu ouro há muito tempo, mulher, e isso é tudo. Não
devemos mais falar sobre isso.
Luisa levantou-se de súbito.
— Eu não vou deixar você ficar com Angela!
— Mulher, você esqueceu? — disse ele, baixando a cabeça.
— Angela é minha! Eu a encontrei! Portanto, eu posso fazer
dela o que quiser!
Enquanto ele saía, batendo a porta atrás de si, a mente de
Luisa bramia em pânico, tentando pensar em soluções. Ela e
Angela deviam escapar. Mas não tinham dinheiro! Nenhum
capitão de navio lhes acolheria. Se tentassem fugir para outra
cidade, elas seriam encontradas e trazidas de volta.
De repente ela estava pensando nos jalapas recém-colhidos
por Angela e em como suas sementes eram extremamente
venenosas. Seria simples. Macerar as sementes em água para
extrair a toxina e depois acrescentar ao vinho de Lorenzo à
noite. De manhã ela estaria livre.
Com a mesma rapidez, o pensamento nefasto desapareceu.
Ela nunca poderia matar Lorenzo.
Seus ombros caíram quando viu que estava completamente
impotente. E no instante seguinte percebeu o erro terrível
que cometera ao rejeitar Lorenzo anos atrás, punindo-o por
trazê-la para este lugar remoto. Ela viu os onze anos passados
num estalar de dedos e soube que se pudesse de alguma
forma voltar no tempo ela o perdoaria, ela o tomaria nos
braços e daria a ele mais filhos, fazendo dele um marido e pai
apaixonado que pensaria primeiro na família em vez de nos
preciosos jogos de azar e investimentos em navios que
afundam.
Mas Luisa sabia que não tinha volta. Não tinha escape. Não
tinha preces para a Virgem que fossem salvá-la agora. E não
tinha ninguém para culpar senão a si mesma.
Movendo-se com rigidez, Luisa mais uma vez tirou a
pequena caixa da gaveta, mas desta vez ela não estava
interessada no forro e na chave inútil escondida lá. Agora ela
levantou um objeto que colocara na caixa há onze anos.
O objeto estava no pescoço de Angela quando Lorenzo a
encontrou nas montanhas, uma pequena pedra preta envolta
na pele macia de veado. Luisa não conseguira jogar a pedra
fora. Talvez ela soubesse que um dia isso a lembraria da
verdade — que Angela não era sua filha, que pertencia a
outra mulher.
Todos esses anos Luisa conseguira de alguma forma afastar de
sua mente que Angela era uma índia da Missão. Mas essa
pedra a lembrava agora. E essa pedra devia ter tido algum
valor ou importância para a mãe colocá-la em volta do
pescoço da filha. Pela primeira vez, no ácido meio-dia dessa
terra que Luisa nunca chegara a amar ou sentir-se parte dela,
ela pensou sobre a mãe daquela criança. Por que estavam nas
montanhas? Por que a mãe nunca voltou à Missão para
procurar a filha? Teria morrido ou estaria de luto nestes onze
anos passados, como Luisa estivera pela filha enterrada numa
pequena cova no deserto?
Luisa tentou imaginar como era a mulher que dera à luz
Angela. Embora muitas mulheres índias trabalhassem no
Rancho Paloma, Luisa nunca olhou verdadeiramente para
elas. E quando cavalgava e às vezes encontrava uma pequena
aldeia de índios não batizados, andando nus e fumando seus
cachimbos peculiares, ela pensava que eram criaturas apenas
um degrau acima dos animais.
Mas animais não penduram talismãs protetores no pescoço
de suas filhas.
Bendita Mãe de Deus, implorava seu coração. Será que
cometi um erro pegando a filha de outra mulher? Lorenzo
trouxe a menina para mim quando eu estava em desespero
com o sofrimento, e meus joelhos estavam feridos por horas
de prece ajoelhada, e eu vi a criança como um presente Seu.
Mas era mesmo? Será que na verdade ela era um teste para
minhas forças e minha honestidade e eu falhei?
Deus me perdoe pelo que fiz! Eu abandonei meus votos de
casamento e afastei meu marido de mim. Eu roubei a filha de
outra mulher. Este é o meu castigo. Angela deve se casar
com Navarro e eu jamais verei a Espanha novamente.

O capitão Lorenzo galopava descendo El Camino Viejo,
ansioso para colocar distância entre si e a expressão nos olhos
de Luisa. Será que ela achava que foi muito fácil, transformar
uma terra abandonada em um rancho lucrativo? Foi muito
trabalho duro. Sem contar os verões ressequidos e as chuvas
que inundavam a bacia, e incêndios que ardiam fora de
controle, e doenças que infestavam o gado, e plantações que
morriam, e índios selvagens para confrontar! Primeiro havia
a reunião anual deles nos poços de alcatrão que Lorenzo teve
de confrontar. Eles fizeram um enorme acampamento bem
onde Lorenzo plantara milho. A destruição de sua safra
naquele primeiro ano o deixara louco o suficiente para
querer acabar com todos eles. Ele colocava cercas e os índios
as destruíam. Eles vinham caminhando por milhas ao longo
da Estrada Velha, que passava ao longo da fronteira norte de
sua propriedade, construíam suas cabanas com os galhos
arrancados de suas árvores e serviam-se dos cordeiros e
cabras de seus rebanhos. Os índios não conseguiam entender
que a terra era dele agora e que os animais que matavam e
comiam não eram selvagens mas pertenciam a ele.
Depois havia os ataques de surpresa ao gado, não por comida
mas por rebelião. Os padres não estavam convertendo e
absorvendo as populações nativas rápido o bastante; ainda
havia focos de resistência entre os índios não-batizados,
líderes fortes que de vez em quando tentavam organizar uma
grande revolta contra os colonos. Uma delas fora até
comandada por uma mulher! Uma jovem, da tribo dos
gabrielinos, incitando os chefes e guerreiros de seis aldeias
para se rebelarem contra os soldados e os padres da Missão.
Então Lorenzo e outros rancheiros foram obrigados a
contratar guardas para patrulhar os limites de suas terras, e
ele estava cansado disso.
Luisa não via isso. Abrigada em sua casa, servida por criados,
vivendo uma vida sossegada. E escondendo dinheiro para
uma frívola viagem à Espanha! Ela não tinha o direito de
fazê-lo sentir-se culpado por tentar enriquecer. Era culpa
dele não ter sorte? Ela devia estar agradecida por Navarro
querer o rancho e a filha deles. Agora a vida poderia
continuar como sempre fora, eles não seriam reduzidos à
pobreza.
Mulheres!, pensou Lorenzo, exasperado. Mas depois,
enquanto diminuía a marcha do cavalo para um meio galope
e seguia em direção à vila de Los Angeles com sua população
de duzentas almas, enquanto sentia o calor do sol seco assar
seus ossos, e quando sentiu o cheiro da poeira da estrada e
ouviu o zumbir dos insetos, Lorenzo sentiu seu humor
começar a abrandar. Ele estava feliz por Navarro assumir o
controle do rancho. Todos os problemas ficariam nos om-
bros de Navarro e não nos seus.
Antecipando alegremente a tarde vindoura passada na boa
companhia de Francisco Reyes, o alcaide do Pueblo, jogando
dados e bebendo o fino vinho Madeira e deixando as
preocupações do rancho para Juan Navarro, o capitão
Lorenzo decidiu que, às vezes, falir poderia ser uma bênção.

— As obrigações do casamento não são agradáveis —
explicava Luisa solenemente para a filha. — Mas felizmente
são breves. Seu marido fará rapidamente o que interessa a ele
e depois pegará no sono.
Luisa achava que estava descrevendo todos os homens, sem
parar para pensar que era virgem quando se casou com
Lorenzo e nunca tivera intimidade com outro homem.
Elas estavam no quarto preparado para os recém-casados. Os
votos foram trocados diante do padre, o casamento
registrado no livro oficial, e, quando um tempo respeitável
passara, Luisa pegara a filha pela mão e a levara para o quarto.
Agora Luisa e uma criada índia estavam ajudando Angela a
retirar o vestido de noiva, enquanto lá fora, na noite quente
de verão, as festividades continuavam.
Angela não estava pensando no leito matrimonial, onde
pétalas de buganvília foram salpicadas sobre os travesseiros.
Sua mente estava cheia com as visões dos pomares de limão
e laranja que ela iria plantar.
— Eu falei das minhas idéias ao Sefior Navarro e ele gostou
delas. Ele acha que até um vinhedo seria bom.
No dia em que o Estrella zarpou sem suas duas passageiras,
três meses antes, Navarro começara a cortejar Angela sob o
olhar atento de uma dama de companhia. Ele vinha todos os
dias para sentar-se com ela debaixo do pé de estercúlia que
Lorenzo importara da Austrália a um custo enorme. Eles
falavam sobre o tempo, o último sermão de padre Xavier,
uma nova raça de cavalo, educadamente tratando um ao
outro por Sefior e Sefiorita. Às vezes ficavam em silêncio.
Depois de três meses, eles permaneciam estranhos corteses.
Luisa suspirou tristonha enquanto colocava as anáguas de
Angela de lado.
— Você tem sorte. Navarro é um homem muito generoso —
disse ela, tentando não pensar no par de brincos longos que
estava usando, um presente de Navarro para sua nova sogra.
Ele os tirara, dissera ele, da múmia de uma princesa asteca. O
homem trouxera fantasmas para dentro desta casa, pensou
Luisa. Pois certamente os espíritos dos índios mexicanos
viriam buscar o tesouro roubado deles.
Luisa deu uma olhada para a caixa de bronze com tachões
sobre a penteadeira. Ela continha o presente de casamento
de Navarro para Angela. Nenhuma das duas sabia o que tinha
na caixa que era para ser aberta mais tarde, quando os recém-
casados estivessem sozinhos.
E então um pequeno conforto ocorreu a Luisa: que Navarro
seria sempre fiel a Angela. Luisa sabia que ele não estava
interessado numa conquista mas numa aquisição, que ele não
era um homem de coração mas de mente, que nenhum fogo
ardia dentro dele mas em seu lugar uma mente fria estava
sempre calculando. Sua esposa forneceria alívio sexual, ele
não precisaria de nenhuma outra mulher.
Angela segurou as mãos da mãe e disse:
— Eu ficarei bem, mamá.
Luisa ficou surpresa com a ironia da filha consolando a mãe
quando deveria ser o contrário. Quando olhou nos olhos
calmos de Angela, ela ficou imaginando se a sabedoria que às
vezes achava ver neles não era simplesmente paciência.
— Talvez com o tempo, pouco tempo, você acabará amando
Navarro.
— Tudo o que importa, mamá, é que podemos ficar com o
rancho. Este é o meu lugar; é aqui onde desejo morrer.
Luisa ficou abalada. Que uma noiva de dezesseis anos falasse
em morte na noite de seu casamento! Mas talvez fosse o
sangue índio falando por ela.
Angela gostaria de poder convencer a mãe da profunda
alegria que sentia neste lugar, do quanto amava a Alta
Califórnia e o Rancho Paloma. Seu coração estava aqui. Às
vezes, quando saía cavalgando, ela amarrava Siroco numa
árvore e deitava na grama para olhar o céu. E quase podia
sentir a terra se elevando para abraçá-la. Era como se ela
fosse parte da terra, mesmo tendo nascido no México. Mas
ela não tinha lembranças do México ou da longa jornada que
fizera com os pais e os outros colonizadores para fundar o
novo povoado. Era quase como se sua vida tivesse começado
quando tinha cinco anos de idade; era até onde conseguia
lembrar.
Embora houvesse ocasiões — nos sonhos, ou às vezes
quando sentia um cheiro no ar, ou ouvia um som — que
imagens estranhas passavam por sua mente e por segundos
Angela tinha a sensação estranha de que era outra pessoa.
Como o casamento fora um grande acontecimento, mulheres
índias foram enviadas da Missão para ajudar. Uma delas
estava agora ajudando Angela a tirar as vestes de casamento e
as guardando cuidadosamente. Angela viu a cruz de estanho
numa tira pendurada no pescoço da mulher e de repente
estranhas imagens passaram por sua mente que quase
pareciam lembranças. Uma caverna. Uma mulher dizendo a
ela que lembrasse das histórias. Será que mamá a levara a
uma caverna quando era pequena? Mas por que motivo?
Quando ela tirara toda a roupa de casamento, que consistia
de um corpete justo de seda cor-de-rosa e uma saia longa de
seda branca, com pequeninas rosas bordadas, Angela vestiu
sua camisola longa de algodão e sentou-se para deixar a mãe
escovar seus cabelos longos e densos. Havia tristeza em cada
passada de escova, e nos olhos castanhos de Luisa quando
assumiram um olhar distante.
Finalmente Luisa e a mulher índia saíram, deixando Angela
para esperar a chegada de Navarro.
Ele bateu na porta, exatamente como sua mãe dissera que o
faria, mas em vez de apagar a luz e despir-se no escuro
Navarro a surpreendeu deixando a luz acesa enquanto tirava
botas e paletó. Enquanto Angela ficou sentada recatadamente
na beirada da cama, mãos cruzadas sobre o colo, sentindo o
coração começar a bater mais forte, Navarro serviu-se de um
conhaque e sentou-se confortavelmente numa cadeira perto
da lareira, onde as chamas davam à sua pele uma palidez
curiosa.
— O que você está fazendo aí? — disse ele, estendendo a
mão. — Venha até aqui e deixe-me vê-la.
Ele levara a caixa contendo o presente de casamento dela
para a pequena mesa entre as cadeiras, e quando Angela se
postou acanhada diante dele, ele levantou a tampa e Angela
viu o brilho cintilante de ouro. Depois ele olhou para ela,
fixando o olhar por um tímido momento, passando os olhos
lentamente pelo seu corpo, para cima e para baixo, parando
por um longo momento em seus cabelos.
—- Você pode tirar essa coisa — disse ele finalmente.
— Coisa, Sefior?
— Essa coisa que está usando -— disse ele. — Tire.
— Não estou entendendo —- disse ela, franzindo as
sombracelhas.
— Sua mãe não lhe falou nada? — disse ele, impaciente,
levantando-se da cadeira. — Nós estamos casados agora.
Marido e mulher. Não há necessidade de camisola.
Com as faces coradas, ela vírou-se de costas e começou a
desabotoar os botões perto da garganta.
— Não — disse ele. — Olhe para mim.
Ele voltou a se sentar na cadeira e provou o conhaque
enquanto os dedos de Angela tremiam ao desabotoar a
camisola. Depois ela descobriu cada um dos ombros,
hesitante, notando pela primeira vez uma estranha frieza em
seus olhos. Angela tirou os braços lentamente das mangas, o
coração batendo violentamente, e finalmente tirou a
camisola, trazendo-a para a frente do corpo.
Navarro levantou-se da cadeira e arrancou a camisola de suas
mãos.
— Você não vai precisar disso daqui por diante.
Apesar do calor da lareira, Angela tremia violentamente. Ela
cruzou os braços sobre os seios para se proteger, mas um
olhar incisivo de Navarro a fez descruzá-los. Os olhos dele a
devoraram impetuosamente, não lhe deixando um pingo de
modéstia. Finalmente, ele abriu o pequeno baú e tirou um
par de brincos de ouro mais magníficos do que os que dera a
Luisa.
— Quando visitei o Peru — disse ele enquanto prendia cada
um deles gentilmente em suas orelhas —, encontrei uma
antiga cidade nos Andes que ninguém conhece. Eu e meus
homens cavamos durante meses até encontrarmos tumbas
contendo centenas de múmias. Estranhamente, eram quase
todas de mulheres, e todas da nobreza ou realeza a julgar pela
fortuna em ouro enterrada com elas.
Ela continuou imóvel, enquanto ele pegou braceletes
incrustados com esmeraldas e os prendeu em cada um de
seus pulsos, dizendo:
— As mulheres foram mumificadas sentadas, e depois os
corpos foram cobertos de palha, e depois vestidas com
magníficos tecidos, e ouro e prata e jóias.
Por último, ele pegou um colar de platina de tirar o fôlego,
pesado com contas de ouro, jade e turquesa incrustadas.
Quando ele passou as mãos por baixo de seus cabelos e
fechou o colar em sua nuca, Navarro disse:
— Vou dizer a você quem eu sou. Quando Cortez conquistou
os astecas há 240 anos, havia um Navarro entre seus homens
que ajudou a queimar cidades até o chão. O filho daquele
Navarro e depois o neto subseqüentemente viram os nativos
da Nova Espanha caírem vítimas de catapora, febres e gripe.
Milhões de índios morreram, acabando com cidades e aldeias
inteiras.
Com dedos longos e afunilados ele arrumou o colar sobre os
seus seios, e Angela tremia tanto pelo seu toque quanto pela
sensação do metal frio sobre a pele.
— Meus ancestrais — disse ele, traçando a plenitude de cada
seio com a ponta do dedo — apoderaram-se das terras
desertas e nós prosperamos. Éramos donos de minas e
escravos, nós governamos a Nova Espanha. E isso o que tem
no meu sangue, Angela, a herança dos fortes para tirar dos
fracos, dos vivos para tirar dos mortos. E o meu destino, e o
destino dos filhos que você me dará, ter poder e domínio
sobre os outros.
Ele afastou-se para ver sua obra, Angela nua diante dele, o
corpo jovem brilhando à luz da lareira, a pele morena era um
pano de fundo sedutor para as gemas e metais preciosos que
ele colocara sobre ela.
— Eu sou incapaz de amar, Angela. Não espere sentimentos
ternos de mim. O que eu sou capaz de fazer é tornar você a
mulher mais invejada na Alta Califórnia.
Ele voltou a se aproximar dela e, estendendo o braço, pegou
seus densos cabelos, derramando-os sobre seu ombro direito,
arrumando os cachos luxuriantes como arrumara o ouro e as
jóias.
— Minha mãe era muito bonita. Os homens estavam sempre
olhando para ela. Um dia ela fugiu com um amante. Meu pai
levou cinco anos, mas finalmente os encontrou escondidos
na ilha de Hispahola. Matou os dois, como era de seu direito.
Isso nunca acontecerá comigo — disse ele, puxando os
longos cabelos dela sobre os seios, tocando os mamilos,
observando seu rosto pela reação.—Você é muito bonita,
Angela, e sua beleza pertence a mim. Este cabelo, este corpo,
tudo é meu.
A respiração dele começou a acelerar. Gotículas de suor
apareceram em sua testa.
— Este cabelo foi a primeira coisa que notei em você, tão rico
como o mais fino veludo, raro como a mais negra opala. Este
cabelo foi a primeira coisa que decidi possuir.
Ele deslizou os dedos por entre os cabelos dela, levantando-
os e os deixando cair sobre os ombros.
— Agora que você é uma mulher casada, usará o cabelo
preso. Mas quando estiver sozinha comigo você o deixará
sempre solto, desse modo.
Ele ficou atrás dela, tão encostado que Angela podia sentir a
respiração dele na nuca.
— Dobre-se — sussurrou ele asperamente.
— Senore — A voz dela ficou presa na garganta.
Ela sentiu as mãos pesadas sobre os ombros.
— Dobre-se! — Quando ela fez o que ele mandou, Navarro
de repente juntou seus cabelos e os puxou para trás. — Fique
parada!
Angela começou a lutar e, quando sentiu a penetração
inesperada e dolorosa, ela gritou. Quando ele ordenou que
ficasse quieta, lembrando-a dos convidados do casamento no
pátio, Angela mordeu a língua para ficar em silêncio. Ele
puxou seus cabelos com mais força, como se fossem as
rédeas de um cavalo, puxando sua cabeça tão para trás que
ela mal podia respirar.
Angela fechou os olhos com força e cerrou os dentes
enquanto ele continuava seu assalto, dor e humilhação
inundando-a. Quando ela gemeu, ele puxou seus cabelos
com mais força, puxando tanto sua cabeça para trás que ela
pensou que o pescoço fosse quebrar. Uma nuvem vermelha
começou a formar-se atrás de seus olhos. Ela ofegava. Suas
penetrações eram brutais, como facadas. Lágrimas quentes
ferroavam seus olhos.
Quando ele finalmente a soltou, ela caiu no chão, ofegante.
Navarro abotoou as calças e pegou outra dose de conhaque.
— Todos os seus planos idiotas sobre pomares você pode
esquecer. Esta terra é minha agora e só eu direi o que fazer
com ela. Vou trazer mais gado e carneiro, e plantar mais
pastos. Seu domínio, mulher, será no quarto e na cozinha.
Ela, sem enxergar direito, agarrou a beirada da cama e tentou
subir, mas Navarro ordenou que ficasse onde estava, de
joelhos.
— E não haverá mais cavalgadas. É impróprio para a esposa
de Navarro sair galopando pelos campos como um caballero.
Eu tenho um comprador para Siroco. O homem estará aqui
pela manha para pegar o cavalo.
— Oh Não! Por favor, senor...
Ele voltou a passos largos para a garrafa de conhaque.
— Você não pode ficar me chamando de senor. Estamos
casados. Isso não fica bem. Na frente dos outros, você pode
me chamar de Navarro. Quando estivermos sozinhos neste
quarto, você me chamará de mestre.
Ela olhou espantada para ele. E, vendo seus olhos frios, ela
viu o seu futuro neles, e como seria totalmente impotente.
Sua mente trabalhou rápido.
— Eu farei como quiser, senor — disse ela com a boca seca.
— Eu farei qualquer coisa que pedir, se fizer uma coisa para
mim. Mande minha mãe para a Espanha.
Ele balançou a cabeça.
— A presença de sua mãe aqui é minha garantia de sua
obediência. Ambos, ela e o seu imprestável pai, viverão aqui
pelo tempo que eu quiser.
— Então eu viverei para odiá-lo — sussurrou ela entre
soluços amargos.
— Odeie-me agora — disse ele, dando de ombros—, isso não
significa nada para mim. Eu não quero sua afeição. Só quero
que me dê filhos e que mantenha sua beleza. Isso eu insisto,
que você nunca perca sua beleza. Agora, me chame de
mestre.
Ela permaneceu em silêncio.
— Muito bem. Eu expulsarei seus pais esta noite mesmo.
Imagino quanto tempo eles sobreviverão sozinhos, sem
dinheiro.
— Não! Por favor! Eu imploro.
— Então faça o que eu mandar e eu continuarei a dar a seu
pai uma pensão para cobrir suas apostas e sua mãe continuará
a viver com conforto. Fui entendido?
— Sim... mestre... — disse ela, sufocando um soluço.
Ele passou a mão em seus cabelos quando ela se ajoelhou
diante dele.
— Muito bom. E agora, meu bem, a noite ainda é uma
criança.
O que devemos experimentar a seguir?

Quando acordou, Angela encontrou-se nua na cama sob os
cobertores, dolorida. Navarro estava roncando a seu lado,
dormindo profundamente. Enquanto ficou deitada por um
longo tempo, tentando não pensar nos atos humilhantes a
que fora forçada a submeter-se, viu a estrada matrimonial
que havia diante dela, todos os anos e noites escuras por vir.
Um soluço escapou de sua garganta. Ela rapidamente o
reprimiu e olhou ansiosa para Navarro. Ele continuava
dormindo.
Quando saiu da cama sem fazer barulho e entrou
furtivamente no quarto seguinte, ele ainda não se movera.
Angela banhou-se, sabendo que nunca ficaria limpa
novamente, e quando se vestiu, não foi para pôr a camisola
mas sim suas roupas de montaria, pois sabia que estava
fazendo aquilo pela última vez. Moveu-se mecanicamente e
sem emoção, trançou os cabelos, sem perceber que frágeis
pétalas de buganvília ficaram presas nela. Então saiu da casa
que ainda dormia e, silenciosamente, selou Siroco no
estábulo, partindo com ele da propriedade para os campos de
onde seguiu para oeste por El Camino Viejo, passando pelos
poços de alcatrão e pelos pântanos, em direção às silhuetas
recortadas das montanhas contra as estrelas. Ela não sabia
para onde estava indo nem por quê. Estava sendo levada pelo
instinto, o medo e a humilhação. O que acontecera durante a
noite nunca poderia ser dito a ninguém. Ela cavalgava,
embora isso lhe causasse dor, ou talvez por causa disso, cada
galope lembrando- lhe o que Navarro fizera com ela e
certamente faria pelo resto de suas vidas de casados. Angela
sentiu sua impotência transformar-se em fúria. Ela cavalgava
como se quisesse lançar a si mesma e seu amado Siroco para
fora da borda da terra.
Quando chegou ao contraforte, contornando a aldeia onde
índios não-pagãos ainda viviam à moda antiga, ela seguiu por
uma trilha até chegar a uma curiosa formação de grandes
pedras marcadas por estranhos entalhes, que de alguma
forma ela soube que representavam um corvo e a lua. Aqui
ela achou a entrada para um cãnion estreito e, sem saber o
que a trouxera para este lugar, dirigiu o cavalo para a
inclinação rochosa.
Ela encontrou a caverna sem saber como sabia que estava lá,
e quando entrou foi invadida por sentimentos de
familiaridade. Eu já estive aqui antes.
Angela viera apenas para descansar. Ela sabia agora que
fugiria, continuaria apenas cavalgando até encontrar um
lugar seguro na floresta, longe de Navarro e sua crueldade.
Finalmente, todas as lágrimas e soluços que fora obrigada a
abafar explodiram num choro incontrolável. Quando
desabou no chão de barro e chorou como se o coração fosse
partir, rezou para a Virgem Maria, e depois de algum tempo
uma voz sussurrou em sua mente: Você não pode fugir, filha.
Você tem obrigações agora das quais não pode se desviar.
Mas há coragem dentro de você, a coragem daqueles que
vieram antes de você.
Sentando-se, as lágrimas diminuindo, Angela pensou sobre
isso. E percebeu que não poderia abandonar a mãe. Isso não
só faria sua mãe sofrer, mas fugir só traria vergonha para sua
família. Possivelmente, Navarro expulsaria Lorenzo e Luisa
de casa.
No silêncio e solidão da caverna, Angela sentiu seus
pensamentos e emoções de repente se acalmarem, como
pássaros agitados que agora vieram empoleirar-se para a longa
noite. Isso a deixou com uma estranha e inesperada clareza
de pensamento.
Angela sabia o que devia fazer.
Voltando até Siroco, que beliscava umas folhagens na
entrada da caverna, ela desembainhou a faca da sela, voltou
para a escuridão silenciosa e, segurando sua longa trança,
cortou-a na base do crânio. Sentindo a corda de cabelo em
sua mão como uma cobra inofensiva, e o ar fresco em seu
pescoço nu, Angela pensou: Eu tirei o poder dele.
Enquanto enterrava a trança na terra fria da caverna, não
sentiu nenhuma sensação de triunfo ou vitória, pois sabia
que Navarro a puniria pelo que fizera. Mas ela precisava
cometer esse único ato de desafio para poder salvar seu
espírito, pois sabia que este seria o último ato de desafio que
seria capaz de cometer contra seu marido, e a memória desse
momento, ela sabia, a sustentaria nos anos vindouros.

Capítulo Onze

Os homens que se encontraram na elegante sala de reunião
nessa clara manhã exalavam confiança. Confortáveis com
seus poderes e seguros no conhecimento de que
comandavam o show, usavam ternos caros e discutiam
escores de golfe. Três falavam em seus celulares, dois tro-
cavam dicas sobre ações, Sam Cárter estava dando instruções
à mulher que registraria os minutos da reunião, enquanto um
sétimo homem, seus longos cabelos brancos presos em
tranças indígenas, estava sentado estoicamente olhando pela
janela da sala de conferência no trigésimo andar, bem acima
do prestigioso Century City. Um bule de café de prata e
fileiras de xícaras de porcelana estavam sobre um aparador de
mogno. Havia copos de cristal com água e uma rodela de
limão, e bandejas de frios, pães e frutas frescas. Os guarda-
napos eram de linho e os talheres de prata. A atmosfera era
de riqueza e agremiação, e quando Sam Carter consultou o
relógio e viu que todos estavam lá, ficou extremamente
satisfeito consigo mesmo. Ele convocara a reunião e não
tinha dúvida sobre o seu resultado. Apertos de mãos e
promessas confidenciais praticamente garantiam isso.
— Muito bem, senhores, acho que podemos começar a
reunião. Estou certo de que todos nós temos compromissos
esta tarde.
Wade Dimarco, que apresentaria a proposta para construir
um museu no sítio Topanga, disse em voz baixa a Sam:
— Não vamos ter problemas com a Dra. Tyler, vamos?
— Érica é minha empregada, Wade, ela faz o que eu mando.
— Além disso, Érica não tinha conhecimento da reunião.
Sam se certificara disso. Quando ela descobrisse, seria muito
tarde. — Não se preocupe — acrescentou Sam, dando
tapinhas nas costas de Dimarco. — Eu quase posso garantir
que sairemos daqui hoje depois de chegarmos a um acordo
muito amigável.
Enquanto tomavam seus assentos, com Sam instruindo os
membros a consultar as agendas impressas colocadas diante
deles, alguém bateu à porta. Os sete homens na mesa de
conferência ficaram surpresos ao ver uma mulher entrar,
seus modos e atitudes profissionais. Sam e Wade Dimarco
trocaram olhares e Harmon Zimmerman pareceu
instantaneamente aborrecido, enquanto três dos homens
olhavam perplexos para a estranha. Jared Black sorria.
Érica ignorou o sorriso.
— Acho que não estou muito atrasada, senhores — disse,
enquanto a porta se fechava atrás dela. — Eu não fui
informada dessa reunião até pouco tempo atrás.
Ela usava um tailleur composto de um casaco bem-cortado
sobre uma blusa branca de seda, uma saia até os joelhos e
sensatos escarpins. Os cabelos castanhos e brilhantes
roçavam os ombros num leve cacheado.
Sem ser convidada, ela se dirigiu ao único assento disponível,
do outro lado da mesa oval, em frente a Sam. Alguns homens
se levantaram educadamente. Sam olhou ameaçadoramente
para ela.
— Esta é a Dra. Tyler, minha assistente. Ela está aqui para
observar.
Érica cruzou as mãos sobre a mesa e tentou não deixar a raiva
transparecer quando Harmon Zimmerman começou as
apresentações. Ela evitou olhar para Sam com medo de
perder o controle e dizer algo de que se arrependeria. Evitou
olhar para Jared pela mesma razão.
Harmon Zimmerman representava os proprietários das casas
e sustentava sua análise da situação deles com mapas e
gráficos que passava aos participantes, uma profusão de
papéis para apoiar seu caso. Nenhuma das páginas chegou até
Érica. Os homens não esperavam um oitavo membro em
sessão. O homem de cabelos brancos com tranças indígenas,
sentado ao seu lado, compartilhava com ela seu material.
Érica mal ouvia o que Zimmerman tinha para dizer, estava
muito irritada. Sam e Jared tinham conspirado para manter a
reunião em segredo.
Na manhã seguinte ao coquetel dos Dimarco, Érica ficara
surpresa ao ver Sam mostrando o acampamento a Ginny e
Wade Dimarco. Havia outras pessoas com eles, um homem
tirando fotos, outro fazendo anotações. Érica perguntara a
Sam o que era aquilo, e este dissera que eles estavam apenas
curiosos, como todo mundo. Os Dimarco não eram as
primeiras pessoas notáveis que Sam ciceroneara pelo sítio; de
certa forma, era uma honra ter acesso a um projeto que
estava fechado ao público em geral. Porém o que tornou a
visita dos Dimarco diferente foi eles não entraram sequer
uma vez na caverna. Não era a caverna o centro das
atenções? Érica começara a pensar, quando se lembrou da
noite na festa dos Dimarco. Ao sair tão de repente, tinha
visto algo com que não atinara no momento. Sam e Wade
Dimarco com as cabeças juntas como conspiradores.
Foi então que suas suspeitas começaram. Sam estava
aprontando alguma. Nos dias que se seguiram, ele pareceu
um pouco alegre demais, um pouco espirituoso demais,
como para encobrir um nervosismo. E então, naquela
manhã, Érica vira Sam deixar o acampamento, vestindo o seu
melhor terno e assoviando alegremente. Alguns minutos
depois, Jared também saíra, bem-vestido e carregando uma
pasta. Felizmente, a secretária temporária ainda estava no
trailer de Jared. Explicando à mulher que perdera o endereço
da reunião e que esperava não chegar muito atrasada, Érica
ficou sabendo que Jared e Sam tinham ido para um prédio
em Century City onde o secretário do escritório de advocacia
estava oferecendo o uso de sua sala de conferência para a
reunião.
Enquanto Zimmerman delineava as perdas de renda para os
proprietários, porque a escavação estava movendo uma ação
contra o construtor e as seguradoras, Érica finalmente olhou
para Jared. E imaginou: na noite da festa, quando estava
enfaixando a costela dele e ele contando a ela sobre a morte
trágica da esposa, será que ele já sabia dessa reunião secreta?
Enquanto a envolvia numa falsa confidência, será que já
havia entrado numa aliança às escondidas com os homens
nesta sala? Porque Érica tinha uma forte suspeita do que pre-
tendiam esses homens ali reunidos.
Barney Voorhees, o fomentador e construtor do Emerald
Hills Estates, era o seguinte, com um show de mapas, slides e
estudos, concessões, escrituras e licenças, todos provando
que ele desenvolvera o cânion apropriada e legalmente e que
não era culpa sua o fato de a prefeitura não ter suficientes
estudos de solos e geológicos disponíveis. Também
argumentou que a escavação contínua deteve qualquer
progresso para uma resolução que seria financeiramente
satisfatória para todos os envolvidos. Os arqueólogos,
acrescentou ele grosseiramente, o estavam levando à
falência.
Em seguida, o homem da Agência de Gerenciamento de
Terras dos Estados Unidos ergueu um cavalete e fez uma
apresentação bem-preparada, completa com gráficos e mapas
geográficos, discursando sobre o quanto Zimmerman e
Voorhees tinham em dólares e centavos, recomendando que
o estado da Califórnia suspendesse o trabalho arqueológico
em Topanga e em seu lugar desenvolvesse um plano de
conservação e proteção para o Cânion Emerald Hills.
Quando chegou a vez de Wade Dimarco, ele impressionou a
todos ao diminuir a luz e fazer o centro da mesa elevar-se,
para que cada membro ficasse diante de um monitor. Seus
dez minutos de vídeo foram uma obra-prima em
computação gráfica e efeitos especiais, enquanto a audiência
era levada em uma excursão virtual do museu que ele se
propunha construir em Emerald Hills. O narrador usou a
frase "receita para os contribuintes da Califórnia" mais de
uma vez. Novamente, a implicação estava lá: quanto mais
cedo a escavação da caverna fosse interrompida, mais cedo o
novo museu indígena poderia trazer lucros para o tesouro
estadual.
O próximo a falar foi o chefe Antonio Rivera, da tribo dos
gabrielinos, a quem Érica reconheceu como o homem que
Jared trouxera à caverna nos primeiros dias do projeto,
esperando que ele pudesse fazer uma identificação tribal da
pintura. De idade avançada, o rosto cor de cobre e
desgastado mapeado com milhões de linhas e sulcos, olhos
pequenos e atentos, ele falou com voz suave e de modo
solene sobre os lugares sagrados dos índios americanos.
Falava como sotaque híbrido e curioso dos bairros de Los
Angeles: o resultado de crescer num bairro e casa de língua
espanhola e de anos assistindo a filmes americanos na TV. O
chefe Riviera passou folhas contendo fotos coloridas de sítios
sagrados em todo o sudeste, todos em vários estágios de
negligência, deterioração e vandalismo.
— Como ninguém os protege — disse ele com tristeza —,
meu povo é pobre, e somos poucos. Esses lugares eram
nossas igrejas — prosseguiu, levantando com mão trêmula a
fotografia de um grupo de pedras grandes gravadas com
petróglifos místicos, desfiguradas por palavras obscenas em
spray. — A caverna em Topanga era nossa igreja. As paredes
de pedra, o chão de terra, os símbolos sagrados pintados lá
são todos veneráveis para nós. Nós queremos nossa igreja de
volta, por favor.
Jared falou em seguida. Os índios que ele representava
queriam acabar com o projeto para poder enterrar seus
ancestrais de maneira apropriada e respeitável num cemitério
americano nativo. Seus papéis constavam de uma petição
contendo milhares de assinaturas e cartas de líderes tribais
apelando para a boa consciência de todos os homens
religiosos, índios ou brancos.
Ele fez um discurso comovente.
— Como alguns de vocês sabem, a Comissão para a Herança
dos Americanos Nativos foi fundada em 1976 em resposta à
solicitação dos americanos nativos da Califórnia por proteção
a seus cemitérios. Restos mortais antigos descobertos durante
construções de casas e estradas foram ignorados e deixados
apodrecendo ao sol pelos operários. Arqueólogos e
colecionadores amadores vieram a seguir e pegaram os
despojos sem nenhum cuidado ou preocupação pelo que
sentia o povo nativo ou pelas crenças religiosas desse povo.
Além da destruição insensível em grande escala dos
cemitérios, restos mortais estavam sendo armazenados por
arqueólogos em toda a Califórnia para pesquisas e projetos
futuros.
Ele passou os olhos escuros pelos rostos da audiência,
parando um segundo a mais sobre Érica.
—- A tomada desses despojos foi uma continuação do
comportamento em relação aos americanos nativos entre
1850 e 1900, tempo durante o qual noventa por cento da
população indígena da Califórnia pereceram com doenças,
fome, envenenamento, ou com ferimentos a bala. Vivos ou
mortos, os nativos da Califórnia não eram tratados com
decência e respeito. Eu estou aqui para providenciar que isso
não aconteça no caso da Mulher de Emerald Hills. Nós
queremos sua remoção imediata da caverna para ser
enterrada em um cemitério nativo designado.
Enquanto Jared falava, Érica sentiu o corpo e o coração
reagirem à visão e ao som dele. Como mulher ela o desejava.
Mas sua mente o rejeitava. Ela estava deslizando numa
montanha-russa emocional, algo que jurara, há muito tempo,
jamais fazer novamente. A mãe adotiva, de quem Érica se
permitira gostar, dizendo: "Nós queremos adotar você, Érica.
O Sr. Gordon e eu, nós queremos que você seja nossa filha."
Abraços e beijos e lágrimas e promessas. E Érica com onze
anos cheia de sonhos e fantasias, dando asas às suas
esperanças de que finalmente faria parte de uma família de
verdade, com um irmãozinho, um cachorro e um quarto só
para ela. Era o fim das visitas aos tribunais, o fim das
tentativas de acompanhar as assistentes sociais que mudavam
de emprego mais rápido do que as estações do ano. E então:
"Sinto muito, Érica, acho que não vai funcionar afinal. Ejá
que não podemos adotá-la, o Sr. Gordon e eu achamos que
seria melhor se você fosse colocada em outro lar de adoção."
As grandes esperanças, decidira ela, como apaixonar-se, não
valiam a amargura dos desapontamentos que invariavelmente
resultariam.
Sam foi o último a falar, apresentando seus próprios gráficos
e colunas de números para demonstrar o custo financeiro do
prosseguimento das escavações para os contribuintes e a
projeção da perda financeira comparada com os ganhos
históricos.
— É uma drenagem de dinheiro — disse ele, olhando para
cada homem sentado à mesa. — Uma drenagem — repetiu,
como se finalmente tivesse descoberto a palavra que estivera
procurando.
Então as suspeitas de Érica foram confirmadas, o objetivo
dessa reunião secreta. Todos os homens nesta sala queriam o
fim do projeto Emerald Hills por uma razão ou por outra; os
proprietários para serem generosamente recompensados por
suas perdas, o construtor para evitar a falência, os índios para
terem o controle da caverna e possivelmente uma atração
turística lucrativa, os Dimarco para construírem um museu
com seu nome. Ela não sabia exatamente qual era o motivo
pessoal de Jared, talvez ele não tivesse um, e Érica disse a si
mesma que não se importava. Ela estava aqui por um único
motivo e era nisso que devia concentrar-se.
— Senhores — disse Sam, fechando a agenda. — Já ouvimos
todos os fatos apresentados e parece que todos estamos de
acordo, então eu evoco a perguntar Há um segundo?
Zimmerman levantou a mão, mas, antes que pudesse
secundar a evocação, Érica disse:
— Questão de ordem.
Sete rostos viraram para ela.
— Qual é a sua questão de ordem, Dra. Tyler? — perguntou
Sam, franzindo o cenho.
— Eu não tive chance de apresentar meu caso.
As sobrancelhas cerradas dele subiram.
— Dra. Tyler, você trabalha para o Estado e eu já apresentei o
caso nessa instância. Todos os lados foram ouvidos. Nós
estamos prontos para votar.
— Posso perguntar onde essa agenda foi publicada?
Ele pestanejou. E então um rubor subiu de seu colarinho.
— Certamente, Dr. Carter — pressionou Érica —, está ciente
de que no estado da Califórnia, se uma comissão ou agência
for executar alguma coisa, ela deve publicar a agenda
antecipadamente. Não encontrei tal notícia pública nos
jornais locais ou no saguão no andar térreo. Será que não
percebi?
— Não havia uma agenda — respondeu ele, endireitando os
ombros. — Esta é apenas a primeira leitura. Nenhuma
agenda precisa ser publicada para a primeira leitura.
— Então nenhum voto ou ação podem ser tomados hoje.
Estou certa?
Seus olhos se encontraram através do comprimento da mesa
enquanto os outros participantes esperavam em silêncio.
— Está — disse ele.
— Portanto, eu tenho algo a dizer.
Ela levantou-se com dignidade e falou com voz forte e clara:
— Esta manhã nós ouvimos falar em números e estatísticas.
Falamos de ecologia e direitos nativos, estudos de impacto
ambiental, perdas e ganhos financeiros. Ouvimos os
representantes do povo e do meio ambiente. Um homem —
disse ela, baixando a cabeça respeitosamente na direção do
chefe Rivera — até falou em nome da caverna. E eu estou
aqui para falar em nome de alguém que não pode falar por si
mesma. A Mulher de Emerald Hills.
— O quê! — deixou escapar Zimmerman. — Senhorita, não
estava ouvindo o que ele disse? — disse ele, apontando para
Jared. — O homem disse que os índios querem os ossos de
volta. Eles vão enterrá-los num cemitério apropriado.
— Isso não é suficiente. A mulher na caverna foi conhecida
por seu povo outrora e pelos seus descendentes. Ela tem
direito a ter seu nome de volta. E isso o que eu...
— É só um monte de ossos, pelo amor de Deus!
Érica olhou calmamente para Zimmerman.
— Senhor, eu não o interrompi quando estava fazendo sua
apresentação. Será que posso ter a mesma cortesia?
— Eu pensei que tivéssemos terminado — disse Zimmerman,
virando-se para Sam. — Você vai deixar qualquer um vir até
aqui e esticar esta reunião indefinidamente?
Antes que Sam pudesse responder, outra voz interrompeu
suavemente.
— Eu gostaria de ouvir o que a jovem tem a dizer.
Érica olhou para o velho índio.
— Obrigada, chefe Rivera.
— Eu também gostaria de ouvir o que a Dra. Tyler tem a
dizer — disse Jared com um sorriso. Que Érica não retribuiu.
— Muito bem, Dra. Tyler — disse Sam, sem esconder a
irritação e olhando para o relógio. — Por favor, prossiga, mas
seja breve.
Ela endireitou os ombros.
— Senhores, eu não tenho mapas ou gráficos, nem show de
slide ou vídeo, nem folhetos luxuosos com palavras
dispendiosas. Tudo o que eu tenho é isto. — Tirou da bolsa
um envelope pardo, entregou-o ao Sr. Voorhees, à sua
direita, acrescentando: — Poderia olhar isto por favor e
depois passá-la adiante.
Os outros esperaram, entre impacientes e curiosos enquanto
Voorhees abria o envelope e pegava o que estava dentro.
— Meu bom Deus! — deixou escapar, olhando chocado para
a fotografia em branco e preto. — Isto é uma brincadeira?
— Por favor, Sr. Voorhees, passe a fotografia adiante.
Ele rapidamente passou a foto para o homem da Agência de
Gerenciamento de Terras, que deu uma olhada e disse:
— Que diabo é isto?
— Érica, o que tem na foto? O que você trouxe? —
perguntou Sam, estendendo a mão, mas a foto foi passada
primeiro para Jared, cuja reação de choque se igualava à dos
outros dois.
— O que vocês estão olhando, senhores — disse Érica —, é
uma fotografia tirada no necrotério da cidade. Os senhores
encontrarão o carimbo oficial no verso. A foto é de uma
mulher caucasiana de vinte e poucos anos que foi encontrada
em um campo há três dias, vítima de suposto assassinato. A
identidade dela é desconhecida. Foi rotulada como Fulana de
Tal no 38.511. A polícia está tentando descobrir quem ela é.
Érica tinha pensado em fazer cópias da foto, uma para cada
membro da reunião, mas depois decidira que uma única foto
causaria mais impacto, cada homem tendo de olhá-la e lidar
com ela, a vítima solitária sendo passada de mão em mão sem
sequer a companhia de irmãs clonadas. A foto era brutal e
amedrontadora. Os olhos da jovem estavam fechados, mas
ela não parecia dormir. Claramente não deixara esta vida em
paz; sombras da luta que travara assombravam seu rosto
outrora belo. Marcas de estrangulamento em sua garganta so-
bressaíam em relevo selvagem. Jared passou a foto para Sam,
que mal olhou para ela antes de passar para Zimmerman.
— Jesus! — exclamou o produtor de cinema, saltando como
se Sam tivesse posto uma cobra em suas mãos.
— Essa jovem jaz nua e exposta sobre a mesa do necrotério
— continuou Érica. — Ela já foi uma vez a filha de alguém.
Talvez tenha sido a irmã ou esposa querida de alguém. Ela
merece ser pranteada e lembrada.
— Ainda digo que não passa de um monte de ossos —
murmurou Zimmerman.
— Debaixo desta carne, Sr. Zimmerman — disse Érica,
apontando para a foto nas mãos dele —, também há um
monte de ossos, como o senhor diz. Esta mulher morreu há
três dias. A Mulher de Emerald Hills morreu há dois mil
anos. Não consigo ver a diferença. E proponho submeter os
restos mortais de Emerald Hills a testes de DNA para
descobrir a que tribo...
— Teste de DNA! — exclamou Wade Dimarco. — Sabe
quanto custa isso? Para os contribuintes, devo acrescentar?
— E o tempo que leva? — reforçou Voorhees, o construtor,
queixando-se.
— Sam — disse Dimarco, contrafeito —, você mesmo disse
que o projeto já era uma drenagem. Quanto mais dinheiro e
tempo vamos desperdiçar nele? — E virou-se para Jared: —
Você disse que já fez arranjos para enterrar o esqueleto,
certo?
— As Tribos Confederadas do Sul da Califórnia desejam assu
mir a proteção dos restos mortais. — confirmou Jared.
— Nós não temos o direito de varrer aquela mulher para
debaixo do tapete burocrático por causa de alguns dólares —
opôs-se Érica. — A evidência histórica na caverna indica que
os descendentes dela queriam que ela fosse lembrada, Sr.
Comissário. — Virou-se para Jared enquanto tirava um papel
da bolsa. — Posso ler algo para você?
Os outros emitiram um som de impaciência, mas Jared lhe
deu permissão para prosseguir. Ela leu em voz alta:
— A missão da Comissão para a Herança dos Americanos
Nativos é prover proteção aos cemitérios americanos nativos
contra vandalismo e destruição por negligência; prover um
procedimento para a notificação dos descendentes mais
prováveis quanto a descobertas de restos mortais de
americanos nativos e associados bens tumulares; mover ação
judicial para evitar danos severos e irreparáveis aos santuários
sagrados, sítios cerimoniais, cemitérios e lugares de adoração
em propriedade pública; e manter um inventário dos lugares
sagrados." Esta é a declaração da missão de sua própria
Comissão, Sr. Black.
— Eu sou versado nisso.
— Pensei que precisasse ser lembrado de que seu primeiro
objetivo é encontrar o descendente mais provável. O senhor
não acha que o "reenterro" imediato do esqueleto está em
contradição direta com esse objetivo? — Ela levantou a foto
do necrotério, que estava novamente em suas mãos. —
Senhores, vamos considerar o seguinte: os senhores
prefeririam que as autoridades não se empenhassem para
descobrir quem foi esta mulher? — perguntou, olhando para
cada homem à mesa. — Se ela fosse sua esposa, Sr.
Zimmerman, ou filha, Sr. Dimarco, ou irmã, Sam, os
senhores não gostariam que as autoridades lidassem com os
restos mortais dela com respeito e dignidade, e fizessem tudo
que pudessem para devolvê-la à família? — Érica pôs as mãos
espalmadas sobre a mesa e inclinou-se para a frente. —
Deixem-me terminar meu trabalho na caverna. Não pode
levar muito mais tempo. Assim que o teste de DNA for
aprovado, nós vamos ter pelo menos uma identificação tribal
do esqueleto. E talvez essa tribo, seja qual for, tenha uma
história em sua mitologia sobre uma mulher que atravessou o
deserto vindo do leste. Talvez até saibam seu nome.
Os olhos pequenos e agudos de Sam sondaram o rosto de
Érica, vendo a paixão e a seriedade conhecidas. Ele desejou
tê-la mandado de volta para o Projeto Gaviota e as conchas
de madrepérola.
— Você nunca receberá aprovação, Dra. Tyler. O que está
propondo é gastar grande soma em dinheiro dos
contribuintes em algo que o público vai considerar perda de
tempo e de recursos.
— Mas eu planejo conseguir o apoio dos contribuintes —
disse ela, pegando um recorte de jornal na bolsa. — Esta
mulher concordou em ajudar.
Érica passou o recorte adiante até chegar a Sam. Ele franziu
as sobrancelhas quando viu o que era. Sam conhecia a
colunista do Los Angeles Times, uma mulher que também
era fundadora e presidente da Liga Para o Fim da Violência
Contra Mulheres. Ela era famosa por publicar
ocasionalmente em sua coluna a foto de alguma Fulana de
Tal no necrotério com a legenda: Você me conhece?
— Ela concordou em publicar a foto da Mulher de Emerald
Hills — disse Érica.

Jared a alcançou no saguão.
— Uma exposição bastante persuasiva, Dra. Tyler.
Ela virou-se para ele.
— Vocês realmente acharam que conseguiriam o que
queriam?
— Como disse? — perguntou ele, o queixo caído.
— Você e seus camaradas tendo uma reuniãozinha secreta...
— Meus camaradas! Do que está falando? A reunião não era
secreta.
— Então por que não fui informada?
Ele olhou para ela sem entender.
— Eu pensei que você tivesse sido. Sam disse que informou
você sobre a reunião, mas que você não poderia ir.
A porta do elevador abriu e Sam Carter, na companhia de
Zimmerman e Dimarco, saiu dele. Érica bloqueou seu
caminho.
— O que está acontecendo, Sam? O que significa tudo isso?
Ele gesticulou para os companheiros, liberando-os.
— Convoquei a reunião de acordo com o interesse das outras
partes, não que eu tenha de me explicar para você.
-— Ora, Sam, aquilo não foi uma primeira leitura. Vocês iam
votar hoje mesmo, não iam? Vocês violaram os padrões da
Comissão Little Hoover. Vocês se encontraram a portas
fechadas para votar sobre uma decisão que vai afetar o
público e apesar disso o público não foi informado.
Ele começou a querer passar por ela, mas ela manteve-se
firme.
— São os Dimarco, não é? O que eles lhe prometeram? O
cargo de curador no museu deles?
— O que você está sugerindo? — perguntou Sam, estreitando
os olhos.
— Quando o vi com os Dimarco eu achei que havia alguma
coisa. Mas, você sabe, eu teria deixado escapar se não tivesse
entrado em sua tenda numa manhã à sua procura no
momento em que um fax chegava. Eu não sou bisbilhoteira,
mas quando vi que a carta tinha o selo oficial da Califórnia
soube que não era pessoal e me senti no direito de lê-la.
Quer saber, Sam? O memorando era intrigante. Estava
assinado pelo secretário de Recursos e era essencialmente
uma carta de permissão para você "prosseguir com a ação
proposta". Naturalmente eu fiquei imaginando que ação. Não
era o que já estávamos fazendo — a escavação na caverna —,
nossa ação oficial? O que mais precisaria ser feito? Foi
quando me lembrei de você me dizendo certa vez que
gostaria de se aposentar do trabalho de campo e descobrir
um bom trabalho num escritório ou museu. Que
coincidência esses Dimarco quererem um museu com o
nome deles.
— Então você foi até o necrotério da cidade e pegou uma
fotografia que certamente nos chocaria.
— Existe outra forma de lutar contra vocês? Nós vamos
publicar a coluna, Sam. E estou apostando que terei o apoio
público do meu lado.
— Por que isso significa tanto para você, a ponto de arriscar
seu trabalho, sua carreira?
— Porque certa vez, anos atrás, eu estava tão vulnerável
como a Mulher de Emerald Hills está. Eu ia ser esmagada por
um rolo compressor assim como a esmagaram. Eu era apenas
um número, Sam; eles não se referiam a mim pelo nome. Eu
estava prestes a ser jogada por entre as fendas do sistema sem
alma e sem coração de assistência à infância quando um
estranho interveio e defendeu meus direitos. Prometi que
algum dia eu pagaria o favor fazendo o mesmo por outra
pessoa. Sam, eu vou fazer isso de um modo ou de outro. Se
tiver de ir a Washington e fazer lobby no Congresso dos
Estados Unidos, eu vou ser bem-sucedida.

Apesar das objeções de tribos indígenas locais", dizia a voz
do noticiário no rádio do carro, "o governo federal disse
ontem que os testes de DNA no esqueleto de Emerald Hills
irão adiante. A decisão resultou de dias de discussão
envolvendo representantes de tribos do sul da Califórnia e
oficiais do Departamento do Interior, Departamento de
Justiça, bem como da Comissão para a Herança dos
Americanos Nativos do Estado da Califórnia. Peritos em
análise de DNA antigo salientaram que os procedimentos
serão complexos e demorados e podem não fornecer dados
conclusivos para determinar a identidade tribal do esqueleto.
As Tribos Confederadas do Sul da Califórnia criticaram a
decisão e continuam a reclamar os ossos para serem
enterrados novamente."
Jared desligou o rádio. Acabava de voltar para Topanga
depois de cinco dias em Sacramento, onde participara de
uma sessão de emergência da Comissão para a Herança dos
Americanos Nativos. A sessão fora convocada, porque
Coiote e seus Panteras Vermelhas, protestando contra o
prosseguimento da escavação da caverna, montaram um
"desmoronamento humano" na Pacific Coast Highway,
provocando um enorme engarrafamento. Eles juraram
aumentar progressivamente sua luta até que a caverna de
seus ancestrais fosse fechada. Sam Cárter também estivera na
reunião de emergência — Sam mudara sua tática, assim
como os Dimarco, pedindo que fosse permitido aos
arqueólogos continuarem trabalhando na caverna até que o
descendente mais provável pudesse ser encontrado. Os
Dimarco diziam que sua mudança de sentimento não tinha
nada a ver com os comentários negativos da imprensa e a
pressão dos grupos feministas que resultaram da cruzada de
Érica para manter o projeto em funcionamento. A foto do
necrotério, impressa no Los Angeles Times junto com a foto
do esqueleto de Emerald Hills, alcançara o objetivo
procurado.
Quando Jared saiu do carro algo chamou sua atenção — um
clarão amarelo-rubro por entre as árvores. Um tigre asiático
bordado em uma jaqueta.
Ele franziu as sobrancelhas. O que Coiote estava fazendo
aqui? Uma ordem judiciária fora emitida para que ele e seu
grupo se mantivessem afastados dali. Enquanto o observava,
Jared percebeu que as ações de Charlie eram furtivas,
traiçoeiras. O gigante continuava olhando por sobre os
ombros em direção à caverna. Depois Jared o viu jogar
alguma coisa na carroceria da picape.
— Ei!—gritou Jared.
Mas Charlie estava ao volante e saiu veloz do estacionamento
numa chuva de terra e poeira.
Jared ficou olhando na direção da caverna, seus passos cada
vez mais rápidos até de repente estar correndo. Cada instinto
lhe dizendo que Charlie aprontara alguma e que quem quer
que estivesse na caverna corria perigo.

— Parecem fetiches carregados por curandeiros e
curandeiras. Um objeto muito poderoso — explicava Érica a
Luke enquanto estavam ajoelhados no buraco da escavação,
examinando a pequena pedra preta que haviam encontrado
dentro de um saquinho de couro.
— Parece muito antigo — disse Luke. — Duzentos, talvez
trezentos anos.
— É, mas estranhamente nós a encontramos no mesmo nível
da moeda americana de um centavo, o que significa que esta
pedra-espírito só pode ter sido deixada aqui em/ou depois de
1814. O que quer dizer — disse ela, levantando os olhos para
Luke — depois da fundação de Los Angeles, uma indicação
de que esta tribo ainda estava praticando seus rituais na
primeira parte do século XIX.

— Érica? Érica!
Ela olhou para a entrada da caverna.
— É Jared?
— Pareceu que é ele. E bastante assustado.
Érica se pôs de pé e bateu a poeira do jeans. Jared voltara de
Sacramento! Depois que ele a convencera de que não
participara de nenhum plano secreto com Sam e que
realmente pensara que ela sabia da reunião em Century City,
Érica voltara para sua montanha-russa emocional. Enquanto
seguia Luke em direção à entrada da caverna, ansiosa por
ouvir as novidades de Jared, ver seu sorriso, compartilhar
espaço com ele, saborear a emoção secreta que sua
aproximação despertava, o ar sacudiu com um súbito e
ensurdecedor boom. Uma onda de choque bateu em Érica,
derrubando-a. Depois veio um tremendo rugido, e a caverna
estremeceu, enquanto terra e pedras despencavam.
— Luke! — gritou ela.
A eletricidade foi cortada, mergulhando a caverna numa
escuridão fantasmagórica. O ar de repente cheio de poeira.
Engatinhando, Érica rastejou cegamente no escuro.
— Luke? — chamou ela, tossindo.
Ela arregalou os olhos, não havia um pingo de luz. Érica
nunca vira uma escuridão tão completa. Rastejou, cautelosa,
para a frente, uma das mãos esticada, tateando o ar.
Finalmente encontrou uma parede de pedra onde não devia
haver nenhuma. Érica ficou escutando. Poeira continuava
caindo do teto. Cegamente, explorou o bloqueio. Mais pedras
despencaram.
— Luke? — chamou ela. — Luke!
Mas tudo que ouviu foi sua própria respiração áspera no
silêncio que a fez pensar em um túmulo.

Capítulo Doze

Marina
1830 da era cristã

Por favor, Deus, rezava Angela Navarro em silêncio. Permita
que tudo corra bem amanhã. Permita que o casamento
aconteça sem nenhum incidente.
Sua filha favorita estava se casando por amor, um verdadeiro
milagre. Mas Navarro ainda podia estragá-lo. Mesmo depois
de tanto tempo, ele podia estragar tudo.
Angela estava sempre vigilante — foi assim que ela e os
filhos sobreviveram, pela sua astúcia e por nunca baixar a
guarda. Ela adivinhava os estados de ânimo do marido,
vigiava os sinais, e depois agia de acordo. Navarro provando a
sopa, sua sobrancelha arqueando, Angela rapidamente
chamava a empregada para levar a sopa horrível de volta —
mesmo achando secretamente que estava deliciosa. Ou
marcas de barro no piso de ladrilho feitas por um dos filhos,
e Navarro franzindo o cenho para as marcas, Angela
declarando como fora descuidada em não limpar os pés, e as
costas da mão de Navarro indo parar em seu rosto em vez de
em um dos garotos. Felizmente, na maior parte do tempo,
Navarro não sabia que estava sendo manipulado. Mas isso
exigia que Angela estivesse sempre alerta. Os poucos erros
que cometera haviam custado muito a ela e às crianças. Uma
palavra mal colocada, um olhar de que ele não gostasse, e ele
pegava a correia, distribuindo golpes na esposa, filhos,
empregados.
E assim ela aprendeu durante os anos a detectar o momento
certo de tirar as crianças de sua frente, quando repreender
antes que Navarro o fizesse, quando aplacar um ataque de
fúria, quando criticar a si mesma antes dele, como assumir a
culpa por tudo de modo que as crianças e os empregados
fossem poupados da ira dele. Ela sabia quando a submissão de
sua parte o acalmava ou quando isso o irritava, e como se
ajustar rapidamente ao seu humor. Era como se
participassem de um jogo elaborado, só que Navarro não
sabia disso. Mas tornara-se algo cansativo, com o passar dos
anos, proteger os filhos constantemente da violência dele,
aplacar desastres, nunca ser ela mesma, mas apenas uma
reação aos caprichos de Navarro. Mas agora, com Marina
partindo, Angela poderia finalmente relaxar. O que ia fazer
com o tempo sem ter mais filhos para criar nem ela mesma
sabia. Há muito deixara de lado seu velho sonho de cultivar
cítricos e uvas no rancho. Seus filhos e a sobrevivência deles,
bem como a sua própria, sempre vieram primeiro.
Enquanto supervisionava ansiosa o caos na cozinha, que,
sendo bem maior do que a modesta cozinha dos dias de
Dona Luisa, estava quente e enfumaçada do churrasco em
grandes grelhas abertas e ensopados e pães assando em
sólidos fornos, ela parou um momento para olhar pela janela.
Com tanta coisa ainda por fazer para o casamento no dia
seguinte, Angela quase não teve tempo de tomar seu
chocolate matinal, e então ela fez uma pausa para tomá-lo
lentamente, saboreando a riqueza do líquido grosso feito de
cacau, açúcar, leite, maisena, ovos e baunilha, para acalmar-
se e dizer a si mesma que tudo correria bem.
Olhando pela janela, deixou seu espírito voar pelos pastos e
campos, como fizera muitas vezes durante anos, para
lembrar dos dias em que montava Siroco em liberdade e
feliz. Havia poucas árvores na paisagem então, poucos
vaqueiros e pessoas. El Camino Viejo era bem movimentado
agora, com carroções, cavalos e mulas. Lembrou-se da
curiosa migração anual dos índios para oeste ao longo da
Estrada Velha, quando seguiam para a colheita outonal de
glandes nas montanhas, milhares de nativos carregando seus
pertences, seguindo para o mar como respondendo a um
chamado antigo. Fazia muito tempo desde que Angela vira
qualquer índio seguindo para oeste no outono. Ficou
imaginando se eles ainda saíam em busca de glandes.
Quando seu olhar caiu sobre o vasto rebanho bovino até
onde a vista podia alcançar, as nuvens de poeira levantadas
por seus cascos, os pensamentos calmos de Angela ficaram
turvos.
Navarro estava saturando a pastagem. Não estava permitindo
que a terra descansasse e rejuvenescesse. Parecia esquecer
que o gado, vindo de além-mar, precisava adaptar-se ao lugar
e que portanto cuidados especiais deviam ser tomados para
manter o equilíbrio da natureza. Mas Angela não se atrevia a
sugerir-lhe que reduzisse o rebanho e deixasse alguns acres
intactos, pois suas palavras só trariam para ela um rápido e
brusco tapa.
Lembrando a si mesma que este deveria ser um dia feliz,
colocou as preocupações de lado mais uma vez e virou-se
para encontrar Marina ainda de vigília na janela da cozinha.
Com dezoito anos e delirantemente apaixonada, Marina
olhava atentamente para El Camino Viejo onde carroções e
cavalos iam e vinham em suas trilhas do povoado de Los
Angeles para as angras de Santa Mónica, parando nos poços
de alcatrão ao longo do caminho. Angela sabia que sua filha
mais nova estava esperando seu noivo, Pablo Quinones, um
hábil ourives nascido na Califórnia de pais mexicanos.
Angela nunca vira uma moça apaixonada! Marina parecia
ansiosa na janela aberta como uma flor para o sol, seu esbelto
corpo quase tremendo por antecipação. E seu rosto! Olhos
abertos e fixos, lábios entreabertos e ofegantes, esperando o
momento que seu amado Pablo apareceria na estrada.
Quantas vezes Marina entrou em casa correndo, corada e
com os olhos brilhantes depois de se sentar à sombra de uma
aroeira com Pablo! Eles passavam horas juntos lá, sob o olhar
cuidadoso da velha dama de companhia, tagarelando, rindo,
animada com jovialidade. Tão diferente do breve noivado de
Angela com Navarro, quando se sentavam em silêncio. E
Marina dizia:
— Oh, mamá, Pablo conhece tantos lugares. Ele esteve em
San Diego! Imagine isso.
Mas Angela não podia imaginar. Uma cidade a duzentas
milhas de distância podia bem estar a duas mil milhas de
distância. Que atração poderia ter para uma moça de dezoito
anos quando sua casa e tudo que lhe era familiar estavam
bem aqui?
Claro, Angela não sabia como era estar apaixonada. Houve
um tempo, uma vez, quando ela poderia ter se apaixonado
por Navarro, mas isso foi há muito tempo, quando ela era
outra Angela.
Ela sobressaltou-se com o barulho das crianças gritando de
repente. Indo até a janela que dava para os currais, cercados
para ovelhas e estábulos, viu os netos e netas subindo na
cerca para ver homens a cavalo trazendo um urso pardo
selvagem para o curral.
Os vaqueros capturaram a fera nas montanhas de Santa
Mônica e o trouxeram, vivo, para o Rancho Paloma, onde,
na noite do dia seguinte, seria posto para brigar contra um
touro como parte das festividades do casamento. O urso
estava numa batalha feroz, mostrando dentes e garras e
rugindo com fúria enquanto os cavaleiros seguravam suas
cordas, cavalos empinando, relinchando, levantando nuvens
de poeira, e as crianças batendo palmas e gritando,
encantadas.
Enquanto Angela observava os netos escalarem a cerca como
filhotes para ver o espetáculo — uma saudável e pequena
ninhada variando em idades que iam de dezesseis anos a
crianças pequenas —, seus pensamentos voltaram-se para
Marina, e ela sentiu uma mistura de tristeza e alegria apertar
seu coração. Tristeza, porque a filha caçula se casaria no dia
seguinte e deixaria a casa, mas também alegria, porque a casa
para onde ia não ficava distante.
Este seria o último casamento nessa casa, o seu tendo sido o
primeiro, há trinta e oito anos, quando fora forçada a se casar
com um homem de mente fria e um coração mais frio ainda.
Quase quarenta anos tinham-se passado desde que Angela
cortara sua trança na caverna das montanhas e no entanto
ainda podia sentir os machucados da surra que levara na
manhã seguinte, quando Navarro acordara para descobrir o
que ela havia feito. A punição não terminou aí. Navarro deu-
lhe prosseguimento, planejando diferentes modos de lembrar
Angela continuamente de quem era o mestre. Ele a fazia tirar
a roupa, amarrava-a na cadeira e a deixava lá a noite inteira.
Forçava-a a praticar atos obscenos e degradantes, todos os
quais ela sofreu em silêncio, porque só aconteciam à noite e
quando estavam sozinhos. Quando o sol se levantava de
manhã, Angela quase podia pensar que os atos de crueldade
de Navarro não haviam passado de sonhos maus. Ele tomava
cuidado para que as marcas de sua brutalidade nunca
aparecessem de modo que nem mesmo a criada de quarto de
Angela, que a ajudava a se vestir pela manhã, soubesse. E
quando havia vezes em que Angela pensava que não poderia
mais suportar os tormentos, lembrava-se das crianças, de
como Navarro não lhes deixava faltar nada e da bela casa que
construíra.
Angela não odiava Navarro. Ela tinha pena do marido, pois
não havia amor dentro dele e portando não havia alegria
também. E ninguém o amava em retorno, nem mesmo seus
filhos. E, de um modo que não podia explicar, ela era sempre
grata a ele — pelos filhos que lhe dera, por ter mantido a
promessa de deixar seu pais viverem em sua casa até
morrerem e por fazer de seu precioso rancho o mais lindo e
próspero na Alta Califórnia. Em troca, ela cumprira sua parte
no trato: aos quarenta e quatro anos, Angela ainda mantinha
sua beleza.
O barulho e o caos na cozinha desviou seus pensamentos.
Todas essas mulheres em alvoroço, moendo farinha, fazendo
tortillas, preparando legumes, batendo a massa, conversando
e rindo, e ainda com tanta coisa para fazer! A fazenda
estivera fazendo preparações durante semanas. Primeiro
haveria a grande procissão de casamento a cavalo, com os
noivos ricamente vestidos, liderando o espetáculo pelo
povoado de Los Angeles e depois voltando, Marina com um
chapéu de plumas e abas largas e saias de veludo de cores
vivas, Pablo com paletó e calças bordados, seu cavalo arreado
de prata. E depois a festa de casamento, entre os jacarandás,
estercúlias e aroeiras, mais a banda de mariachi, os
dançarinos e os fogos de artifício.
A família inteira de Navarro reuniu-se para a ocasião. Os
irmãos e irmãs de Marina, todos mais velhos do que ela e
casados, tinham vindo com as esposas, os maridos e os filhos.
Até a irmã de Marina, Carlotta, mais velha do que ela dezoito
anos, fizera a longa jornada da Cidade do México com o
segundo marido, o conde D'Arcy, e a filha de seis anos,
Angélique.
Angela parou para inspecionar o molho de tomate vermelho
numa grande frigideira, a cebola, o alho, a polpa de tomate,
orégano e farinha de trigo fervendo no óleo. Provou do
molho e fez uma careta. Selecionando um pequeno tomate
fresco, ela o cortou rapidamente, colocando os pedaços na
frigideira. Agora o molho ficaria perfeito. Quando se afastou
do fogão, Angela viu pela janela um homem alto e de
aparência feroz correr para o curral e tirar uma das meninas
pequenas da cerca. Era Jacques D'Arcy, o segundo marido de
Carlotta e devotado pai de Angélique, afastando-a do
espetáculo cruel do urso e levando-a para a sombra de um
caramanchão, onde a sentou no colo e pegou uma flor para o
seu cabelo.
Angela ficou apreensiva novamente. Navarro detestava o
segundo marido de Carlotta. Quando o primeiro marido dela,
um californio escolhido por Navarro, morreu na Cidade do
México, Navarro esperara que a filha mais velha voltasse para
a Alta Califórnia e se casasse com um ranchero local. Em vez
disso, ela conheceu e se apaixonou por um homem cuja
família fugira da revolução na França e encontrara refúgio na
Cidade do México. Navarro detestava os franceses e se
recusou a falar com Jacques D'Arcy, e este, afrontado,
declarara que ia ficar apenas em consideração a Carlotta.
Sentindo um arrepio apesar do dia quente, Angela
rapidamente examinou os arredores em busca de Navarro.
Bastava muito pouco — alguns copos de vinho, um insulto
imaginado — para que ele botasse na cabeça a idéia de
desafiar D'Arcy para um duelo. Navarro já fizera isso antes. O
adversário perdera.
Enquanto olhava como D'Arcy era louco pela filhinha,
Angela suspeitou que seus motivos para vir ao casamento
eram menos por Carlotta do que para agradar sua pequena
"princesa". Nomeada pela avó Angela, a menina de seis anos
era velada por uma asteca de aparência austera que era mais
do que apenas um múmia, ela era uma curandera — uma
curandeira — que possuía os conhecimentos médicos dos
astecas, secretos e antiquíssimos. A mulher de expressão
austera usava roupas estranhas: uma saia longa e colorida e
uma túnica sem manga de outro tecido que ia até a coxa. Os
cabelos compridos estavam presos para cima em dois
montículos enrolados com tecidos que pareciam dois chifres
sobre a testa. Os lóbulos das orelhas, com dois tampões de
ouro inseridos, eram tão longos que roçavam os ombros.
Carlotta explicara que a mulher viera de uma aldeia onde as
pessoas ainda viviam como seus ancestrais, antes da chegada
de Cortez, e onde mantinham segredos de cura que nunca
compartilharam com os seus conquistadores. Carlotta e
D'Arcy a contrataram por causa da doença de Angélique, a
mesma aflição que atormentava Angela. E Marina.
De todos os seus filhos, só Marina herdara a maldição do
desmaio. Pobrezinha de Marina! A primeira vez que isso
aconteceu ela tivera visões apavorantes. Como chorara e se
agarrara à mãe! Era a ligação especial delas. Ninguém mais
podia entender como era. Pablo Quinones assegurara a
Angela que estava preparado para tomar conta de Marina
durante as crises. Mas Angela sentia que era a única pessoa
capaz de ajudar. E era por isso que estava agradecida pela
filha ter se apaixonado por um rapaz local, assim não ficaria
longe de casa.
Uma mãe não devia ter favoritos entre os filhos, mas o
coração de Angela tinha uma mente própria. Aqui estavam
suas filhas mais amadas, a mais velha e a caçula. Carlotta fora
a primeira, nascida quando Angela tinha apenas dezoito anos
de idade. Houve muitos de permeio, alguns dos quais não
sobreviveram e agora descansavam no pequeno cemitério da
família debaixo de uma aroeira. Havia os garotos fortes e
vigorosos, homens agora, três deles arrogantes como
Navarro, um tímido, um que nunca parava de rir, e havia as
outras meninas, duas mulheres sensatas que fizeram bons
casamentos. Nove crianças sobreviventes de quatorze
gravidezes. Marina era a caçula, nascida quando Angela tinha
trinta e seis anos. Três mais foram concebidos depois dela,
mas dois não chegaram ao primeiro ano, e o terceiro Angela
perdera num aborto. Depois disso, Angela não pôde mais ter
filhos e assim Marina continuou sendo o seu precioso "bebê",
especialmente depois que os outros se casaram e se
mudaram.
O nome de Marina ocorrera a Angela num sonho, quando
ainda estava grávida dela e antes que pudesse saber que a
criança era uma menina. Um nome especial. Mas ela não
pôde ouvi-lo claramente no sonho. Ela se viu em um lugar
terrivelmente escuro, uma pintura estranha na parede, mãos
febris enterrando um crucifixo, e uma voz abafada a
chamando. Foi Marini? Mamiri? Eles não pareciam nomes de
gente. Marina! Sim, foi isso, o nome no sonho. Um nome
lindo.
Incapaz de suportar por mais tempo os grunhidos de terror e
a violação do urso, ela afastou-se do espetáculo perturbador
— a pobre fera estava de costas, tentando se livrar das cordas
— e um pensamento inesperado entrou em sua mente: o
urso não deu permissão para ser laçado e arrastado até aqui
para nosso entretenimento.
De onde saiu isso? Idéias estranhas entravam em sua mente
nos momentos mais inesperados. Uma rápida faísca de
pensamento, como um peixe pulando num riacho para ser
visto num lampejo cintilante só para desaparecer dentro da
água. Às vezes esses pensamentos errantes eram tão rápidos
que ela não conseguia lembrá-los, não conseguia entendê-
los. Ocasionalmente, eram palavras, outras vezes imagens.
Dando de ombros aos seus estranhos pensamentos, Angela
voltou à tarefa monumental de alimentar tantos convidados e
empregados nesta ocasião festiva.
O Rancho Paloma era agora uma grande fazenda: uma
propriedade economicamente diversificada que empregava
uma enorme mão-de-obra, combinando agricultura,
pastagem e outras produções. Navarro cumprira muito bem a
promessa da noite de núpcias de ficar muito rico. O povoado
de Los Angeles também estava prosperando.
Agora havia fazendas em toda parte, com pomares,
horticulturas e vinhedos. O Rancho Paloma tinha ranchos
vizinhos agora: La Brea, La Cienegas, San Vicente e Santa
Mônica. E mais afastado, os grandes ranchos de Los Paios
Verdes, San Pedro, Los Feliz — centenas de milhares de
acres pertencendo a famílias com nomes ilustres: Domin-
guez, Sepúlveda, Verdugo. A população do povoado crescera
para quase oitocentos habitantes.
Quando Angela viu Marina segurar o arco da janela de
repente, num gesto súbito e ansioso, Angela olhou para fora
para ver o que chamara a atenção da filha. Pablo chegara?
Mas não, o cavaleiro passando pelo portão não era Quiriones,
mas um americano com quem Navarro estava negociando
ultimamente.
Daniel Goodside, um capitão de navio, que deixou Angela,
por razões que não sabia explicar, inquieta.
Os negócios de Navarro com os Yanquis costumavam ser
ilegais, quando ele se encontrava secretamente com os
comerciantes americanos nas enseadas de Santa Barbara para
trocar couro de boi por ouro. Mas agora tudo era legal e feito
às claras. Ironicamente, Navarro desprezava os americanos
muito mais do que desprezava os franceses, mas os julgava
um mal necessário — pouco melhores que parasitas, mas
uma rica fonte de comércio e renda. A própria Angela
achava os americanos uma raça estranha. Ela lembrava do
primeiro a vir para Los Angeles há doze anos, quando a
Califórnia ainda estava sob o domínio espanhol. "Pirata Joe"
fora capturado durante uma batida da polícia na costa de
Monterrey. Quando souberam que ele era um carpinteiro
talentoso, foi poupado da prisão e enviado a Los Angeles para
supervisionar a construção da nova igreja na Plaza. Angela
estava com quarenta e dois anos na época e vislumbrara
cabelos louros pela primeira vez na vida. Todos em volta da
construção, enquanto os índios transportavam madeira das
montanhas e o estrangeiro alto e louro dava ordens. Quando
a igreja ficou pronta, Joseph Chapman se casou com uma
senorita mexicana e estabeleceu residência em Los Angeles.
Sete anos mais tarde, depois que a Espanha abriu mão do
controle da Califórnia, um montanhês chamado Jedediah
Smith apre- sentou-se na Missão de San Gabriel, mas não foi
preso porque então não era mais ilegal para estrangeiros
entrar na Califórnia.
Há oito anos, quando o povo da Califórnia ficou sabendo que
o México se separara da Espanha, eles juraram obediência e
fidelidade ao governo mexicano, que imediatamente abriu a
província para o comércio internacional com os navios
ingleses e americanos. Couro e sebo passaram a ser a
economia principal. Couro de novilhos do Rancho Paloma
era embarcado para a Nova Inglaterra onde era transformado
em selas, arreios e sapatos, e o sebo do Rancho Paloma era
derretido para fazer velas. O rápido progresso do novo
comércio estava trazendo mais e mais americanos para a
Califórnia, de modo que a visão de um americano nas ruas de
Los Angeles deixou de ser tão estranha.
Angela imaginava o que sua mãe, Doria Luisa, que
descansava numa sepultura no cemitério da família, pensaria
dessas mudanças. Luisa morrera no dia em que o México se
separara da Espanha, como se os seus próprios laços com a
terra amada tivessem sido cortados irreparavelmente e ela
não quisesse mais viver. Luisa estava com sessenta e nove
anos. Lorenzo também estava enterrado lá, morto em uma
disputa de jogo.
Angela observou o capitão Goodside apear do cavalo e tirar o
chapéu. Como o Pirata Joe, seus cabelos eram da cor de trigo
maduro. Então ela disse a Marina:
— Pablo virá — disse ela, quando viu a expressão no rosto da
filha. A pobre moça esperara durante toda a manhã pelo
noivo, mas em vez dele só estranhos passaram pelo portão.
— Ah, mamá — suspirou Marina, afastando-se da janela para
sair impulsivamente do aposento.
Depois de trocar um rápido olhar com Carlotta, que estava
supervisionando a preparação de dulce de calabaza — doce
de abóbora — e lembrava de como era ter dezoito anos e não
ter paciência, Angela saiu da cozinha e entrou na colunata
externa, onde arcadas graciosas davam para jardins cheios de
flores, arbustos e os galhos debruçados de salgueiros e
aroeiras. Ela parou para inspecionar uma fileira de cadeiras
escondidas sob um cobertor protetor.
Um presente surpresa para Marina e Pablo, elas eram um
jogo antigo de cadeiras de braços estofadas feitas em 1736 no
mesmo estilo do jogo de cadeiras feito para o Palácio Real em
Madri. Influenciadas pelo estilo francês Luís V, as peças
eram revestidas em jacarandá com incrustação de ébano e
estofadas em seda carmim, bordadas com fios de ouro e
adornadas com franjas douradas. Dona Luisa as trouxera para
o México em 1773 e depois as transportara em carroções
junto com os outros móveis para a Alta Califórnia depois de
casar-se com Don Lorenzo. Elas foram declaradas as peças
mais requintadas na província e agora seriam passadas para
Marina.
Enquanto Angela seguia pela arcada, espiou três homens nos
estábulos, admirando um cavalo que Navarro comprara
recentemente. Embora na casa dos sessenta e com cabelos
brancos, Navarro ainda era robusto como um touro. Angela
viu que seu futuro genro estava com ele, Pablo com o rosto
de menino, baixo e com tendência a engordar. Ela imaginou
se Marina sabia que ele chegara. Então viu que o terceiro
homem era o capitão Goodside, um pouco mais alto que
Navarro, seu curioso chapéu de abas largas sombreando suas
feições.
Enquanto observava os homens, Angela tentou ler o humor
de Navarro. Ele cancelara um casamento antes, por capricho,
no último minuto, fazendo seu filho arder em fúria silenciosa
e a família da noiva ameaçar violência. Mas Angela não
detectou correntezas escuras no comportamento do marido.
De fato, Pablo Quihones o estava fazendo rir.
Então ela viu Marina, escondida na sombra de um
caramanchão, observando os homens. Angela ficou tensa.
Ela sabia que sua filha impulsiva queria correr para Pablo,
mas haveria muito tempo para isso depois do casamento.
Tenha cuidado, minha criança, avisou ela silenciosamente.
Não deixe seu pai ver você.
Havia qualquer coisa em Navarro que detestava a felicidade
de outras pessoas, mesmo a dos próprios filhos. Muita alegria
o desagradava.
Angela notou que o ianque estava com a caixa fina e
retangular novamente. Ele sempre a levava consigo,
pendurada sobre o ombro por uma tira de couro. O que havia
de tão importante para que ele não pudesse separar-se dela?
Embora os americanos fossem permitidos na Califórnia
agora, ela ainda não confiava neles. Depois de anos de
comércio ilegal, um homem não se tornava honesto da noite
para o dia.
Quando estava prestes a entrar na casa, seus olhos
perceberam uma figura vindo pela trilha da Velha Estrada.
Reconhecível pelo hábito cinza, franciscano, ele era o padre
da Missão, chegando em sua mula. E quando viu que ele
diminuía a marcha do animal e olhava para os rostos dos
vaqueros, ela soube por que ele viera. Alguns de seus índios
deviam ter fugido.
Era fácil encontrar trabalhadores dispostos para os quatro mil
acres do Rancho Paloma. Os índios preferiam a vida nos
ranchos àquela que levavam nas Missões, e muitos estavam
até começando a trocar as Missões pela cidade. Havia agora
várias centenas de residentes no povoado de Los Angeles,
muitos deles precisavam de serviçais e de empregados
contratados. Para impedir que a Missão dos padres perdesse
seus índios — pois quem sobraria para cuidar do gado e dos
vinhedos que pertenciam à Igreja, e tecer os tecidos e fazer
as velas de que os padres precisavam? —, o governador da
Califórnia prescreveu dez chibatadas para qualquer índio
batizado pego na cidade sem permissão dos padres.
Enquanto olhava o visitante desmontar, Angela imaginava se
ele e seus irmãos religiosos não estavam travando uma
batalha perdida. Comentava-se que os oficiais mexicanos iam
abolir o sistema de Missões, que os espanhóis reverenciaram,
e vender a terra para grupos privados. Para onde então iriam
os índios? A maioria vivera nas Missões a vida toda e não
conhecia outro modo de vida. Embora, Angela tinha de
admitir, ela realmente não entendesse os índios. Eles eram
apenas figuras que se misturavam à paisagem — homens com
sombreros e mantas, mulheres com saias longas e xales.
Contudo ainda havia lutas brutais entre califomios e índios
por causa de terra. Recentemente um rancho em San Diego
fora atacado, as filhas raptadas e nunca mais vistas; houve
uma revolta chumash em Santa Barbara, e os índios
temeculas entraram num frenesi e saquearam San Bernar-
dino.
Ela viu pelo modo como o padre olhava o rosto de cada
índio, que ele estava procurando um em particular.
Protegendo os olhos contra a luz do sol, ela examinou os
campos onde os homens estavam arrancando mato e
espalhando fertilizante, desviando os olhos para os currais e
abrigos dos animais, leiteria e celeiro, curtume e lavanderia
— todos repletos de atividade humana. Quando chegou à
prensagem de azeitonas, ela observou o velho homem que
estava pacientemente estimulando o cavalo a dar voltas e
voltas enquanto a grande pedra esmagava as azeitonas
extraindo polpa e óleo. Curvado e de cabelos brancos, não
lhe parecia familiar. E quando ele saiu da sombra para a luz
do sol, ela viu suas distintas feições indígenas.
Antes que ela pudesse reagir, o velho homem levantou os
olhos e viu o padre. Ficou paralisado. Depois saiu correndo.
O padre, levantando a túnica para revelar pés nus em
sandálias, deu perseguição a ele, gritando para o homem
parar, e imediatamente um grupo de trabalhadores, membros
da família e visitantes correram para ver o que deixara o
padre em tal estado.
Angela foi a primeira a alcançá-los, o padre tendo
encurralado o índio sob a arcada que dava para a lavanderia.
O velho homem caíra de joelhos e estava levantando as mãos
entrelaçadas, implorando ao padre.
— Por favor, padre! — disse Angela, ofegante. — Não seja
muito duro com ele.
— Este homem é um cristão batizado, senhora. Ele pertence
à Missão — disse o padre. Depois abrandou. — Eles são
como crianças, senhora, e precisam ser corrigidos. Quando a
senhora criou seus filhos, não os punia quando precisavam?
— Mas este homem é velho, padre, e está apavorado.
Ela levou um susto quando o velho homem começou a puxar
sua saia freneticamente, implorando por ajuda numa mistura
de espanhol e língua nativa. Estava claramente apavorado.
— Talvez, padre, ele possa voltar para sua aldeia.
O padre balançou a cabeça tristemente.
— Quando a família Sepúlveda recebeu a concessão das terras
de San Vicente e Santa Mónica, eles limparam as terras para
pastagens. Este homem foi encontrado catando lixo entre as
ruínas de uma aldeia deserta perto do contraforte. Ele estava
nu, senhora, e quase morrendo de inanição. Ele foi trazido
para nós a fim de que pudéssemos alimentá-lo, vesti-lo e
trazê-lo para Cristo.
Angela olhou para o padre e pensou: ele não é um homem
mau.
Depois ela baixou os olhos para o homem e pensou: ele só
quer ser livre.
Ocorreu a Angela que ela tinha o poder para salvá-lo. Se
dissesse ao padre que queria que o velho homem ficasse em
suas terras, ele a ouviria. Afinal, era a esposa de Juan
Navarro.
Mas no minuto seguinte viu Navarro se aproximando, uma
fúria em seu jeito de andar. Ele já avaliara a situação e o papel
de Angela nela. Dando permissão ao padre para levar o índio
embora, Navarro rosnou para todos se dispersarem. Quando
ficaram só por um instante sob a arcada, Pablo tendo saído
com Marina e o americano retornado diplomaticamente para
o estábulo, Navarro agarrou fortemente o braço de Angela e
disse em voz baixa:
— Eu tomo as decisões neste rancho e não você. Você me
humilhou.

Quando Marina atravessou o jardim silenciosamente, seu
corpo esguio projetando uma sombra alta à luz da lua, sem
fazer barulho ela seguiu tateando o muro, tomando cuidado
para não pisar em falso no chão irregular ou tropeçar numa
ferramenta. Marina tinha medo só de pensar em qual seria
sua punição caso o pai descobrisse o que ela estava fazendo.
Mas Marina não estava raciocinando com a cabeça, era seu
coração quem a estava tirando de casa àquela hora, seu corpo
jovem febril de amor, sua mente atordoada com pensa-
mentos sobre a cerimônia da noite seguinte e sobre o quarto
nupcial depois.
Ela contornou o matadouro onde, de dia, as vacas eram
esfoladas e desossadas, as peles limpas e esticadas para secar
ao sol. A noite o cheiro não era tão ruim e as moscas estavam
dormindo. A única evidência dos atos sangrentos do dia
eram as grandes pilhas de couro seco — "dólares americanos"
— esperando para serem levadas para os porões dos navios
comerciais. Do lado de fora do matadouro havia enormes
potes de ferro onde a gordura dos bezerros era derretida para
fazer velas e sabão, e estocada como sebo em grandes sacos
de couro para ser negociada com os navios estrangeiros.
Marina entrou rapidamente no abrigo para sebo, onde
centenas de velas longas e finas pendiam em filas nas paredes
e do teto. No centro do abrigo ficava o deselegante pote de
vela, os braços de madeira enrolados com barbante recoberto
com várias camadas de sebo. A engenhoca estava em silêncio
agora, mas durante o dia seu chiado nunca cessava enquanto,
manipulada por um índio, ela girava, mergulhava, girava,
mergulhava, produzindo centenas de velas de cada vez.
Marina achou irônico que um lugar com tantas velas fosse
tão escuro.
— Você está aí? — sussurrou ela no escuro. — Você veio,
meu amor?
Saltos de botas rasparam no chão de pedra. Logo depois um
fósforo acendeu e depois uma lanterna brilhou numa chama
suave.
Marina prendeu a respiração quando viu quem estava lá — o
americano, Daniel Goodside. Ela ficou momentaneamente
espantada com a visão dele — a luz fraca projetando uma
auréola em torno dos cabelos louros, o azul dos olhos tão
claro como o céu do meio-dia, os lábios entreabertos como
se estivesse surpreso. E então ela atravessou voando o
pequeno espaço entre eles e atirou-se nos braços dele,
recebendo seu beijo e o abraçando desesperadamente como
se nunca mais quisesse deixá-lo.
Marina nunca esqueceria o dia, há três meses, quando saíra
cavalgando e encontrara um estranho nos limites da
propriedade, sentado num banco e desenhando num
caderno grande. O paletó estava bem dobrado sobre a grama,
a camisa branca brilhava ao sol, e um grande chapéu de palha
ocultava seu rosto até que, ouvindo o barulho de sua
chegada, ele virou-se, levantou-se bem devagar e tirou
rapidamente o chapéu para revelar cabelos da cor de trigo
maduro e olhos azuis como centáureas. E a barba! Era como
lã, cortada rente e emoldurando um sorriso secreto. A
gravata estava frouxa, revelando um pescoço bronzeado, e o
tecido das calças abaixo dos joelhos, pressionando as pernas
fortes e musculosas. Ele parecia um deus jovem.
E então ele a saudara em espanhol! Marina pensara que os
ianques falavam apenas inglês. E com que facilidade ele
falava sua língua, e quase sem sotaque. Mais do que um deus
— um mágico, um mago. Um silêncio magnético os prendeu
naquele dia num momento sem palavras enquanto a brisa de
verão despenteava os cabelos dourados dele, e Marina sentiu
o coração expandir dentro do peito como uma ipoméia se
abrindo ao sol. E então o estranho disse:
— Perdoe-me por não conseguir desviar os olhos, senorita,
mas quando visitei a vila dos Anjos fiquei imaginando que
anjos seriam estes. Agora eu sei.
Enquanto ela o apertava com mais força agora, aspirando seu
cheiro, sentindo suas mãos fortes, ouvindo o timbre grave de
sua voz ao pressionar os ouvidos contra seu peito, Daniel
estava dizendo:
— O que vamos fazer?
Marina sentiu um soluço parar em sua garganta e ficar lá para
impedi-la de respirar. Durante três meses ela conhecera
alegria e tormento, incertezas e sonhos. Ela pensara que
amava Pablo, e então conhecera Daniel. Mas estava
prometida a Pablo, e o milagre que rogara todas as noites, de
ser dispensada do compromisso, nunca acontecera. E agora
Daniel estava de partida, viajando amanhã.
— Eu morrerei — murmurou ela em seu peito. — Eu não
posso viver sem você.
— Eu também não, querida Marina — disse ele, enquanto lhe
afagava os cabelos e maravilhava-se com o anjo em seus
braços. — Fui chamado por Deus para levar Sua palavra a
terras estrangeiras e vou precisar de sua força e bondade para
ajudar a me guiar nesse caminho difícil. Antes de conhecer
você, eu conhecia o medo. Olhava para o mar e minha alma
tremia com o pensamento de me entregar em mãos
selvagens. E então você, alma boa e gentil, chegou em minha
vida e acalmou-me. Você me lembra diariamente da graça de
Deus e de que nunca estamos sozinhos. Vejo dias de
provações diante de mim e temo que sem você eu falharei.
Durante três meses dourados eles viveram um lindo sonho
juntos, andando de mãos dadas pelos pântanos, onde não
seriam vistos, Daniel falando das maravilhas do mundo,
Marina os vendo através de seus olhos. Quando ele lhe disse
todas as coisas que mostraria a ela, Marina acreditara. Por
algum tempo, eles viveram na fantasia. Mas a realidade era
inevitável, como o seu casamento com Quiriones. E agora o
dia terminara e a fantasia estava no fim.
Marina prendeu a respiração. Ela sabia o que viria a seguir —
palavras proibidas ainda não ditas, mas que Daniel devia dizer
agora.
— Fuja comigo — disse ele. — Seja minha esposa.
O amor caiu sobre ela como uma onda do mar, mas a dor
também, e o medo e a tristeza. Ela não queria mais nada sob
o sol de Deus do que ser a esposa de Daniel e viajar o mundo
com ele. Mas sabia o preço a ser pago por um ato tão egoísta.
Ela afastou-se, detestando deixar o abrigo de seus braços, mas
sabendo que precisava de distância entre eles, por mínima
que fosse, para o que tinha a dizer.
— Não posso ir com você, meu Daniel. Meu pai é um
homem orgulhoso e zangado. Sua ira não conheceria limites
se eu o desafiasse e trouxesse a desonra para a família.
— Mas você estaria longe dele, Marina.
— Não é por mim que temo. Ele puniria minha mãe pela
minha transgressão. Ele a puniria severamente, e pelo resto
da vida dela. Como poderia ser feliz com você, meu Daniel,
sabendo disso?
Ele segurou o rosto dela entre as mãos e murmurou:
— O amor, tão misterioso, nunca pede permissão para
acontecer.
Ele a beijou novamente, com mais paixão, e o corpo dela
respondeu.
— Deus do Céu! — disse ele com voz rouca, sabendo que
haviam chegado a um ponto perigoso. Seria tão fácil. Havia
feno no chão. E ninguém saberia. — Eu não posso —
sussurrou ele em seu ouvido. — Eu não quero que isso
aconteça conosco. Se não podemos ser marido e mulher,
então ficarei satisfeito com seus beijos apenas.
Eles se abraçaram novamente e ouviram dentro da noite os
rosnados pesarosos do urso pardo no cercado, e o barulho
das correntes enquanto ele tentava se libertar.
Marina chorou brandamente por algum tempo, depois
recuou, apartando-se dele completamente, enchendo seus
olhos com ele uma última vez.
— Preciso ir. Meu pai pode nos pegar.
Mas ele segurou seus ombros e disse com paixão:
— Eu estarei na casa de Francisco Marquez até amanhã à
meia-noite, depois disso devo zarpar com a maré. Rezo de
todo coração e alma, minha amada, que você encontre forças
para vir comigo. Mas, se não receber um recado seu, eu
aceitarei isso como a vontade de Deus de que não fomos
feitos para ficarmos juntos. E, se você se casar com
Quinones, eu desejarei a você uma vida longa e feliz com
ele. Eu nunca a esquecerei, e nunca amarei outra como amo
você, minha querida, muito querida Marina.

— Mamá, venha depressa! Tem alguma coisa errada com
Marina. Eu acho que ela está tendo uma de suas crises!
Carlotta não precisou dizer mais nada. Angela saiu voando da
cozinha, onde os empregados enchiam copos de vinho para
os convidados que chegavam. A cerimônia de casamento
estava para começar em uma hora.
Entrando no quarto de Marina ela encontrou a filha deitada
de costas na cama, soluçando desesperadamente. Ela ainda
não vestira o vestido de noiva! Dispensando os outros,
incluindo Carlotta, que estava lá para ajudar Marina a se
vestir, Angela levantou a filha pelos ombros e disse
gentilmente:
— Você está doente, minha filha? Devo mandar vir o
láudano?
— Eu não estou doente, mamá! Eu estou infeliz!
Angela enxugou as lágrimas no rosto de Marina.
— Este devia ser o momento mais feliz de sua vida. Como
pode chorar? Diga-me o que está errado, filha.
Marina atirou-se nos braços da mãe e deixou as palavras
saírem. Angela ouviu a história com espanto. Marina estava
apaixonada pelo americano? Quando tiveram tempo e
oportunidade para se apaixonar?
— Marina — disse ela, severa, levantando a filha e
observando seu rosto para ver se mentia. — Diga-me a
verdade, você esteve sozinha com ele?
— Durante a siesta, quando todos dormiam — respondeu
Marina, baixando a cabeça.
— Você esteve sozinha com um americano?
— Ele é um cavalheiro, mamá! Tudo o que fizemos foi
conversar. E que conversa maravilhosa!
As palavras saíam em profusão, tombando tão rapidamente
de seus lábios que Angela ficou muda.
— Daniel não é um comerciante como outros ianques,
mamá, ele é um explorador. Ele viaja pelo mundo vendo
coisas maravilhosas e lugares desconhecidos. Ele os pinta,
mamá, como registro, um memorial para as várias pessoas
que encontra. Ele me falou de um lugar onde as pessoas
montam em grandes animais com corcovas e de uma terra
onde as pessoas moram em casas feitas de neve.
— Que bobagem, Marina.
— Ah não, mamá! Esses lugares não são inventados, são reais.
E eu quero vê-los. Ah, como gostaria de ir à China e Índia e
Boston! Eu quero beber chá e café, e usar capas e turbantes, e
dançar em torno de uma fogueira e andar de trenó. A
senhora e eu só vimos neve à distância, mamá, nos topos das
montanhas. Mas Daniel andou nela, ele já dormiu nela. —
Marina segurou as mãos da mãe entre as suas, exaltada. —
Daniel descreveu para mim construções tão altas que
desaparecem nas nuvens, igrejas tão grandes como cidades e
palácios com cem aposentos. Ele andou por estradas com
dois mil anos de idade, mamá, e há um rio chamado Nilo
onde há leões gigantes, feitos de pedra, que foram
construídos por seres míticos no começo dos tempos.
Angela não estava entendendo a metade do que a filha estava
descrevendo, mas as palavras não eram importantes. O que a
atordoava era o brilho nos olhos de Marina, a luminescência
da juventude e otimismo, e do desejo pelo conhecimento e
aventura. Uma luz que Angela jamais vira nos próprios olhos
no espelho, nem nos olhos de seus outros filhos.
E então a verdade brutal do que Marina estava dizendo
bateu: o americano queria levar Marina para longe!
— O que há nesses lugares que não temos aqui?
— Mamá, quando a senhora olha para o horizonte, a senhora
não fica imaginando o que há além?
Angela de repente ficou zangada com Goodside por encher a
cabeça da filha com disparates.
— Não há nada além do horizonte. Só existe este lugar, este
mundo, nosso mundo. O que existe além pertence a outros,
não a nós. E aqui que estão nossos corações, onde a alma
deseja ficar.
— A sua alma, mamá, não a minha.
As palavras de Marina bateram nela como um soco, e ela
pensou: Será que sou a única a ouvir poesia nas árvores
quando o vento sussurra por entre elas1 Será que sou a única
cujo coração responde ao chamado do falcão de rabo
vermelho no céu? Será que sou a única que não teme os
terremotos, imaginando que são simplesmente um velho
gigante a dormir, se virando na cama?
— Olhe, mamá — disse Marina, ajoelhando-se no chão e
puxando uma caixa de debaixo da cama. Ela levantou grandes
quadrados de folhas pesadas da caixa, onde Angela pôde ver
pinturas coloridas. — Isto se chama aquarela, mamá. Veja a
maravilha que Daniel criou.
Angela ficou admirada. O americano capturara não só o
aparência da Califórnia em suas pinturas, mas também as
sensações. Enquanto passava de vista para vista, ela podia
sentir o cheiro do calor do verão, ouvir o zumbido dos
insetos, provar a secura do ar. Ele pintara um par de
codornas, os tufos de penas nas cabeças inclinados um para o
outro. E a tranqüilidade do Pacífico azul, velas brancas no
horizonte. Pinturas suaves, pensou ela, executadas por um
coração que ama.
— Daniel diz que a luz do sol na Califórnia é diferente de
qualquer lugar do mundo. Ele diz que ela é mais nítida e
pura, e as cores são vivas — disse Marina, acrescentando
suavemente: — Meu Daniel é um artista.
Angela olhou para ela, assustada. Meu Daniel? Quando
ouviram os músicos afinando os instrumentos, e vozes se
elevando em saudações à medida que chegavam os
convidados, Angela sentiu um terrível pressentimento
penetrá-la.
— Mas pense em Pablo. Ele é um bom rapaz. Você terá uma
boa vida com ele.
Angela ouviu a nota de pânico em suas palavras e percebeu
que seu coração estava acelerado. Se Navarro ouvisse esta...
— Sim, mamá, eu sei — disse Marina, baixando a cabeça. —
Eu vou me casar com Pablo.
— Você vai? Depois de tudo isso?
Os olhos erguidos de Marina nadavam em lágrimas.
— Eu vou me casar com Pablo porque eu prometi que me
casaria. Não vou desonrar a senhora, mamá.
— Mas... você não será feliz.
— Meu coração sempre será de Daniel — disse Marina,
inclinando a cabeça. — Mas Pablo é um bom homem e eu
tentarei ser uma boa esposa para ele.
Angela contemplou a cabeça inclinada da filha e admirou
que este espírito belo e forte tivesse nascido dela e Navarro.
— Então você precisa se vestir, antes que os outros comecem
a estranhar.
Quando Angela empurrou para o lado a caixa de costura que
fora trazida para alterações de última hora no vestido de
noiva, lembranças há muito passadas vieram à sua mente — a
mãe fazendo as malas para a viagem para a Espanha, e como
ficara destruída quando não puderam ir. Agora que Angela
estava lembrando, talvez a viagem não fosse só para o
benefício de Dona Luisa afinal. Na época, com dezesseis
anos e vivendo num mundo à parte, Angela pensara que a
viagem era para a mãe. Mas ela não dissera: "Eu quero que
você tenha uma vida melhor"? Como Luisa ficara cada vez
mais retraída depois disso, como se sua alma estivesse
encolhendo, como a chama de uma vela ficando cada vez
menor até se apagar.
Angela compreendeu agora em choque que a mãe nunca
planejara voltar da Espanha. Mas desertar um marido era
contra a lei dos homens e da Igreja. Ela seria excomungada,
uma mulher devota como Luisa. Talvez aprisionada. Ela
estava fazendo isso por mim.
E então outra recordação: Navarro zombando do nome que
Angela escolhera para a filha. "Marina? Você dá a nossa filha
o nome de uma frota de navios?"
Mas para ela Marina era mais do que uma simples palavra
espanhola para marinha. Ela também pertencia ao oceano, ao
mar, e conjurava imagens de criaturas marinhas nadando em
liberdade. E que irônico que Marina fosse apaixonar-se por
um capitão do mar! Talvez o sonho fora uma profecia.
Ela continuou olhando para filha de cabeça baixa os ombros
caídos, a atitude de resignação. Foi essa a atitude do velho
índio quando foi embora com o padre. E pelas venezianas
abertas, além da música e do riso, Angela podia ouvir os
bramidos do urso pardo, que não pedira para ser trazido para
cá, rosnando lamentavelmente em sua jaula para ser
libertado.
— Esse Daniel — disse ela quando seu coração começou a
partir em dois —, ele é protestante?
Marina levantou a cabeça, a luz brilhando novamente em
seus olhos.
— Ele é um homem bom e devotado, mamá. Ele quer levar a
palavra de Deus para as pessoas que nunca ouviram falar de
Jesus Cristo. Mas — disse ela, franzindo as sobrancelhas —
por que pergunta?
Angela ouviu os sons alegres passarem pelas venezianas,
sentiu o calor do entardecer, balsâmico e doce, e soube que
nos anos vindouros ela lembraria de cada pequeno detalhe
deste momento: os músicos tocando uma nota errada, o
estouro de uma bombinha, a risada estrondosa do pai de
Pablo, como o pequeno quadro de Santa Teresa, pendurado
na parede, piscava à luz da vela.
— Você não pode ir à cidade — disse ela finalmente. — Você
precisa arranjar um lugar para encontrar Daniel.
Marina olhou para ela, intrigada.
— Do que a senhora está falando?
— Onde está Daniel Goodside? Você pode mandar um recado
para ele, antes de ele partir à meia-noite?
— Eu não vou — disse Marina com firmeza, embora lágrimas
transbordassem de seus olhos, e a voz fosse cortada por um
soluço.
— Filha, você tem algo raro e belo — disse Angela,
segurando os ombros dela. — Tão poucos de nós encontram
amor igual na vida, você não pode deixar este amor escapar
por entre os dedos.
Angela suspeitava que tal brasa da paixão pudesse até brilhar
em alguma parte de seu coração, mas nenhum homem
surgira para avivá-la, e talvez nunca surgisse. Mas Marina
devia ter a chance de conhecer um amor profundo e
duradouro.
Marina evitou os olhos dela.
— Eu não vou — disse ela, suavemente.
— Mas por quê? Certamente ficará infeliz se deixar Daniel
partir.
Marina olhou de frente para a mãe, e Angela viu o medo e o
pesar nos olhos dela.
— O que foi, filha? O que não está me dizendo?
— Eu não posso deixá-la, mamá.
Angela olhou confusa para ela.
— Papai — disse Marina. — Eu não posso deixá-la sozinha
com ele.
As mãos de Angela voaram para a boca.
— O que está me dizendo, filha?
— Mamá, eu sei. Sobre a senhora e papai. Como ela a trata.
— Você não sabe o que está dizendo! — disse Angela,
sentindo uma dor atravessá-la, como se o corpo tivesse
partido em dois. Deus do céu, não permita. Revelar meu
segredo que foi guardado durante todos estes anos!
Mas ela viu nos olhos da filha a terrível verdade. Marina
sabia dos abusos de Navarro. Talvez os outros também
soubessem. A súbita vergonha e humilhação fez Angela
apertar o estômago e afastar-se.
— Mamá — chamou Marina, estendendo a mão.
Quando Angela virou-se foi para mostrar um rosto pálido
para a filha, o queixo erguido, a dor mascarada atrás dos
olhos, como aprendera a fazer durante tantos anos.
— Então, esta é uma razão a mais para você ir — disse ela,
enquanto lutava contra as lágrimas. — Toda a infelicidade
que conheci desde o dia em que me casei com seu pai ficaria
mil vezes pior se você ficasse agora. Só com a sua partida,
com o homem que você ama, é que conseguirei suportar.
Marina caiu nos braços da mãe e ambas choraram baixinho,
mesmo as paredes sendo grossas e ninguém podendo ouvi-
las. Elas derramaram lágrimas nos ombros uma da outra e
ficaram abraçadas pelo que sabiam ser a última vez. Então
Angela desvencilhou-se e disse:
— Pode enviar um recado para Daniel encontrar você em
algum lugar?
— Ele está na casa de Francisco Marquez. Ele disse que
esperaria por um recado meu, mas que deveria partir à meia-
noite.
— Então precisamos agir depressa, não temos muito tempo
— disse Angela, indo até a porta que dava para a colunata
externa e vigiando. Como esperara, Carlotta estava
aguardando lá fora, andando de um lado para o outro,
nervosa. Gesticulando para que ela entrasse, Angela fechou a
porta e explicou rapidamente a mudança de planos.
— Santa Maria! — murmurou Carlotta, olhando para a irmã
mais nova com admiração.
— Preciso que você encontre alguém para levar um recado à
casa de Francisco Marquez — disse Angela, enquanto se
dirigia para a escrivaninha de Marina e pegava papel e pena.
— É importante que este bilhete seja entregue antes da meia-
noite — disse ela, dobrando o bilhete, lacrando e entregando
a Carlotta. — Em quem podemos confiar?
Empolgada com o romance e a intriga do momento, Carlotta
disse com um sorriso apaixonado:
— Não há ninguém melhor do que meu próprio marido,
Jacques! D'Arcy é o primeiro a se oferecer para cavalgar com
uma carta de amor para um amante proibido, e o último a
contar um segredo!
— Então ande logo, e não deixe ninguém ver você. Depois
que D'Arcy sair, diga a todos que Marina está com dor de
cabeça e que a cerimônia será adiada.
Depois que Carlotta saiu, Angela voltou à escrivaninha.
— Conheço uma caverna onde você e Daniel podem se
encontrar. — Ela fez o desenho apressado de um mapa em
outro pedaço de papel. — A caverna fica em um cânion,
onde você encontrará uma formação de rochas com estes
símbolos esculpidos — disse ela, entregando o papel a
Marina.
A moça olhou para ele, maravilhada.
—- Como sabe desse lugar, mãe?
— Estive lá há anos, quando eu também estava com medo.
E... antes disso, eu acho, embora não consiga me lembrar.
Infelizmente não tenho dinheiro para lhe dar, mas você
deve levar isto. — Ela enfiou a mão num bolso nas dobras do
vestido. — Sua avó, que Deus proteja sua alma, me deu isto
na noite em que morreu. Ela disse que era muito especial,
um amuleto da sorte.
Angela ficou em silêncio. Na noite em que sua mãe morreu,
Doria Luisa disse coisas estranhas. Ela parecia estar com
remorso, penitente até, sobre alguma coisa que Angela não
conseguia entender. Será que tinha algo a ver com os
estranhos sonhos que Angela tivera a vida toda — a caverna
com a pintura misteriosa e um homem selvagem descendo a
montanha para ser morto com um tiro de rifle? Será que
estas coisas realmente aconteceram ou eram fantasias de uma
criança, histórias que ouvira?
Ela fechou os dedos de Marina sobre a pedra mística e disse:
— Vá agora. Você ficará segura lá até Daniel chegar.
Elas se abraçaram rapidamente e limparam as lágrimas do
rosto, mas quando Marina estava fechando a capa e pegando
as luvas a porta se abriu de supetão para revelar Navarro de
pé como um deus colérico.
— O que é isso? Ouvi por acaso Carlotta dizer a D'Arcy que
havia algo errado com Marina.
Então ele viu a capa e a mala de viagem.
— Você está louca? — vociferou ele.
— Ela não vai se casar com Quiriones — disse Angela.
— Cale a boca, mulher. Eu lido com você mais tarde — disse
ele, virando-se para Marina. — Ponha o vestido de noiva!
— Eu não posso, papá.
— Dios mio, eu não criei você para isso!
— Você não a criou — disse Angela. — Eu a criei. E eu digo
que ela pode partir.
O braço dele desceu tão rápido que Angela nem viu, e ele
bateu nela com tanta força que quase a lançou do outro lado
do quarto. Depois foi atrás de Marina.
Enquanto Angela se levantava com dificuldade, balançando a
cabeça para clarear os sentidos, seus olhos viram a caixa de
costura sobre a penteadeira. Angela agiu rapidamente. A
tesoura estava em sua mão, levantando bem alto no ar,
enterrando profundamente nas costas de Navarro.
Ele rugiu como o urso pardo, virou-se lentamente e
pestanejou para Angela em completa surpresa. Depois caiu
para a frente, desabando no chão de bruços, imóvel e mudo.
As duas mulheres ficaram olhando para ele por algum tempo,
depois Marina ficou de joelhos e pôs a mão no pescoço do
pai. Ela olhou para a mãe com os olhos arregalados.
— Ele está morto — murmurou.
Ajoelhando ao seu lado, Angela, sem dizer uma palavra,
procurou nos bolsos de Navarro, encontrando um punhado
de moedas, que colocou na bolsa de Marina. Então,
entregando a bolsa para a filha, ela disse:
— Vá agora. Depressa. Não deixe ninguém vê-la. Quando os
Quiriones souberem disto, eles irão atrás de você.
— Mas mamá...
Angela puxou a filha até a porta que dava para o pátio
interno, por onde Marina podia escapar sem ser vista.
— Vá, e se certifique de que eles não encontrem vocês —
disse ela. E, com lágrimas nos olhos, acrescentou: — Você
nunca mais poderá voltar aqui, pois uma vez que coloque o
pé nessa estrada, deve segui-la até o fim. Seus irmãos, e
possivelmente os Quiriones, dirão que você desonrou nossas
famílias. Mas eu digo que é pior desonrar o próprio coração.
Quando estiver em segurança, minha filha, mande recado
para Carlotta no México e ela encontrará um modo de me
avisar. Mas o seu paradeiro não deve ser conhecido, não
durante muito tempo. Agora vá. Vá com Deus e com o meu
amor.
Marina parou para ver a mãe puxar uma cadeira para perto do
corpo de Navarro.
— O que a senhora vai fazer?
— Eu vou esperar aqui até estar certa de que você está segura
— disse ela. E sentou-se na cadeira, as mãos cruzadas sobre o
colo, para esperar.

Marina galopou como o vento, seu caminho guiado pela lua
cheia, seu coração galopando em cadência com os cascos do
cavalo, enquanto rezava freneticamente para que Daniel
recebesse seu recado e viesse encontrá-la.
Seu pai morto no chão! E mamá, sentada ao lado dele,
implacavelmente esperando seu destino.
Quando se aproximou do fim de El Camino Viejo, seguiu as
instruções da mãe até encontrar o pequeno cânion e,
escondida atrás das grandes pedras, a caverna. Lá dentro,
enquanto esperava por Daniel, sentou-se perto da entrada,
numa poça de luz sobrenatural, feita pela lua, e contou o
dinheiro no colo. Moedas tiradas dos bolsos de papai —
pesos, reales e uma moeda americana de um centavo. Seus
dedos tremiam de medo e seu coração saltava a cada barulho.
Um vento frio soprou pelo cânion e entrou na caverna como
o hálito gelado de um fantasma.
As horas passaram e o medo de Marina aumentou. Que horas
seriam? Será que D'Arcy tinha conseguido chegar à casa de
Marquez? Ou fora impedido?
De repente — cascos batendo sobre o cascalho lá fora.
Marina prendeu a respiração.
Um cavaleiro desmontou.
Colocando as moedas apressadamente na bolsa, ela se
levantou, uma moeda caindo no chão junto com a pedra
mística.
— Daniel? — chamou ela. — É você?

Capítulo Treze

Escuridão.
Érica não sabia dizer se estava com os olhos abertos ou
fechados. Onde estava? Tentou se lembrar, tentou avaliar a
situação. A cabeça estava meio atordoada e havia uma
pressão no peito dificultando a respiração. As mãos doíam.
Compreendeu, depois de um momento, que fora jogada ao
chão. Depois se lembrou: ela estava na caverna. Houve uma
explosão, um desmoronamento. Luke soterrado no entulho.
E ela começara a cavar freneticamente uma saída. Por isso as
mãos estavam doendo. Cortara e esfolara os dedos. Quando
tempo ficara desacordada? O ar estava perigosamente
rarefeito. Quanto mais havia? Qual era a proximidade do
pessoal de resgate que certamente estava cavando do outro
lado da entrada da caverna?
Tentou se sentar, mas estava muito fraca. Então ficou no
chão, o cheiro de terra e poeira enchendo suas narinas.
— Socorro... — murmurou ela, mas havia pouco ar em seus
pulmões.
De repente Érica viu alguém de pé sobre ela, lábios
enrugados e apontando um dedo de repreensão para ela. Sra.
Manion. Sua professora do quarto ano. O que ela estava
fazendo aqui na caverna? Eu devo estar delirando. Ou minha
vida está passando diante dos meus olhos? Mas isso não
acontece só com as pessoas que se afogam? Outros rostos
juntaram-se ao da professora, personagens do passado de
Érica, pessoas que foram tanto reais quanto imaginárias. Elas
estavam tentando lhe dizer alguma coisa. E então ela
desmaiou.

Quando Érica recobrou a consciência, ouviu atentamente.
Tudo em volta estava em completo silêncio. Ninguém estava
tentando tirá-la dali? Será que haviam desistido?
Mais rostos tomaram forma, fantasmagóricos, acenando. —
Não... — murmurou ela, pensando que eles tinham vindo
para levá-la para o mundo dos mortos. Ou a estavam levando
para outro lugar? Para o passado...
O nome dele era Chip Masters e ele era um dos garotos
malvados do Colégio Roseda. Quando convidou Érica e sua
amiga para dar um passeio com ele e outros garotos no carro
novo do pai, como ela poderia resistir? Aos dezesseis anos,
Érica lutava contra as regras severas do lar para garotas onde
vivia. Chip era misterioso e aventureiro.
Havia cerveja no carro. Embora sem gostar do sabor, Érica
tomou alguns goles, para se igualar à turma. Eles revezavam
na direção — Ventura, White Oak, Sherman Way. Entraram
na auto-estrada. Saíram na Studio City. Foi durante a vez de
Érica ao volante que um carro da polícia ligou a sirene e
ordenou que parasse. Érica ficou amedrontada de repente.
Ela não tinha carteira de motorista. E então, como um
relâmpago, os outros jovens saíram do carro e correram
enquanto Érica, confusa, ficou no carro.
Na delegacia tentou convencer os policiais de que não sabia
que o carro era roubado. Como conseguiu as chaves?,
perguntaram eles. De quem ela pensava que o carro era? Mas
Érica aprendera em grupos e lares de adoção o código de
ética dos adolescentes que ditava nunca delatar os amigos.
Ela foi acusada de roubo de carro e enviada para o Juizado de
Menores até o julgamento. Lá encontrou jovens
delinqüentes que lhe contaram histórias sobre a Prisão para
Jovens da Califórnia. "Você é bonita e branca. Acho bom
ficar de olho quando estiver no chuveiro."

Estar no tribunal não era uma experiência nova para Érica.
Como tutelanda do Estado, sempre que seu status mudava,
ela tinha de enfren- tar um juiz na Vara de Sucessão de
Órfãos. Exceto que agora ela estava na Vara de Execução
Criminal Juvenil, e, se a julgassem culpada e a mandassem
para a PJC, então "estava frita", como advertiram os jovens
do Juizado de Menores.
Era setembro, o pior mês para estar em San Fernando Valley,
quando o calor e uma mistura de nevoeiro e fumaça estavam
no máximo, e Érica estava mais amedrontada e depressiva do
que podia lembrar. Não só Chip Masters e os outros não se
apresentaram em sua defesa, a mulher que dirigia o abrigo
declarou que não tolerava garotas atrevidas e recusou-se a
oferecer um depoimento de bom caráter para Érica. Ela
estava mais sozinha do que jamais estivera na vida e
enfrentando uma dura sentença atrás das grades.
Érica estava em um dos corredores no Tribunal Superior
esperando sua causa ser chamada. A audiência era para
determinar se ela devia ser julgada como uma adolescente ou
como uma pessoa adulta. Um garoto passou por uma senhora
idosa e arrancou a bolsa de seu braço. Outros foram socorrê-
la, ajudando-a a se levantar, levando-a para o elevador. Érica,
sentada no banco, viu o porta-moedas que deslizara para
debaixo de uma cadeira. Ela o pegou, olhou para o dinheiro
lá dentro, depois correu atrás da senhora, alcançando-a logo
antes de as portas do elevador se fecharem.
O resultado da audiência foi desastroso. O juiz determinou
que Érica era madura e experiente e portanto devia ser
julgada como uma adulta. Quando sua assistente social a
estava conduzindo para fora da sala de tribunal, Érica sentiu-
se mal de repente. Ela foi ao banheiro enquanto a assistente
social esperava no corredor. E foi naquele banheiro de
azulejos brancos que cheirava a desinfetante, enquanto Érica
estava chorando desesperada e pensando que sua vida
chegara ao fim — pois certamente, já que ninguém
acreditava em sua história, ela seria mandada para a prisão
acusada de delito grave —, que uma mulher bem-vestida
carregando uma pasta entrou e lhe perguntou o que havia
acontecido. Érica contou sua história e, para sua surpresa, a
mulher disse que ajudaria. "Eu vi você devolvendo o
dinheiro daquela senhora esta manhã. Você poderia ter fica-
do com ele. Ninguém estava olhando para você. Você não
me viu do outro lado da banca de jornais. Isso me diz algo
sobre seu caráter. Uma moça que devolve uma bolsa cheia de
dinheiro não vai roubar um carro."
A mulher vinha a ser uma advogada bem-relacionada com o
juiz. Ela levou Érica diretamente para a sala de tribunal e
explicou aos homens da corte que esta menor fora
representada por um corpo de advogados e portanto obtivera
representação inadequada. Ela pediu para ser apontada como
tutora ad litem e pediu uma segunda audiência imediata para
a jovem. O juiz olhou para Érica e disse:
— Essa pessoa mostrou interesse por você. Você está
confortável com isso!
— Sim.
— Então vou revogar minha ordem anterior, aponto esta
mulher como sua tutora ad litem e refiro você de volta para
o Juizado de Menores. Está recebendo uma última chance,
senhorita. Espero que compreenda como está tendo sorte.

Quando Érica voltou a recobrar os sentidos, ouviu o silêncio
sobrenatural. Será que o pessoal de resgate tinha desistido?
Será que achavam que fora soterrada pelo desmoronamento?
Sentiu algo na mão, duro e parecendo pedra. Como isto
chegara ali e por que ela o segurava com tanta força?
E então: Sons! Batidas. Escavações. Vozes abafadas.
— Sim... — murmurou, a garganta seca. — Eu estou aqui...
não parem...
-— Vamos! — gritou Jared. — Depressa! Ela está ficando
sem ar!
Érica estava presa na caverna por quase oito horas.
As turmas cavavam loucamente o entulho e a terra que
fecharam a entrada da caverna. Eles usavam pás, colheres de
pedreiros e mãos vazias. Paramédicos estavam a postos.
— Esperem! — disse Jared, levantando a mão para pedir
silêncio. — Acho que ouvi...
Um som fraco do outro lado do desmoronamento.
—- Olá, alguém pode me ouvir?
— E Érica! Ela está viva! Continuem cavando!
Finalmente: uma pequena abertura na terra. E depois Érica
chamando sem força.
— Pode me ver? Jared, é você?
Ele atacou a terra até ter uma abertura grande o bastante para
alcançá-la e tirá-la de lá. Ela estava muito trêmula e coberta
de terra.
— Luke! Luke está machucado!
— Ele está bem. Ele conseguiu fugir antes que o
desmoronamento o pegasse. Mas e você? Você está bem,
Érica?
— Sim, estou — disse ela fracamente. Ela afrouxou os dedos e
olhou com surpresa para a pequena estátua cor-de-rosa que
estivera segurando. — Eu estava cavando para sair... eu não
sei em que nível isto estava — isto é asteca? Como um deus
asteca veio parar tão ao norte...
De repente a boca de Jared estava na sua em um beijo
profundo, de tirar o fôlego. Érica agarrou-se nele por um
momento, depois ficou mole.
-— Você está bem? — repetiu ele.
— Ah, sim. Eu estou bem — disse ela.
E desmaiou.

CAPÍTULO QUATORZE

ANGÉLIQUE
1850 da era cristã

Havia leilão de mulheres. Novamente.
Seth Hopkins achava essa prática revoltante. A escravidão
devia ser ilegal na Califórnia, porém as autoridades de San
Francisco não podiam fazer nada sobre isso, porque os
capitães de navios tinham o direito de reclamar pelas
passagens não pagas, mesmo que isso significasse vender uma
passageira pela oferta mais alta.
Para Seth parecia que o número de navios abandonados no
porto multiplicara desde sua última estada. Logo que um
navio chegava ao porto, capitão e tripulação abandonavam o
navio e seguiam para os campos dourados. Alguns homens
empreendedores rebocaram alguns navios velozes para a
costa e os transformaram em hotéis, mas a floresta de vergas
e mastros, de aproximadamente quinhentos barcos
desertados, ainda se estendia até a metade da baía de San
Francisco, razão pela qual o Betsy Lain teve de ancorar tão
distante, exigindo que a carga e os passageiros fossem levados
para terra firme de lancha. Seth parou de carregar sua carroça
para ver o estampido obsceno de homens para a plataforma
de desembarque do Betsy Lain. Espalhara-se o boato de que
o navio de Boston estava trazendo mulheres.
Depois de passarem pelo galpão da alfândega, algumas das
mulheres saíram imediatamente, muitas delas, Seth sabia,
para procurar os maridos que abandonaram suas famílias
quando contraíram a febre do ouro. O resto, por não terem
pago suas passagens, seria oferecido a qualquer pessoa no cais
que pagasse a dívida, forçando as desafortunadas mulheres ao
cativeiro legal.
Mulheres de todas as partes do mundo vinham para a
Califórnia, assim como os homens, na esperança de começar
uma vida nova. Algumas estavam se escondendo dos
maridos, outras esperavam apanhar um. Algumas vinham
para se perder, outras para se encontrar. Na Califórnia tudo
era possível. A terra e os recursos eram ilimitados, e havia
ouro para os cobiçosos. E, o mais importante, não havia
regras sociais para manter uma pessoa em seu lugar. Aqui um
camponês era tão bom como um rei, se ele tivesse dinheiro.
E aqui ninguém fazia perguntas. Um homem podia até,
pensou Seth com tristeza, escapar do estigma de ser um ex-
condenado.
Seth olhava com repugnância enquanto as passageiras do
Lain eram arrebanhadas como gado para uma área cercada do
cais, encurralando- as entre fardos, bagagens e engradados
enquanto a multidão crescente de homens comprimia-se em
volta do perímetro, ansiosos pelo início do leilão. Muitos
eram donos de bordéis e fandangos, casas de jogos e salões
de bailes. Estes escolheriam as mais jovens e bonitas e as
forçariam a uma vida de prostituição até a dívida estar paga.
Mas também havia homens decentes e trabalhadores na
multidão, mineiros e caçadores de peles que viviam sozinhos
e ansiavam pelo toque gentil de uma fêmea. Um casamento
honesto era o que estes homens ofereciam.
Seth Hopkins, com trinta e dois anos de idade, nunca se
casara, nem pretendia fazê-lo. A experiência lhe ensinara
que o estado matrimonial era apenas outra forma de
cativeiro. A vida solitária era o que lhe agradava, com árvores
e pastos verdes o mais longe possível das minas de carvão da
Virgínia.
Ele deu a volta, prendendo as cordas sobre as provisões
empilhadas na carroça. Ele não gostava da confusão que
imperava no porto de San Francisco, onde porcos
guinchando estavam sendo descarregados, gado mugia e
cachorros latiam, carruagens e carroções passavam rangendo,
pessoas gritavam, discutiam, pechinchavam, e cavalos com
os ruídos altos de seus cascos deixavam cair aleatoriamente
seus estrumes. Fumaça enchia o ar, bem como o mau cheiro
de água estagnada e peixe podre, o que o sol do meio-dia
tornava pior. Seth estava ansioso para voltar para o
acampamento de mineração nas montanhas, onde o ar era
limpo e puro, e um homem podia ouvir os próprios
pensamentos.
O capitão do navio, um homem baixo e atarracado, de
uniforme azul, subiu num cepo e começou o leilão. Ele
apontou para a primeira da fila, uma mulher robusta, na casa
dos quarenta anos, que parecia tanto zangada quanto
amedrontada.
— Esta deve cinqüenta dólares. Quem pagará cinqüenta
dólares?
A Sra. Armitage, a quem Seth reconheceu como a dona do
Hotel Armitage na Market Street, gritou:
— Ela sabe cozinhar? Eu preciso de uma cozinheira!
— Tem alguma costureira? — gritou outra mulher. — Pago
um bom dinheiro por alguém que saiba costurar!
Um trole puxado por cavalos encostou e um grupo de doze
mulheres com vestidos coloridos, que aguardavam a uma
certa distância, subiu a bordo. Seth sabia que elas iam para o
Finch's Fandango Club e seu bordel no andar de cima.
Um homem com a aparência grisalha de um aventureiro da
corrida do ouro de 1849 abriu caminho e disse:
— Quanto quer por aquela loura? Preciso de uma esposa e
preciso dela rápido!
A multidão caiu na gargalhada.
As mulheres começaram a desaparecer rapidamente, à
medida que o dinheiro trocava de mãos e os homens davam
um passo à frente para reclamar seus prêmios. Algumas
mulheres iam de boa vontade, outras relutantemente, umas
poucas até choravam. Quando Seth estava prestes a subir na
carroça, seus olhos pousaram sobre uma mulher que de
algum modo era diferente das demais. Recusando-se a ficar
na fila do leilão, ela se sentara empertigada sobre o seu
grande baú de viagem, mãos cruzadas sobre o colo. Seu rosto
estava sombreado pela aba do grande toucado emplumado
que usava, amarrado em baixo do queixo com um laço. Mas
foi o vestido que chamou a atenção de Seth. Ele nunca vira
seda de tal cor antes, ou melhor, cores, pois elas tremulavam
e mudavam de cor à medida que a mulher se movia, ou
quando a brisa do porto ondulava o tecido. Quando ela
respirava, o corpete mudava de verde-mar para turquesa, e
quando se levantava a saia ia de água-marinha para azul-
safira.
As cores fizeram Seth pensar em penas de pavão e asas de
borboleta ou piscinas marinhas em dias ensolarados. O efeito
era hipnótico.
Ele percebeu que ela estava calmamente tentando explicar
alguma coisa para o comissário de bordo, e quando a brisa
mudou Seth pôde ouvir suas palavras, ditas com forte sotaque
espanhol.
— Eu disse que o Sr. Boggs pagará minha passagem.
O comissário, um homem de rosto vermelho com o cenho
dispép- tico, examinou a multidão.
— Eu não vejo Boggs. Deve ser outra cidade. Sinto muito,
senhora, eu preciso receber sua passagem. Tenho de deixar
um desses homens levar a senhora.
— O que quer dizer com "levar a senhora"?
— Qualquer um que pagar sua passagem leva a senhora
embora. A senhora será propriedade dele até pagar sua dívida
com trabalho.
Ela tocou o queixo e Seth viu olhos castanhos de relance.
— Eu não sou esse tipo de mulher, senor, e se meu marido
estivesse vivo ele o desafiaria para um duelo para defender
minha honra.
O comissário não ficou impressionado.
— Leis de bordo, senhora. Preciso receber o dinheiro
completo da passagem de cada passageiro que transporto. De
onde ele vem não é problema meu. Mas eu preciso
contabilizar o dinheiro.
— Então meu pai pagará!
— E onde é que ele está? — perguntou o comissário,
franzindo o nariz.
— Bom... eu não sei no momento. Ele está aqui.
— Onde?
— Na Califórnia.
Ele produziu um som exasperado.
— Olhe, Boggs não está aqui. Então eu tenho de pegar o
dinheiro de um desses homens. Essa é a lei — disse ele,
segurando o braço dela.
— Mas não pode fazer isso, senor!
— Olhe, não estou vendo Boggs e não tenho tempo. Preciso
levar os recibos para o escritório até o meio-dia.
— Tire sua mão de mim!
O comissário olhou para a lista de passageiros.
— Seu nome é D'Arcy? Ouçam, homens! Esta aqui é uma
genuína francesinha. Quem vai dar o primeiro lance?
— Era por essa que eu estava esperando — disse um homem
que estava próximo. — Aqui, benzinho — gritou ele. —
Levante a saia e mostre o tornozelo para nós.
Seth subiu na carroça e pegou as rédeas. Uma coisa a prisão
lhe ensinara: a vida não era justa. Também lhe ensinara que
homens espertos ficavam fora dos problemas de outras
pessoas. Além disso, a mulher já pertencia a Boggs. Ela sabia
no que estava se metendo.
Mas quando começou a conduzir os cavalos algo o fez parar.
Olhou novamente para a mulher. O comissário a deixara por
um momento para apaziguar uma briga que começara entre
dois fregueses. Boggs, pensou Seth. Ele conhecia o homem.
Cyrus Boggs viera como pastor há dois anos, mas encontrara
coisa mais lucrativa. No momento ele era dono de um bordel
na Clay Street e era conhecido por atrair mulheres para San
Francisco com anúncios de jornais para professoras e amas-
de-leite, prometendo pagar suas passagens quando che-
gassem, e depois aprisionando-as em quartos pequenos e sem
janelas, onde as indefesas mulheres deviam servir até trinta
homens por dia.
Com um suspiro, Seth largou as rédeas, saltou para o chão e
voltou às cordas.
— Perdoe-me, senhora, eu a ouvi dizer Boggs?
— Sí — disse ela enquanto procurava algo na bolsa. Suas
mãos eram pequenas, notou ele, as luvas feitas de pelica
macia. — Depois que meu marido morreu, o governo tomou
nossa fazenda pelos impostos. Sobrou-me muito pouco. Mas
então eu vi isto — explicou ela, entregando um recorte de
jornal para ele.
— Desculpe, não sei espanhol. O que está escrito?
— Isto é, como se diz, anuncio. Este homem diz que precisa
de professoras para jovens senhoras. Aqui está o nome e o
endereço. Eu escrevi uma carta para ele.
Ela mostrou uma folha de papel dobrado. Seth leu as falsas
promessas contidas nela.
— Esta carta e este anúncio são uma fraude — disse ele,
devolvendo o papel. — Boggs a trouxe até aqui com
alegações falsas.
Ela olhou intrigada para ele. Ele viu cílios escuros
emoldurando olhos castanhos, cachos pretos escapando do
toucado.
Ele pigarreou, não sabia como dizer isso delicadamente.
— Boggs é um criminoso. Ele não vai ajudá-la. Eu a ouvi
dizer que seu pai está aqui?
— Sí! Foi por causa dele que eu vim. Ele é rico. Ele pagará
minha passagem.
Seth viu como os homens olhavam para ela e então se lem-
brou que logo na semana passada um grupo de vigilantes, a
maioria soldados americanos debandados sem nada para fazer
agora que a guerra com o México acabara, atacou uma
comunidade em Telegraph Hill chamada Pequeno Chile,
estuprando e matando mãe e filha. Pessoas de descendência
espanhola não estavam seguras em San Francisco no
momento, especialmente uma mulher espanhola e sozinha.
Se o pai da mulher não aparecesse logo, então Boggs
certamente apareceria, e, se não Boggs, então um desses
homens pagaria por esta mulher D'Arcy e a escravizaria Deus
sabe onde.
— Ei, você! — gritou o comissário, voltando. — Vá embora
daqui!
Apesar de sua lei inflexível de não se envolver, Seth não
podia ficar parado quando uma injustiça estava sendo feita.
Ele se ofereceu para pagar a passagem, pegando no bolso um
rolo de notas. Quando um outro homem imediatamente
aumentou o lance, o comissário aceitou. Seth agarrou o braço
dele e falou perto de seu rosto:
— Amigo, eu não quero problema. Mas você pediu o preço
da passagem da senhora, e eu me ofereci para pagar.
O comissário olhou para os dedos enfiados dolorosamente
em seu braço, depois nos olhos firmes do homem alto e
desvencilhou-se.
— Está bem, acerte com o capitão ali em frente.
— Obrigada, senor — disse Angélique enquanto Seth tirava o
baú detrás das cordas. — Eu estou em dívida com o senhor.
Como vou pagá-lo?
Seth apertou os olhos para olhar para o sol. Ele estava ansioso
para ir embora.
— Eu estou em Devil's Bar, norte de Sacramento. Quando
encontrar seu pai, a senhora pode me pagar — disse ele,
tocando a aba do chapéu e seguindo para a carroça.
Quando começou a subir, olhou para trás. Ela ainda estava
parada ao lado do baú, parecendo perdida. Homens
começavam a se juntar em volta dela, dizendo:
— Você é francesa mesmo? Você precisa de um lugar para
ficar? Eu posso garantir que ganhará muito dinheiro por aqui.
Seth voltou, abrindo caminho entre os homens que
protestavam.
— A senhora realmente não tem para onde ir?
— Só o Senor Boggs...
— Agora olhe aqui... — começou a dizer um homem.
— E a senhora não tem idéia de onde o seu pai está?
— Eu vim para procurar. Foi por isso que respondi ao
anuncio do Sr. Boggs. Vim para a Califórnia para procurar
meu pai. E, enquanto procuro, trabalho como professora,
entende?
— Seu pai é um aventureiro da corrida do ouro?
Quando eles perceberam os modos proprietários do estranho
para com a mulher, os homens voltaram para o leilão, onde
uma mulher com um bebê estava sendo oferecida por trinta
dólares.
— Não, não — explicou Angélique para Seth Hopkins. —
Depois que minha mãe morreu, meu pai foi para Nova
Orleans, para a casa do irmão. Eles vieram para a Califórnia,
ele contou numa carta, para caçar peles.
Ela pegou outra folha de papel dobrado. Seth olhou para o
papel e depois o devolveu.
— Eu não sei francês também. A senhora diz que ele é um
caçador de peles? Ele deve estar no norte, então. A não ser
que tenha ido em busca de ouro. Neste caso, pode estar em
um dos mil campos de mineração.
Ele esfregou o queixo.
— Olhe, a senhora provavelmente terá uma chance maior de
encontrá-lo se for para Sacramento — disse ele, suspirando,
imaginando por que estava se metendo nisto. O calor devia
ter amolecido seus miolos. — Eu posso levá-la até lá.
— Ah! O senhor já foi muito gentil comigo. Esses homens
me ajudarão.
— Esses homens... — ele começou a falar. — Não faz mal.
Sacramento é o que a senhora quer, acredite-me, fica mais
próximo da terra do ouro. A senhora pode enviar recados de
que está à procura de seu pai. Os campos recebem pastores e
juízes itinerantes, grupos de artistas volantes, caçadores de
peles, mineiros, e todo tipo de gente que passa por lá. A
comunicação verbal viaja muito rápido entre os campos de
mineração. Seu pai logo saberá que a senhora está pro-
curando por ele. Como é o nome dele?
— Jacques D'Arcy — disse ela. — Ele é um conde —
acrescentou, orgulhosa.
Seth gostaria de ganhar alguns trocados por cada "conde",
"barão" e "príncipe" que havia em San Francisco e
desmascarar um bando deles. Ele duvidava que a metade dos
homens neste cais estivesse usando seu nome verdadeiro.
— Ah — disse ela quando viu a carroça. — Sacramento fica
longe?
— Não vamos de carroça para Sacramento. Só até o terminal
para pegar o barco a vapor para subirmos o rio.

Enquanto Seth guiava a carroça pelas ruas de Sacramento em
busca de um lugar respeitável onde a Srta. D'Arcy pudesse
ficar, Angélique estava agradecida por ter deixado o barco a
vapor. Quando o Sr. Hopkins dissera que subiriam o rio de
barco durante a noite, ela imaginara uma cabine e a
oportunidade de soltar o corpete e, quem sabe, banhar-se,
tomar um chá. A viagem do México fora horrenda.
Embarcando no Betsy Lain em Acapulco, Angélique
encontrara o navio de Boston já superlotado de passageiros.
Mas o pernoite no barco a vapor fora uma experiência ainda
mais assustadora. Como todas as cabines estivessem
ocupadas, ela e o Sr. Hopkins tiveram de dormir no convés
entre seus pertences, junto com centenas de outras pessoas
— a maioria, homens — e até com cavalos, burros e porcos!
Pensamentos de encontrar o pai a sustentaram. Papá faria
com que tudo ficasse bem. Ele sempre cuidara dela e cuidaria
novamente.
Sacramento era uma cidade nova, brotando na convergência
de dois rios. Angélique, que nascera numa cidade de
trezentos anos, a qual, por sua vez, fora construída sobre as
ruínas de uma cidade ainda mais velha, admirava-se de que
há um ano apenas Sacramento fora um acampamento, e
antes disso uma aldeia indígena. Agora havia construções de
tijolos, casas de madeira, torres de igrejas e ruas devidamente
planejadas. Mas descobrir um hotel ou pensão onde ela
pudesse ficar estava se tornando um desafio.
Depois de andarem por uma hora na carroça alugada,
achando defeito em cada pensão ou hotel que ele
encontrava, Seth começou a perceber que assim como não
tinha podido deixar a Srta. D'Arcy sozinha em San Francisco,
também não poderia deixá-la em Sacramento. Avisos nas
janelas diziam: NÃO ACEITAMOS MEXICANOS OU
ESTRANGEIROS. E as pessoas olhavam abertamente e um
tanto rudes, notou Seth, para o par altamente desarmônico
— ele com uma camisa de tecido grosseiro e calças de brim,
a mulher ao seu lado com um vestido azul-esverdeado
tremeluzente que não conseguia optar por uma cor. Ele tinha
uma boa idéia do que se passava na cabeça das pessoas e
suspeitava que a respeitabilidade de Angélique, uma mulher
jovem e atraente sozinha, seria questionada. Ele
simplesmente não podia abandoná-la, assim como não
pudera fazê-lo em San Francisco. Mesmo sendo ela quem lhe
devia, sentia-se responsável por ela. Só havia uma solução.
Ela estaria segura em Devil's Bar, e depois, ele pensou
consigo mesmo, ficaria mais perto das informações
circulantes que a levariam até o pai.
— Há várias senhoras decentes no acampamento —
ofereceu ele. — Eu tenho certeza que uma delas a aceitará de
bom grado.
Angélique aceitou graciosamente, enquanto seguia
empertigada ao lado de Seth Hopkins, não vendo a hora de
finalmente tomar um banho quente, fazer uma refeição
decente e ter uma boa noite de sono entre lençóis limpos.
Ela olhava ansiosamente para o rosto de cada homem por
quem passavam, antecipando o encontro prazeroso com o
pai. Ela pensou nas festas de aniversário quando era pequena,
e papá mandara fazer uma coroa para ela usar e um trono
especial para se sentar. E quando crescera ele até escolhera o
marido para ela, já que nenhum homem comum serviria.
Um D'Arcy, um primo distante, que tivera de prometer
continuar a tratar Angélique do modo a que ela estava
acostumada. Pierre fizera exatamente isso, até o dia em que
morrera nas mãos de soldados americanos.
"Você vai ao encontro de sua família em Los Angeles?",
perguntara padre Gomez no dia em que ela saiu do México.
Mas Angélique não tinha a intenção de procurar a família da
mãe. Ela ouvira tantas vezes, quando estava crescendo, que
seu avô Navarro tratara seu pai de modo tão deplorável que
não queria nenhuma ligação com eles. Foi uma sensação
estranha quando o Betsy Lain parou em Los Angeles e ela
olhou para a planície enfumaçada, imaginando se a família
ainda estaria por lá. Só vagamente ela recordava a última
visita ao Rancho Paloma, há vinte anos, quando tinha seis
anos. Era para ter havido um casamento, e então algo
aconteceu — tia Marina desapareceu e todos foram
mandados para casa. Não houve mais comunicação com a
família de sua mãe depois disso.
Enquanto a carroça os levava pela zona rural que era plana e
pontilhada de carvalhos, Angélique lançou olhares furtivos
para o homem ao seu lado. O Sr. Hopkins tinha um rosto
interessante, pensou ela. Queimado pelo sol e com vincos,
com um nariz comprido e fino e olhos profundos e
pensativos. Quando ele tirou o chapéu para enxugar a testa,
viu fartos cabelos ondulados, aquecidos pelo sol para um
castanho dourado. Ela gostava do som de sua voz, que
possuía uma qualidade melodiosa, e ele sempre falava
cuidadosamente, com palavras medidas. Havia algo sólido e
sincero sobre ele. Ela sentiu que estava segura com Seth
Hopkins.
Seth, por outro lado, estava tendo pensamentos de natureza
diferente. Enquanto viajavam em silêncio através da luz do
sol, a estrada diminuindo gradualmente à medida que
deixavam as áreas povoadas para trás, ele tentou não fixar os
olhos em sua companheira de viagem. Ela se sentava no
couro da carroça como uma rainha, as costas retas, a
sombrinha perfeitamente em ângulo contra o sol. Em todos
os seus trinta e dois anos de vida nunca contemplara uma
visão tão exótica. Ela também o desconcertava. Era difícil
acreditar que fosse tão ingênua como parecera no porto de
San Francisco. Calculou a idade dela por volta dos vinte e
cinco anos, e, se tinha sido casada, então devia conhecer
alguma coisa da vida. Contudo o comportamento dela em
relação à sua própria situação lhe pareceu quase infantil.
Mas esta mulher não era uma criança, lembrou ele a si
mesmo enquanto tentava não demorar os olhos na cintura
fina flamejando em quadris femininos, e nos seios retesados
contra a seda verde-azulada. Deve haver mil anáguas sob esta
saia cheia de babados. Um leve brilho de suor apareceu em
sua testa e sobre os lábios rosados. E ela cheirava levemente a
rosas. Ele tentou identificar a cor dela. Ela não era anglo-
saxã, então sua pele não era branca. Mas não era morena
também, ou escura, como os ciganos. Cor-de-mel, decidiu
ele, e sua boca ficou amarga ao pensar no modo como o
"reverendo" Cyrus Boggs pretendia usá-la.
Quando ele a viu tirar um pequeno frasco de remédio da
bolsa e tomar um delicado gole, ele olhou indagativo para
ela. Ela guardou o frasco na bolsa e disse:
— É um remédio feito com a receita de minha avó. Um
químico na Cidade do México o preparou para mim para a
viagem. Quando sinto que vou ter uma dor de cabeça, tomo
um gole e fico bem.
— E se não tomar?
— Não se preocupe, senor, eu estou bem.
Ela não ia contar a ele sobre as visões e vozes que via e ouvia
durante as crises. Ele pensaria que ela era louca, ou coisa
pior.
— Escute — disse ele em voz mais baixa, mesmo estando
numa estrada deserta só com os cavalos para ouvir. — E
melhor esquecer o "senor". O povo daqui não gosta de
mexicanos. A guerra ainda está fresca na mente das pessoas.
A guerra estava fresca na mente de Angélique também. Seu
marido fora morto na batalha de Chepultepec, e ela nunca
esqueceria o medo que sentira quando as tropas americanas
entraram marchando triunfalmente na Cidade do México.
— Mas eu sou espanhola — disse ela. — Minha família pelo
do lado de minha mãe é californio. Minha família em Los
Angeles foram os primeiros aqui—disse ela, tirando da bolsa
um daguerreótipo numa moldura oval. Minha mãe era uma
linda mulher, como pode ver.
Seth observou as maçãs salientes do rosto de Carlotta
Navarro D'Arcy, os olhos amendoados, os lábios sensuais e a
pele cor de oliva. Havia mais do que sangue espanhol nela.
Só um cego não veria. E a filha puxou à mãe. Ele devolveu a
fotografia sem dizer nada, entendendo alguma coisa agora
sobre as feições exóticas da moça que talvez ela própria não
percebesse — alguma coisa a ver com a família dela vindo
para a Califórnia quando só havia índios por aqui.
Finalmente, eles entraram numa terra de pinheiros altos,
ravinas profundas e montanhas de picos altos, o ar nítido e
puro. E chegaram em Devil's Bar logo antes do anoitecer.
Angélique inclinou-se para a frente no assento, ansiosa por
ver esta cidade nas montanhas. Durante a viagem ela
compusera uma imagem mental de como pareceria — casas
de tijolos e lojas ladeando ruas de pedras, com uma igreja de
frente para a plaza, uma fonte no centro, calçadas
pavimentadas, pátios privados com sombra de árvores. Já que
mineradores de ouro — homens ricos! — viviam aqui, ela
poderia ser ainda mais esplêndida do que ela podia imaginar.
A carroça fez a curva e a floresta deu lugar a uma encosta
sem árvores. E cobrindo a encosta havia...
O queixo de Angélique caiu.
Tendas.
Filas de tendas de lona com uma ocasional cabana de madeira
ou estrutura rústica no meio. As ruas, se podiam ser
chamadas assim, eram sujas com lixo esparramado, cachorros
vira-latas, moscas zumbindo no calor. Não havia calçadas.
Nem fonte ou igreja. Nem pátios assombreados onde uma
dama pudesse tomar chá. Nenhuma casa de tijolo ou de
adobe à vista.
E as pessoas! Homens com roupas empoeiradas e rotos
chapéus puxados sobre os olhos, e mulheres com vestidos de
algodão liso, arrastando na sujeira. Todos, inclusive as
mulheres, pareciam estar carregando alguma coisa — sacos
pesados, ou pás e picaretas, baldes de água, feixes de lenha.
Se eram tão ricos, por que viviam tão pobremente? Ela viu
homens pregando tábuas para fazer caixão. E no topo da
colina, uma área desmaiada e pontilhada de cruzes de
madeira e marcadores de sepulturas.
Seu ânimo esmoreceu enquanto ela olhava para a vista que
era pintada em tons de cinza e marrom, as colinas nuas
salpicadas de tocos de árvores, os terrenos de grama amarela,
as esqueléticas flores silvestres. O cheiro era quase tão ruim
como o calor. Uma mortalha de fumaça espessa pairava sobre
o pequeno vale. Angélique tirou um lenço perfumado da
bolsa e o segurou contra o nariz.
Alguns homens a cavalo surgiram de repente, gritando
"Eureca!" e atirando para o alto, cascos de cavalo levantando
nuvens de terra, uma das quais caiu no colo de Angélique.
—- Oh! — disse ela, alarmada. — Eles são banditos!
— Apenas alguns mineiros que fizeram uma boa descoberta
— respondeu Seth, rindo. — Vai ter bebida de graça no bar
hoje à noite!
Com o barulho da carroça entrando no acampamento, as
pessoas saíram de suas tendas para ver.
— Ei, Seth Hopkins! Voltou, hein?
Quando Seth parou a carroça na frente de uma construção de
madeira de dois andares, com uma placa que dizia DEVILS
BAR HOTEL, ELIZA GIBBONS, PROPRIETÁRIA, uma
multidão rapidamente apareceu, olhos arregalados com a
visão da jovem ao lado de Seth. Angélique permaneceu
sentada enquanto ele descarregava engradados e caixas, e as
pessoas chegavam para reclamar as compras que ele fizera
para elas em San Francisco. Eles pegaram as compras
alegremente e disseram a Seth que estavam felizes com sua
volta. Ninguém disse uma palavra para Angélique enquanto
olhavam pasmados para ela.
Uma mulher saiu do pequeno hotel com um largo sorriso
enquanto secava as mãos numa toalha. Ela foi até Seth e disse
algo que Angélique não pôde ouvir. Seth riu, e Angélique viu
como a mulher ficou radiante. De estatura mediana e por
volta dos trinta anos, a mulher usava os cabelos partidos e
puxados severamente para trás em um coque. O vestido era
liso e ela calçava o que parecia ser botas de homem. Havia
algo familiar no modo como ela tocava o braço de Seth.
Quando a última encomenda foi entregue, Seth levou a
mulher para apresentá-la como Eliza Gibbons, dona do hotel.
Eliza fez uma reverência, e, embora estivesse sorrindo,
Angélique viu uma dureza na fisionomia que a assustou.
— Eu estava esperando — Seth começou a dizer, e depois
parou, vendo de repente como os homens estavam olhando
para a Srta. D'Arcy. Não havia diferença do modo como a
olharam em San Francisco, e ele percebeu que ela não estaria
mais segura ali também.
Ele não tinha pensado em tudo, quando estava em
Sacramento e decidira trazê-la para Devil's Bar. Tinha
calculado que pudesse encontrar um lugar para ela com uma
das mulheres, mas compreendia agora que o seu plano fora
mal concebido. Nenhuma das mulheres casadas ficaria com
ela, não do modo como os maridos estavam olhando para ela.
E ela não podia ficar sozinha, não com o modo como os
homens a estavam devorando com os olhos. Então restavam
as mulheres solteiras. Mas as únicas solteiras eram as
mulheres que viviam acima do bar e Eliza Gibbons, dona do
hotel de quatro quartos. E se Seth conhecia Eliza, ela daria
uma olhada nas roupas caras da Srta. D'Arcy e triplicaria o
preço do aluguel. O qual Seth teria de pagar até a Srta.
D'Arcy encontrar o pai. De repente lhe ocorreu que salvar
uma dama em dificuldades não era tão simples como ele
pensara.
Só havia um único lugar em Devil's Bar onde ele estava certo
de que ela estaria segura — em sua própria cabana. Dando
adeus aos amigos, subiu na carroça, pegou as rédeas e disse
para Angélique;
— Escute, eu trabalho em minha concessão de manhã até à
noite e não tenho tempo para manter a casa, então eu pago
uma mulher para ajudar. A senhorita acha que poderia
manter a casa para mim? Eu lhe pagarei a mesma coisa que
venho pagando a Eliza Gibbons por uma de suas empregadas.
— Senor Hopkins — disse ela, alegrando-se —, no México eu
cuidava de uma grande fazenda enquanto meu marido estava
fora lutando na guerra. Eu sou muito capaz.
Eles partiram do hotel, deixando a multidão para trás, a
murmurar e especular — e Eliza Gibbons olhando
enigmaticamente para a carroça que se afastava.
A cabana de toras de madeira de Seth ficava bem dentro da
ravina, quase a última habitação da rua empoeirada. Ele
ajudou Angélique a descer, depois afastou a lona que servia
de porta para ela entrar. A cabana tinha apenas um cômodo,
e Angélique ficou parada no meio dele, sem fala, enquanto
olhava as paredes rudes, a lareira escurecida, o chão de terra
batida, o enfarruscado fogão de ferro, a cama estreita e uma
mesa que parecia não ter sido limpa desde que era uma
árvore. Não havia janelas, apenas outra porta nos fundos.
— A senhorita pode ficar aqui esta noite, eu me abanco com
Charlie Bigelow. Amanhã arranjaremos as coisas — disse ele,
encaminhando-se para a porta.
— O senhor está indo embora?
— A carroça não é minha. E alugada por dia. Sirva-se do que
precisar. Tem comida na despensa. O poço d'água fica nos
fundos, logo depois daquela porta.
Ele fez uma pausa, limpou a garganta com embaraço e disse:
— O, hum, está debaixo da cama. Esvazie-o perto do riacho.
Ela virou-se para olhar e vislumbrou no escuro, sob a cama, o
urinol de esmalte branco. O choque a deixou sem fala.
Seth saiu, fechando a porta de lona, e Angélique foi tragada
pela escuridão. Ela continuou de pé, desnorteada, enquanto
ouvia vozes do lado de fora:
— Ela é uma senhora viúva, respeitável — explicava Seth à
pequena multidão que o seguira até a cabana. — Veio em
busca do pai. Alguém conhece um tal de Jack D'Arcy, um
francês caçador de peles? Passe a informação adiante,
precisamos encontrá-lo.
— Você perdeu alguns acontecimentos enquanto estava fora,
Seth. Um grupo de vigilantes de Johnston's Creek passou por
aqui perseguindo índios que atacaram o acampamento deles.
Voltaram uma semana depois dizendo que encurralaram o
bando de ladrões na ilha Randolph, foi como atirar em
porcos no chiqueiro, eles disseram. Aquele bando não vai
criar mais problemas.
Angélique ouviu passos pesados se afastando e vozes
esvanecendo, até que ficou sozinha na cabana rude, de onde
pôde ver o último raio de luz crepuscular pelas fendas da
parede.

Dormente pelo choque e muito cansada para fazer qualquer
coisa, Angélique enroscara-se na cama, cobrindo-se com o
único cobertor, e tivera uma noite cheia de sonhos e
pesadelos até ser acordada ao amanhecer por Seth do outro
lado da porta, anunciando sua presença.
Angélique levou algum tempo para se lembrar de onde
estava. Seu primeiro pensamento, antes de abrir os olhos, foi
que mandaria as empregadas trocarem todas as roupas de
cama da fazenda, pois seu cobertor cheirava a mofo. Ela
também daria uma boa arejada em todos os aposentos e poria
as mulheres para limpar os móveis com óleo e panos. Flores
frescas em cada aposento também ajudariam a dispersar o
abafamento. E quem estava fazendo tanto barulho lá fora,
pessoas chamando umas pelas outras em inglês, cavalgando
muito perto? E onde estavam os passarinhos que sempre a
saudavam todas as manhãs da eqüissetácea perto da janela?
— Srta. D'Arcy? Está acordada?
A realidade contra-atacou como uma bala. Angélique
levantou- se rapidamente e alisou os cabelos. Olhou para o
vestido em desalento. Havia dormido com ele e sentido
coceira em todo o corpo por causa do colchão de palha.
— Entre, senor.
Seth puxou a porta de lona para o lado e a claridade leitosa do
amanhecer esforçou-se por entrar com ele enquanto ele
enchia a pequena cabana com sua altura e presença
masculina. Dando a Angélique um sorriso rápido e acanhado,
franziu a testa para a mesa e depois para o fogão frio.
— Eu vim tomar meu café, mas reconheço que a senhorita
não sabia a que horas eu chegaria aqui. E a senhorita não
conhece minhas preferências. Vou para minha concessão no
rio logo que o sol se levanta. Gosto de café, ovos e biscoitos
de manhã. Toucinho de fumeiro, quando tiver. Vou tomar
meu café no hotel de Eliza esta manhã. Amanhã
começaremos nossa rotina.
Ele levou alguns minutos para lhe mostrar o riacho nos
fundos, o poço e como usá-lo. Apontou a arca de madeira
contendo batatas, cebolas, nabos e cenouras. Glandes
também, disse ele, do último outono. Dentro da cabana
mostrou-lhe as duas lamparinas, pedindo-lhe que aparasse os
pavios e as reabastecesse diariamente. Ela também deveria
limpar as cinzas do fogão, fazer o café da manhã, lavar e pas-
sar a roupa. Angélique o seguia sem dizer uma palavra. Desde
que acordara e percebera que nenhuma serviçal iria trazer-
lhe água quente para o banho ou o seu chocolate, e que ela
devia lidar com as panelas sozinha, desenvolvera um tipo de
torpor estonteante.
Agora Seth estava abrindo um pequeno livro-caixa e virando
para uma folha em branco onde escreveu "Angélique" no
topo.
— O preço para lavar e passar camisas é de um dólar por
peça — disse ele, apontando para uma pilha de roupa suja
num canto. — Eu ia levar essa roupa para Eliza hoje, mas
agora o trabalho é seu. Eu sou um homem honesto, Srta.
D'Arcy. Não vou enganá-la em um único centavo. — Ele
fechou o caderno, guardando-o novamente na gaveta. —
Preciso ir ver minha concessão agora. Charlie Bigelow
cuidou dela para mim. Estarei de volta para o jantar.
Qualquer coisa que cozinhar estará bem para mim.
E ele se foi.
Ela continuou presa no lugar. Quando ele lhe perguntara se
ela saberia cuidar de uma casa, tinha pensado que ele queria
dizer dar ordens aos serviçais.
Sem janelas, a cabana era escura. Ela empurrou para fora a
lona que cobria a porta da frente e a que cobria a porta dos
fundos, mas mesmo assim não entrou luz suficiente. Decidiu
portanto acender as lamparinas. Mas quando olhou para elas
Angélique percebeu que nunca tivera de acender as suas
próprias e não tinha idéia de como fazê-lo. Resolveu deixar
as portas abertas e se arranjar com a luz do dia.
Depois veio a questão da comida. Angélique estava faminta.
Ela contemplou a frigideira incrustada que Seth lhe apontara.
O que deveria fazer com aquilo? Num armário encontrou
sacos de arroz e farinha, sal e condimentos, azeite de oliva,
grãos de café, bicarbonato de sódio, açúcar, um vidro de
banha, alguns enlatados e frutas em conserva, peixe salgado
numa panela grande de barro. Ela não tinha a menor idéia do
que fazer com qualquer daquelas coisas. Partindo um pedaço
de pão e fatiando um pedaço de queijo duro, comeu
avidamente e olhou a roupa imunda amontoada num canto.
Será que ele realmente esperava que ela as lavasse? Em casa
ela só tinha de supervisionar quando recolhiam as roupas e
depois quando as guardavam. Angélique não tinha idéia do
que acontecia no entremeio. Enquanto devorava o pão e o
queijo, desejando seu chocolate matutino, ouviu os sons do
campo, sons estranhos e alheios, rudes e ásperos, pensou ela,
nem um pouco parecidos com os sons gentis das manhãs em
sua fazenda nos arredores da Cidade do México. Quando
questionou novamente por que não ouvia pássaros, lembrou-
se das colinas áridas que cercavam o pequeno vale e dos
tocos de árvores que as cobriam.
Os pássaros debandaram, e eu também devo debandar.
De pé no meio da cabana, pequena e suja, que pertencia a
um homem que ela não conhecia, no meio de um miserável
campo de mineração em meio a um deserto esquecido por
Deus, Angélique começou a perceber o terrível engano que
cometera. Não em ir para a Califórnia. Ela não tivera escolha.
Depois da morte do marido, o governo do México confiscara
sua propriedade — fazenda, campos, criação de gado — para
cobrir os impostos, deixando Angélique com nada além do
baú cheio de roupas. O erro foi ter ido para Devil's Bar.
Seu primeiro pensamento foi que devia encontrar um modo
de voltar para Sacramento, encontrar um hotel e esperar que
seu pai a encontrasse. Mas então ela lembrou de sua dívida
para com Seth Hopkins. Não apenas os cem dólares, mas ele
a salvara de um homem com intenções criminosas, ou assim
dissera ele.
Endireitando a coluna e os ombros — os D'Arcy honravam
suas dívidas —, ela pensou: "Que me custa fazer isso?"
Primeiro, trouxe água do riacho para tomar banho,
descobrindo que não tinha idéia de que a água fosse tão
pesada. Tirou roupas limpas do baú, escolhendo
cuidadosamente a roupa certa, gastando tempo selecionando
brincos que combinavam com os tons em vermelho do
vestido. Vestir-se provou ser um pequeno desafio. Angélique
nunca tivera de fazer isso sozinha antes. Como faria para
apertar o corpete? Esmerou-se nos cabelos, escovando-os
para o alto e os prendendo com pentes. Passou creme no
rosto e nas mãos, lustrou os sapatos, escovou as roupas de
viagem e as pendurou, lavou as roupas de baixo e as
pendurou para secar.
Quando terminou com os cuidados pessoais, era meio-dia e a
cabana ainda estava escura no interior. Então ela partiu para
os fósforos e lamparinas até descobrir como acendê-las e
mantê-las queimando o resto do dia. Mas, quando clareou,
viu como o chão estava imundo. Encontrou a vassoura e
enquanto varria descobriu algo curioso no pé da parede perto
do fogão. Um monte em forma de cone, de uma substância
não identificada, elevava-se do chão alguns centímetros.
Abaixando-se para verificar, deixou os olhos subirem até
chegarem ao gancho onde a frigideira estava pendurada.
— Santo cielo! — exclamou.
Aparentemente, Seth Hopkins não se incomodava em limpar
a frigideira depois de terminar, mas a pendurava no gancho e
deixava a gordura pingar direto no chão!
Ela encontrou algumas coisas pessoais de Seth: fora a bacia de
barbear, pincel e navalha, havia um daguerreótipo de uma
mulher com quem Seth se parecia, e quatro livros batidos.
Pegando Um tesouro de poemas, Angélique folheou páginas
de Burns e Keats, Shakespeare e Coleridge até o livro abrir
naturalmente na página de Shelley, como se Seth a tivesse
aberto muitas vezes: "Eu provenho dos sonhos teus. No
primeiro doce sono da noite". Os outros três livros eram
Criação de animais, A vida de Napoleão e O Livro-esquete de
Washington Irving, um pedaço de papel marcando a página
de "A lenda de Sleepy Hollow".-
Com as mãos nos quadris, examinando a pequena e rústica
habitação que na opinião dela não servia para abrigar porcos,
Angélique decidiu que devia fazer alguma coisa. Ela
trabalhou por uma hora e, quando achou que a cabana estava
um pouco mais habitável, enfrentou a tarefa de fazer o
jantar.
Quando Seth Hopkins chegou em casa pouco antes do pôr-
do- sol, ele chamou por ela antes de entrar e, quando entrou
na cabana, parou de súbito, o queixo caído. Cores o
assaltaram. De um xale espanhol, bordado em cores
brilhantes, estendido sobre a cama; de pequenas estátuas de
santos, pintadas; de um pequeno quadro da Virgem Maria e o
menino Jesus, emoldurado em ouro. Velas votivas
tremulavam em pequenos frascos de vidro vermelho. Um
leque estava preso na parede, aberto para revelar atraentes
flores amarelas.
Pendurado em um gancho, um toucado azul-claro, decorado
com fitas cor-de-rosa e penas de flamingo. Sobre o pequeno
barril de pólvora emborcado que servia como mesa-de-
cabeceira uma estatueta asteca esculpida em jade rosa, uma
grande pedra de cristal azurita do mais profundo azul, um
pequeno vaso pintado com rosas cor-de-rosa. O barril, por
sua vez, estava escondido sob uma reluzente echarpe de seda
verde-esmeralda. Apoiada contra o pé da cama, uma
sombrinha turquesa com babados verde-claros. Jacintos
vermelhos como sangue, que ele vira crescendo perto do
riacho, em um vaso com água.
Seth teve de piscar várias vezes para certificar-se de que
estava vendo direito. O que a mulher fizera com o lugar?
Então, viu a fumaça subindo do fogão.
— O que aconteceu? Onde está meu jantar?
Ela agitou as mãos desesperadamente.
— Eu tentei, sefior. Mas eu não sei como.
Ele ficou olhando para ela.
— Como é que não sabe fazer um simples jantar?
— Como deveria saber?
— Porque você é uma mulher e... Deus do céu, você usou
quase todo o querosene!
— Isto é um calabozo. Uma masmorra! Eu preciso de luz!
— Deixe as portas abertas.
— E aí as moscas entram!
Ele a olhou de cima a baixo.
— Por que está coberta de fuligem?
Quando ela explicou como tentara acender o fogo e, em vez
disso, nuvens de fumaça escaparam do fogão, ele lhe
mostrou que primeiro ela devia peneirar as cinzas velhas e
jogá-las num balde, e depois como ajustar o respiradouro.
— A senhorita não tem um avental?
Ela encolheu os ombros, desamparada.
— Vamos precisar de café para o jantar — disse ele com um
suspiro, e mostrou a ela como usar o bule. Depois ele
acendeu o fogo e saiu. Voltou alguns minutos depois com
tortas de carne e batatas fritas. — Da cozinha de Eliza —
disse ele, enquanto punha a comida na mesa. — Isso me
custou quatro dólares.
— É muito dinheiro?
Angélique não tinha a menor idéia do custo de nada.
Ele se sentou à mesa sem esperar que ela se sentasse
primeiro.
— Custou um braço e uma perna! Não são os mineiros que
ficam ricos por aqui, são aqueles com bens para vender. Um
lenço custa cinco centavos na Virgínia. Aqui custa cinqüenta
centavos! — Ele serviu o café primeiro para ele, depois para
ela. Quando levou a infusão à boca, franziu a testa para a
caneca. Provou, fez uma careta e disse: — O que você fez
com o café?
— Eu fiz como disse, senor. Pus café no coador, pus o bule
no fogão.
Seth levantou a tampa e ficou de boca aberta.
— Você usou os grãos inteiros! Devia moê-los primeiro. Não
importa. Foi um erro natural. Aprenderá de agora em diante.
Quando começaram a comer, um barulho terrível cortou o
ar. Angélique se levantou de súbito, mas Seth continuou
comendo. Lá fora, no crepúsculo, ela viu um homem
tocando gaita de foles.
— Aquele é Rupert MacDougal — explicou Seth quando ela
voltou. — Ele gosta de anunciar o fim do dia tocando os
foles. Infelizmente, ele só sabe The Campbells Are Coming.
Ela o observou comer de um modo bastante singular,
cotovelos sobre a mesa, garfo seguro como se fosse uma pá.
Ela não conseguira encontrar guardanapos ou toalha de mesa,
e imaginou que ele não tinha nenhum dos dois já que parecia
bem à vontade limpando a boca nas costas da mão.
Mordendo uma batata e a achando surpreendentemente
deliciosa, ela disse:
— Onde fica sua mina de ouro, Senor Hopkins?
— Eu não tenho uma mina. O tipo de mineração que faço é
chamado de mineração placer. Eu peneiro o sedimento dos
leitos do rio e apanho o ouro que estiver lá. Não gosto de
abrir buracos na terra, em busca de veios, como alguns
homens fazem. Já vi muito disso na Virgínia, onde as minas
de carvão estão matando a terra e os homens. Acredito que
se a natureza deixa o ouro na superfície então temos o direito
de pegá-lo. Mas não gosto de rasgar a terra que Deus criou.
Ela olhou para o pequeno frasco que ele trouxera para casa.
Continha lascas de ouro flutuando na água.
— O que o senhor vai fazer com o ouro que encontrar?
Ele limpou a boca com os dedos e partiu para a segunda torta
de carne.
— Acho que gostaria de ter uma fazenda. Não de animais. Eu
acho que não gostaria disso. Algo pacífico e verde. Plantar
alguma coisa, talvez.
— O senhor tem experiência com fazenda?
— Eu venho de uma família de mineradores de carvão. Mas
posso aprender a lidar com uma fazenda.
— Nós cultivávamos abacates no México — disse ela,
melancólica. — Mas as árvores são muito sensíveis. Muito
vento e muito sol não é bom. Quem sabe, laranjas, sim?
Limão seria bom. Vai depender de onde o senhor terá a
fazenda. Tangerinas e toranjas crescem melhor no calor, mas
limão adora nevoeiro. E eu conheço uma laranja que fica
mais doce quando plantada longe da costa.
— Como sabe tudo isso?—perguntou Hopkins, olhando para
ela.
— E só algo que eu sei — respondeu ela, encolhendo os
ombros.
Depois do jantar, Seth abriu a caixa de estanho que continha
o
livro-caixa, tinta, penas e pedaços de papel variados. Nas
costas de um folheto anunciando um circo, ele escreveu uma
lista com um toco de lápis, dizendo:
— Leve isto para Bill Ostler de manhã. Diga a ele para suprir a
lista e colocar na minha conta. Vou dormir na casa de
Charlie Bigelow novamente esta noite e provavelmente pelo
tempo em que você estiver aqui.
Quando ele apareceu na manhã seguinte para tomar o café —
ovos e torradas que Angélique arruinara além do
reconhecimento —, ele disse:
— Vou até Eliza para tomar café com biscoito. Faça arroz e
toucinho para o jantar de hoje. Você não pode estragar o
arroz. E só fervê-lo em água sobre o fogo — disse ele,
apontando para a lareira onde uma panela grande e preta
estava pendurada num gancho. — E encontrará o toucinho
naquele barril ali. Cobrindo o toucinho com farelo evita que
ele estrague no calor — disse ele, fazendo uma pausa. —
Sabe fazer pão? Tudo bem, pergunte a Ostler, ele lhe dará
tudo o que precisar.
O armazém de Ostler ficava mais para cima na rua de terra,
depois de tendas e cabanas e varais de roupa. O armazém
tinha quatro paredes de toras de madeira com o teto de lona
e estava abarrotado de prateleiras com jarros, latas, caixas,
garrafas, ferramentas, pratos, utensílios, remédios e até peças
de fazenda. Para a ocasião, Angélique escolhera
cuidadosamente um vestido de seda cinza-claro com renda
cor-de-rosa. As plumas em seu toucado eram de um rosa
mais escuro que combinava com as luvas e a sombrinha.
Quando entrou no armazém, onde três mulheres remexiam
numa caixa de botões e linhas que Seth Hopkins trouxera de
San Francisco, ela parou para ajustar os olhos à escuridão do
interior.
Bill Ostler, reconhecido pelos cabelos ruivos emaranhados e
pança acima do cinto, deixou escapar:
— Oh, meu Deus! — E deu a volta pelo balcão tão rápido
para cumprimentá-la que quase derrubou o barril de picles.
— Senhora D'Arcy! Que prazer! Em que posso servi-la?
Sentindo o olhar das três mulheres sobre ela, Angélique
entregou-lhe a lista. Quando perguntou a ele baixinho como
fazer pão, ouviu uma das mulheres sussurrar:
— Imagine, uma mulher que não sabe como fazer pão.
Antes de sair com as compras, viu uma peça de chita e
gesticulou com as mãos, querendo saber o preço.
Na cabana, cortou o tecido em pedaços e os pregou na
parede de modo que cobriram boa parte dela. Com o resto do
pano cobriu a mesa.
Depois resolveu fazer o arroz. Angélique encheu a panela
com água e tirou o arroz do saco, usando uma caneca de
estanho com medidas impressas do lado. Uma caneca não
parecia o bastante. Quatro canecas, decidiu ela, fariam uma
boa refeição para ela e o Sr. Hopkins. Então cobriu a panela e
a pendurou sobre a lareira. Enquanto mantinha a lenha
queimando no fogão e conseguia colocar a fatia de toucinho
dentro da frigideira, Angélique ouviu um tinido quando a
tampa da panela subiu e caiu sobre a pedra da lareira. Para
seu horror, viu o arroz subindo e derramando pelos lados da
panela, caindo dentro do fogo.
— Santa Maria! — gritou ela, e correu para a panela com a
faca que estava segurando e, como se quisesse matar a
panela, começou a bater nos lados.
Quando Seth chegou em casa, a cabana cheirava a arroz e
toucinho queimados, e Angélique estava na porta de trás,
tocando a fumaça para fora com seu novo avental.
— Este diabo! — gritou ela para ele, e chutou o lado do fogão.
Ele espiou a bagunça na frigideira.
— Você usou um lado inteiro do toucinho? Devia ter cortado
uma ou duas fatias finas — disse ele parando os olhos na
chita na parede. — O que é isso?
— Cortinas — disse ela, petulante, esfregando o nariz e
deixando um borrão.
— Mas não há janela aí.
— Si, mas agora não parece que há uma?
Ele notou a toalha de mesa e o vaso de flores sobre ela.
— Onde você comprou essas maçãs? O vendedor não vem
aqui até sábado.
— Eu comprei do Senor Ostler.
— O quê? Ele compra do vendedor de frutas e legumes e
depois triplica o preço! Não compre mais nada dele. Espere
pela carroça do fazendeiro no sábado.
Ele foi até a despensa e trouxe bolachas duras e charque.
— Está tudo bem — disse ele quando viu seu ar abatido. —
Eu já passei por coisa pior.
Ela olhou em volta da cabana.
— O que pode ser pior do que isto?
Ele olhou para ela fixamente. Qualquer outra pessoa teria
feito a pergunta soar como um insulto. Mas ela não parecia
querer ofender.
— A prisão — disse ele enquanto sentavam à mesa.
— Você esteve na prisão? — perguntou Angélique,
arregalando os olhos.
Ele descascou uma maçã, entregando metade a ela.
— Vi um homem batendo numa mulher. Mandei ele parar.
Mas ele tinha uma fúria nos olhos. Eu sabia que ele iria matá-
la. Então eu o impedi.
— Você... o matou?
— Quebrei sua coluna — disse Seth, depois de negar com a
cabeça. — Agora ele senta sobre duas pernas imprestáveis.
Não vai mais sair batendo em ninguém. — Ele mastigou.
Engoliu. — Eles me condenaram por tentativa de homicídio.
Eu fiquei preso por um ano na Penitenciária do Leste do
Estado. Sem trabalho forçado. Confinamento em solitária.
Minhas refeições eram empurradas por debaixo da porta.
Durante um ano, nunca vi ou falei com ninguém.
Eles terminaram o jantar em silêncio e, quando Seth
terminou, levantou e ergueu a ponta da toalha.
— Isto tem de voltar para Bill Ostler.
— Mas está cortada. Ele não vai aceitar de volta.
— Então vou ter de acrescentar o custo ao que você me deve.
Quando ele viu o queixo dela começar a tremer, ele disse:
— Você deixou o lugar muito bem arrumado.
Vendo a pequena estatueta asteca sobre o pequeno barril de
pólvora, ele a pegou e examinou.
— Isto é jade cor-de-rosa. Muito raro, muito caro.
— E mais do que isso, Senor Hopkins. Este talismã pertenceu
à rainha de Montezuma. E a figura da deusa da boa fortuna. É
um talismã da sorte que minha babá asteca me deu e que
possui um grande poder.
— Você acha que ela vai lhe trazer sorte?
— Ela me guiará até meu pai — disse Angélique com
confiança.
— Melhor ainda, pergunte a ela se pode ensinar você a
cozinhar.
Embora ele houvesse dito aquilo com um sorriso e embora
Angélique pudesse ver que ele não a queria insultar, mesmo
assim sentiu o sangue subir. O que ele estava esperando dela
era demais. Essa situação degradante não valia os cem dólares
que devia a ele.
Mas, quando ele começou a sair para voltar à tenda de
Charlie Bigelow, algo ocorreu a ela.
— Um momento, por favor. Eu quero saber uma coisa.
— Sim?
— Senor Boggs.
— Sim.
Ela viu que o queixo dele retesou.
— Você me disse que ele era um homem mau.
— Sim — disse ele, e ela esperou. Depois de um momento,
ele suspirou e disse: — Você não duraria muito tempo com
ele. Mulheres como você não duram.
— Ele me faria trabalhar?
Ele olhou nos olhos inocentes dela, olhos grandes, e não
sabia a melhor forma de dizer as coisas.
— As mulheres que moram na parte de cima do bar — disse
ele. — Isso é o que Cyrus Boggs mandaria você fazer.
Um segundo passou. Angélique de repente ficou muito
vermelha, depois ficou muito pálida.
— Amanhã — disse ela —- eu não vou queimar o arroz.

Seth continuou na tenda de Charlie Gigelow, mas todas as
manhãs ia à sua cabana para tomar café, pegar uma camisa
limpa e a marmita, que a Srta. D'Arcy preparava. Como ela
não sabia lavar roupa, a primeira camisa limpa de Seth,
depois que a Srta. D'Arcy chegou, fora comprada no
armazém de Ostler por uma soma astronômica. Depois disso,
ele ensinou a ferver água, encher a tina de madeira do lado
de fora, cortar lascas da barra de sabão e agitar a roupa na
tina. Ele conseguira ensiná-la como fazer o café da manhã,
mas logo o desjejum se tornou uma comida monótona de
pão queimado ou semi-cru, e o café, muito fraco ou muito
forte. E sua marmita consistia invariavelmente de lingüiça
defumada, pedaços aproveitáveis de pão e maçãs compradas
do vendedor nos finais de semana. No fim de cada dia Seth
voltava para o jantar, arruinado na maioria das vezes, fazendo
com que recorresse ao hotel de Eliza para comprar o jantar
para dois. Depois do jantar, enquanto Angélique lavava os
pratos, ele se sentava com o frasco que continha a coleta do
dia — lascas de ouro e pepitas flutuando na água —, que ele
limpava e secava e pesava em uma pequena balança, e depois
despejava num pequeno saco de couro que guardava numa
caixa trancada. Na hora de dormir ele se despedia e ia para a
tenda de Charlie. Quanto ao mais, sua vida em Devil's Bar
continuava como antes de sua inesperada hóspede. Ele ainda
viajava até American Fork todo fim de semana para avaliar e
depositar o ouro num banco. E nas noites de sábado enchia a
grande banheira de madeira com água quente da lareira e
esfregava a sujeira semanal de seu corpo. Depois vestia uma
roupa limpa e ia para o bar, onde bebia uísque e jogava cartas
com Llewellyn, Ostler e Bigelow. Depois disso, seguia para o
hotel onde, depois que o salão de jantar estava fechado, ele
"batia o ponto" com Eliza Gibbons, como dizia. O que a Srta.
D'Arcy fazia em seu tempo livre ele não tinha idéia.
Suspeitava, porém, que não era aprender a cozinhar.
Quando se ajoelhou na margem do rio com o sol em suas
costas, colocando uma mistura de terra e cascalho na bateia e
depois a mergulhando no rio, ele rezou para encontrar uma
pepita que cobrisse as despesas que a Srta. D'Arcy estava
dando. Ele sabia que ela não podia evitar. Ela estava se
esforçando, e com pouca reclamação, mas continuava
arruinando a comida e queimando suas camisas com o ferro e
usando muito óleo de lamparina. Esperava sinceramente que,
quando ela encontrasse o pai, Jack D'Arcy tivesse
conseguido muito dinheiro com as peles para cuidar de sua
filha dispendiosa.
Ele mergulhou a bateia no rio novamente, e quando a tirou
da água e a balançou para frente e para trás, batendo-a contra
a mão para deixar um pouco do cascalho escorregar para a
borda, pensou no francês. Toda vez que alguém novo
chegava ao acampamento, Seth perguntava se conheciam um
caçador de peles chamado D'Arcy. Ele estava começando a
ficar preocupado. Pois soubera que índios estavam
emboscando caçadores, porque estes estavam esgotando a
provisão de alimento dos índios. Tinha havido um conflito
no norte resultando na morte de muitos homens brancos.
Mergulhando a borda da bateia várias vezes, em ângulo cada
vez mais baixo até trabalhar todo o cascalho e ficar com
quase nada, só areia preta e ouro, que ele então girou
gentilmente, o olhar de Seth se perdeu nos seixos castanhos
no leito do rio, refletindo à luz do sol, que lembravam os
olhos de Angélique, especialmente o modo como
inflamavam em suas rápidas crises de raiva e ela exclamava:
"Santa Maria!", e batia num pão que não crescia ou pudim
que queimava. Então notou que o burburinho da água sobre
as pedras soava como o riso dela, que sempre acontecia logo
depois de tais crises de raiva enquanto se repreendia e
afastava um cacho do cabelo negro do rosto. Quando um
martim-pescador veio empoleirar-se num galho sobre o rio,
procurando peixes que não estavam mais lá, Seth pensou que
suas penas cinza-azuladas eram da mesma cor dos vestidos de
Angélique, daquele no qual derramara molho e passara horas
tentando limpar.
Ele balançou a cabeça. Do modo como Angélique
continuava brotando em seus pensamentos, era como se ela
o tivesse seguido até ali.
Ele tentou pensar em outras coisas: que mudanças a condição
de estado poderia trazer para a Califórnia, onde ele deveria
pensar em comprar uma fazenda, o inverno viria cedo este
ano. Mas sua mente era dona de si e parecia só querer pensar
em Angélique D'Arcy. No último sábado, por exemplo,
quando o pastor itinerante esteve em Devil's Bar e o bar foi
transformado em igreja, a Srta. D'Arcy chegara atrasada.
Quando ela apareceu na porta, todas as cabeças se viraram e
todos ficaram em silêncio. Ela estava usando um de seus
lindos vestidos com um magnífico véu espanhol de renda
sobre a cabeça e os ombros, e estava com um livro de
orações e um rosário nas mãos enluvadas. Quando o silêncio
se estendeu — católicos eram vistos com alguma suspeita
neste povoado predominantemente protestante —, em vez
de ir para a frente, a Srta. D'Arcy tomou um assento nos
fundos, com as prostitutas.
Sendo mais pesado que a areia, o ouro ficava no centro da
bateia enquanto a areia movia para o exterior, permitindo
que Seth catasse as pepitas e lascas com pinça. Então ele
drenava cuidadosamente o resto da água e tocava os grãos de
ouro que sobrava com o dedo seco, pegando-os e colocando
no frasco. Era um trabalho difícil, demorado e prejudicial
para a coluna. Às vezes um dia de trabalho não dava em
nada. Outras vezes ele encontrava pepitas que pareciam tão
grandes e brilhantes como o sol.
Terminado este lote, descansou sobre os calcanhares e secou
a testa com um lenço. Olhou para as ruínas da aldeia
indígena do outro lado do rio. Seth fora um dos primeiros a
obter concessão desse braço de rio. No dia em que chegou a
aldeia estava prosperando. Os índios ficaram do outro lado
do rio, olhando em silêncio os loucos homens brancos
peneirar a terra. E então outros homens brancos chegaram
com pás e picaretas, e construíram represas e grandes berços
de madeira para dragar o cascalho do leito do rio. Em pouco
tempo, os peixes desapareceram e então os índios partiram,
em busca de outras fontes de alimento.
Alguns até foram em busca de ouro, porque, embora não
tivessem uso para o metal, eles aprenderam que podiam
comprar cobertores e comida com ele. Alguns foram
trabalhar nas fazendas dos homens brancos e lugares como
Sutter's Sawmill. Quando ele e a Srta. D'Arcy pararam em
Sutter's Mill para dar água aos cavalos a caminho de
Sacramento, eles viram vários índios acocorados ao sol do
meio-dia. Logo que as gamelas de comida foram trazidas e
colocadas no chão, os índios avançaram sobre elas, de
joelhos, enchendo loucamente as bocas de comida como se
soubessem que não haveria o bastante.
A maioria dos índios, no entanto, estava escondida nas
montanhas. Havia alguns homens brancos que achavam que
os índios não tinham mais lugar aqui e iam atrás deles com
armas. O governo federal, enquanto isso, estava tentando
reunir todos os índios e confiná-los numa terra reservada. As
únicas aldeias ainda ocupadas eram habitadas por mulheres,
mas mesmo elas estavam começando a desaparecer por causa
dos crescentes sequestros. Quando notícias sobre ouro
espalhavam, cada homem e mulher na Califórnia largava o
que estava fazendo e corria atrás do ouro. Fazendas e
ranchos ficavam sem trabalhadores de repente, os ricos
ficavam sem serviçais. Então agora havia um comércio
lucrativo para mulheres e crianças indígenas raptadas. Elas
eram levadas para o sul e vendidas para trabalhar.
Enquanto descansava um pouco sob o calor do sol, Seth
contemplou as cores das flores silvestres, o azul do céu,
coisas que não notava há anos. Lembranças da Penitenciária
do Leste do Estado o perseguiam, com seu programa
experimental de manter os homens isolados para os
reabilitarem. O que os oficiais da prisão não sabiam era que,
para Seth Hopkins, a solitária não fora muito diferente da
cabana de seu pai ou da escuridão das minas de carvão. No
dia em que foi solto, o diretor do presídio lhe dissera:
"Espero que tenha aprendido alguma coisa aqui." Mas a única
coisa que Seth aprendera foi que cada homem estava sozinho
neste mundo. Cada homem nasce sozinho e deve sobreviver
sozinho. E nenhum homem pode depender de ninguém para
ajudá-lo a viver.
Quando ele pegou a bateia e se preparou para mais uma hora
de trabalho duro, uma imagem surpreendente apareceu em
sua mente: a Srta. Angélique D'Arcy dormindo em sua cama,
os cabelos fartos e negros espalhados sobre o seu travesseiro.

Um feitiço estava sendo lançado sobre o povo de Devil's Bar.
Eliza Gibbons estava certa disso. Um feitiço tramado pela
dissimulada Srta. D'Arcy, a bela viúva francesa que Seth
encontrara no cais de San Francisco e trouxera para casa
como um gato perdido. Eliza não era tola, nem cega, talvez
por isso ela fosse a única pessoa imune ao poder da criatura.
Era como se um tipo de histeria coletiva tivesse tomado
conta do povo de Devil's Bar.
Eliza primeiro suspeitou de que alguma coisa estava errada na
manhã de sábado em que a criatura surpreendera todo
mundo aparecendo no hotel de Eliza enquanto Seth estava
fora em American Fork, fazendo sua visita semanal ao banco.
O pequeno saguão e sala de jantar estavam cheios com os
cidadãos de Devil's Bar tomando o bom café de Eliza ou
pegando a correspondência e o jornal que tinham acabado de
chegar na diligência da manhã. O hotel de Eliza era um lugar
para reuniões e encontros, compartilhar mexericos e
notícias, e para se desfazer do cansaço de uma semana nos
campos de mineração de ouro. A viúva francesa de Seth
surgira de repente na entrada da frente e o lugar caiu em
silêncio mortal.
Eliza nunca esqueceria de como as cabeças se viraram de
repente e todos ficaram olhando. E então, no minuto
seguinte, os homens fizeram algo que deixou Eliza de boca
aberta: eles se levantaram das cadeiras e tiraram os chapéus!
Nenhuma outra mulher no acampamento jamais recebera tal
tratamento. Muito menos a própria Eliza, que tinha a firme
opinião de que se alguma mulher deveria receber um
tratamento digno da realeza, esta mulher era Eliza Gibbons.
Não fui eu a única a pensar em fazer contrato com a
companhia de diligências para que a correspondência e os
jornais fossem entregues no hotel! Não sou a única que foi
conivente com um modo de construir uma câmara frigorífica
para que o povo pudesse conservar seus presuntos e
manteiga frescos, aves de caça para uma ocasião especial, até
a garrafa de champanhe secreta de Bill Ostler? Minhas tortas
de carne não são famosas em toda parte até Nevada? Que
agradecimento eu recebo? Só resmungos de que meus preços
são muito altos.
A atitude dos homens, naquela manhã de sábado, alarmara
Eliza. Especialmente quando a Sra. Ostler saudou a criatura
com um "bom dia", e as outras senhoras fizeram o mesmo!
A Srta. D'Arcy explicara que queria comprar algo para o
jantar do Sr. Hopkins, e assim comprara frango frito, purê de
batatas e molho de miúdos da cozinha de Eliza. Eliza quisera
informar à criatura que a comida era só para os clientes do
hotel, mas como poderia dizer isso quando não era verdade e
todos estavam ali para presenciar a mentira? Ela não tivera
escolha senão deixar a moça sair com a cesta cheia da melhor
comida de Eliza, que, ela não tinha dúvida, a criatura diria
que cozinhara ela mesma.
E não parara por aí. Houve o sábado à noite quando um
grupo de rabequistas veio ao acampamento para fazer um
baile à moda antiga e o baile terminou numa briga porque
todos os homens queriam dançar com Angélique. E no dia
em que alguns montanheses vieram ao hotel de Eliza com
suas mulheres indígenas e Eliza estava prestes a mandá-los
embora, quando Angélique veio correndo, sabendo da
chegada deles, para saber se eles conheciam seu pai e,
sabendo que eram franceses, fazê-los tagarelar como
macacos numa língua estrangeira com Llewellyn, que deixou
Welshman abobalhado, pedindo a ela depois que lhe desse
lições de francês! Ingvar Swenson mandando uma dúzia de
ovos frescos para a Srta. D'Arcy como presente de boas-
vindas; a Sra. Ostler querendo a opinião da Srta. D'Arcy
sobre a cor do novelo de lã que escolhera para um novo xale;
e Cora Holmsby perguntando à Srta. D'Arcy a indicação de
um perfume.
Mas a gota d'água fora o incidente com os pêssegos.
Eliza fizera um contrato secretamente com um fazendeiro
no vale para trazer uma carroça de pêssegos sobre a garantia
de que todos os comprariam, com Eliza recebendo uma
percentagem na venda. Como prometera, pêssegos eram um
luxo tão raro que todos se agruparam em volta da carroça,
pressionando notas e sacos de pó de ouro contra o vendedor.
E então de repente a criatura de Seth abriu caminho na
multidão, balbuciando alguma coisa sobre a fruta estar
estragada e que comê-la deixaria todos seriamente doentes.
Houve um grande tumulto, com o fazendeiro gritando,
irritado, e agitando os braços, e a Srta. D'Arcy tentando
impedir as pessoas de pegar os pêssegos, e Seth Hopkins
chegando e tentando acalmar a todos. Quando lhe
perguntaram por que ela achava que as frutas estavam
estragadas, a criatura não conseguira sequer explicar. Apenas
olhou para Seth com aqueles olhos de feiticeira e disse:
— Por favor, todos ficarão doentes se comerem.
Para o espanto de Eliza, Seth dissera:
— Bom, então talvez não devêssemos comprar os pêssegos.
E todos devolveram os que tinham selecionado.
Enquanto os outros ficaram por perto sem saber o que fazer,
com o fazendeiro gritando invectivas numa língua que
ninguém reconhecia, Eliza fora até a carroça e comprara uma
quarta parte dos pêssegos. Os outros a seguiram
imediatamente, quase esvaziando a carroça do homem e o
fazendo ir embora com um sorriso.
O que fizera o incidente queimar na mente de Eliza foi o
modo como Seth aquiescera à admonição da criatura, como
se ela tivesse secado sua força de vontade. Foi então que
Eliza compreendera que estava na hora de encarregar-se da
situação.
E assim, naquela tarde de fim de verão com grilos cantando e
um gosto de outono no ar, ela serviu Seth Hopkins com uma
segunda porção generosa de torta de pêssego.
— Ela sabe de coisas — dissera ele entre bocados, engolindo a
torta doce e suculenta com leite. — Eu não sei como ou por
que, mas a Srta. D'Arcy de algum modo sabe de coisas. Ela
disse que viu o acampamento cair doente depois de comer os
pêssegos. Como uma visão. — Ele passou a colher em volta
do prato, colhendo as últimas migalhas e calda. — Algumas
pessoas têm o dom da visão, sabe. Mulheres, na maioria.
Eliza não sabia nada sobre visões ou dons, mas conhecia uma
mulher astuciosa e dissimulada quando via uma. Depois que
o vendedor de pêssegos foi embora, Eliza fizera uma fornada
de tortas para que as pessoas que perderam o vendedor ainda
pudessem se deleitar. Ela até mandara uma torta para a
cabana de Seth, só para saber no dia seguinte que a criatura
jogara fora! Todos no acampamento saborearam as tortas de
Eliza e declararam que eram as melhores no território. Quem
aquela criatura pensava que era para jogar uma torta fora?
Mas Eliza sabia que o gesto tinha menos a ver com a
preocupação da Srta. D'Arcy com as frutas do que com ela
apossar-se de Seth Hopkins. Eliza sabia qual era a intenção da
criatura. Mesmo que Seth não o soubesse.
Durante algumas noites de sábado agora, enquanto Seth se
sentava com Eliza na varanda do hotel, ele enviara sinais
conflitantes. Num momento ele lhe dizia que sua paciência
estava chegando ao fim com a Srta. D'Arcy e que ela estava
lhe custando um braço e uma perna para manter, no
momento seguinte comentava sobre o perfume da Srta.
D'Arcy, ou sobre seu jeito charmoso de rir. Eliza sabia o que
nem o próprio Seth sabia: que ele também estava enfeitiçado
pela criatura.
Eliza não esperara competir por Seth. Esta foi uma das razões
por que viera do leste para a Califórnia, porque os homens
aqui excediam as mulheres numa proporção de pelo menos
dez para cada uma. Mesmo uma mulher igual a ela, que fora
"passada adiante" e era uma solteirona de trinta anos, tinha
uma boa chance de tirar uma sorte grande como Seth
Hopkins. Ela passara oito meses tentando fazê-lo olhar para
ela de um modo "matrimonial", seduzindo-o com tortas de
geléias, tortas de carne e elogios à sua força masculina
sempre que consertava alguma coisa no hotel. Ela nunca o
criticava, mesmo quando ele limpava a boca na toalha de
mesa em vez de usar a manga da camisa, ou quando arrotava
sem pedir desculpa. Ela nunca mencionou que achava que
ele devia expandir sua concessão para dentro da concessão
de Charlie Bigelow, já que Charlie não a explorava cem por
cento. Ela não empurrava Seth para ambições maiores, como
sugerir que ele encontraria muito mais ouro se usasse uma
represa em vez de bateia — o argumento dele seria que
aqueles que estão rio acima não deviam ser gananciosos,
porque os que estavam rio abaixo não pegariam nada. Ela
mordia a língua quando ele declarava que tudo o que queria
era o bastante para viver confortavelmente, enquanto outros
homens em Devil's Bar estavam loucos para ficar mais ricos
que Midas. Eliza sentiu que estava chegando perto da hora
em que podia plantar a semente na mente dele — aqui
estavam eles, bons amigos até agora, e ajudando um ao outro
como deviam fazer os vizinhos, e como ele precisava de uma
mulher e ela precisava de um homem por perto, isso só o
levaria a uma conclusão lógica. Mas agora a Srta. D'Arcy o
estava seduzindo com seus vestidos de cores vivas e
desamparo feminino.
— Não vai demorar muito agora — disse ele enquanto enchia
o cachimbo — até a Califórnia virar um estado.
— Quando isso acontecer, eu espero que eles façam alguma
coisa sobre todos esses estrangeiros que vêm para cá. Fiquei
sabendo que há chineses em American Fork agora.
— Nós não somos estrangeiros, Eliza? — disse ele, olhando
para ela.
— É claro! Eu estava brincando! — respondeu ela, o sorriso
congelado.
Ele concordou e voltou a acender o cachimbo. — Todos aqui
vieram de algum outro lugar. Exceto os índios. Acho que
Deus os criou bem aqui.
Eliza não disse nada. Ela detestava os índios californianos e
achava que não poderiam se livrar deles cedo o bastante.
Graças a Deus por homens como Taffy Llewellyn e Rupert
MacDougal que saíam em expurgos periódicos pela zona
rural. Se fosse por Seth Hopkins, Devil's Bar estaria inundado
de selvagens.
— A Srta. D'Arcy está melhorando? — perguntou ela,
lembrando de outra criatura detestável.
— Eu estou numa encruzilhada, Eliza — disse ele, dando
umas baforadas. — Ela vem num belo pacote, mas é
completamente inútil. Tentei ensinar a ela algumas coisas,
mas é como se ela tivesse medo do fogão. Quando a gordura
do toucinho espirra, ela pula para trás. Não quer sujar
nenhum de seus vestidos finos de gordura. E todos os quatis
e raposas adoram minha cabana, ela joga tanta comida fora.
Cheguei em casa uma noite dessas e lá estava a Srta. D'Arcy
correndo com a frigideira em chamas. Jogou panela e comida
no riacho. Tive de comprar uma frigideira nova com Bill
Ostler, e você sabe quanto ela me custou! — Ele esticou as
pernas, cruzando-as nos calcanhares. — Nunca conheci uma
mulher que não soubesse cozinhar e costurar. Não é igual a
você, Eliza. Você é uma mulher muito capaz. Você não se
preocupa em ser bonita ou em cuidar da aparência. E sabe o
valor de um dólar.
Eliza comprimiu os lábios em uma linha fina.
— Talvez ela não fique muito tempo e você ficará livre dela.
— Não vejo isso acontecendo. Ela está trabalhando para pagar
a dívida comigo. E está procurando pelo pai. Não posso largá-
la sozinha. Não com ela sendo tão desamparada.
Eliza queria dizer alguma coisa sobre a Srta. D'Arcy e seu
desamparo, mas, em vez disso, falou:
— Você tem certeza que existe um pai?
Ele lançou-lhe um olhar de verdadeira surpresa.
— Por que ela mentiria?
Eliza não respondeu. Como Seth chegara a idade de trinta e
dois anos sem saber que havia certas mulheres que diriam
qualquer coisa para fazer um homem cuidar delas?
— Enquanto isso — disse ele — acho que vou ter de agüentar
o ronco de Charlie Bigelow e batatas queimadas para o jantar.
— Você sempre pode vir aqui para uma boa refeição. Frango
frito, biscoitos e molho. Sua comida predileta.
— Eliza — disse ele, rindo —, você cobra um braço e uma
perna pelos seus jantares.
— Eu lhe faria um desconto especial, você sabe disso.
— Não. Não seria justo com os outros homens que estão
trabalhando tão duro como eu. Eu insistiria em pagar o preço
cobrado, justo e honesto.
Eliza manteve os pensamentos para si mesma. Havia vezes
em que o senso de justiça e honestidade de Seth Hopkins a
irritava.
— Bem, você devia ser louvado por fazer sua obrigação cristã
e salvar pobres criaturas.
— Ser cristão não tem nada a ver com isso. Não podia deixá-
la à mercê de tipos como Boggs. Qualquer outro homem
teria feito o mesmo.
Qualquer outro homem, pensou Eliza, teria trazido a criatura
para casa e a colocado numa gaiola dourada para admirá-la
como um idiota. Mas não Seth Hopkins. Quando se tratava
de mulheres, ele usava antolhos. Uma vez ele falara sobre
uma namorada em sua terra que acabara se casando com
outro. Em todas as conversas sobre a moça, Seth nunca
pronunciara a palavra amor. Eliza estava começando a
questionar se ele era um daqueles homens incapazes de
amar. O máximo que uma mulher poderia querer dele era
lealdade e proteção. Bom, isso era tudo o que Eliza esperava
de um homem. Ela não sabia sequer se o amor romântico
existia, o tipo que os poetas descreviam. Homens podiam ser
muito agradáveis quando pensavam que uma mulher
receberia uma herança, lembrava ela com amargura, e depois
desapareciam quando sabiam que ela de fato estava sem
vintém. Não, Eliza preferia a esperteza de Seth. Pelo menos
sabia qual era sua posição com ele. E se viessem a se casar,
ela nem esperaria se apaixonar.
— Você gostaria que eu tentasse ajudar? Ensinar à Srta.
D'Arcy algumas comidas básicas?
— Ah, Eliza, eu ficaria muito agradecido! — disse ele,
parecendo bastante aliviado. — Eu acho que Angélique
poderia se beneficiar com a ajuda de uma mulher mais velha.
O rosto de Eliza Gibbons, que era só cinco anos mais velha
que a Srta. D'Arcy e dois anos mais nova que Seth, ficou
duro e seus olhos lampejaram como faíscas de carvão em
brasa. Mas ela conseguiu manter o sorriso, enquanto dizia:
— Deixe tudo comigo. Vou ajudar a pobre Srta. D'Arcy a
lidar com um fogão.

Angélique não podia acreditar. Estragara as batatas de novo!
Enquanto olhava para a maçaroca queimada na panela,
Angélique sentiu as lágrimas ameaçarem brotar. Como as
outras mulheres conseguiam fazer isso? Ela ou deixava o
fogão muito quente ou não quente o bastante. Se prestasse
atenção à carne na frigideira, os legumes queimavam; se
mexesse o ensopado, a broa de milho pegava fogo. Como
manejar tudo ao mesmo tempo? Enquanto jogava a maçaroca
preta fora, sabendo que os quatis e raposas fariam dela uma
refeição mais tarde, imaginou qual seria a reação do Sr.
Hopkins: quando ela estragava uma comida ou abria buracos
em suas camisas com o ferro, ele nunca ficava zangado ou
criticava. Ele simplesmente dizia: "Você aprenderá e fará
melhor da próxima vez." Seth Hopkins era o homem mais
calmo que ela já conhecera. Não podia imaginá-lo à beira de
matar um homem. Contudo ele dissera que fora para a prisão
exatamente por isso. Ele não parecia ter esse tipo de ira
dentro dele. Talvez a mulher que ele tivesse protegendo
fosse alguém que amasse. Haveria talvez uma parte
escondida de Seth Hopkins, um poço de paixão esperando
pela chegada da mulher certa, alguém como ela, que en-
tendia de paixão?
Repreendendo a si mesma por tais pensamentos — cada vez
mais ela se via sonhando acordada com Seth Hopkins, sua
altura, sua força, seu rosto bonito, pensando até em como
seria ser beijada por ele —, voltou para a cabana com suas
sombras escuras, cheiros rançosos e solidão. Ela enfiara
estacas na parede e pendurara suas camisolas e vestidos para
poder trabalhar nas manchas e pequenos rasgos no tecido.
Manter suas roupas em condições prístinas era quase um
trabalho de horário integral. Era também o que mantinha sua
sanidade.
Angélique nunca pensara que a vida poderia ser tão difícil.
Estava até começando a ficar com bolhas e machucados nas
mãos, e seus músculos doíam o tempo todo. Era só trabalho,
trabalho e trabalho sem qualquer diversão. Nem o circo
ambulante parou em Devil's Bar, porque o acampamento era
muito pequeno para valer a pena. E o único piano ficava no
bar, onde a entrada de mulheres não era permitida. As únicas
diversões vinham das brigas nas noites de sábado, as
ocasionais brigas de socos na rua, ou na vez em que o
acampamento inteiro foi acordado no meio da noite quando
o alambique do galês Llewellyn explodiu, ou no fim de tarde
em que Bigelow, sem agüentar mais a execução do concerto
de gaita de foles de Rupert MacDougal, saiu com a
espingarda, apontando para os foles, e dizendo: "Ou você
aprende outra música ou eu vou mandar você e essa
engenhoca para o reino do céu."
Houve um acontecimento alegre, quando o bebê dos
Swensons nasceu. Crianças sendo uma raridade nesta parte
do território, os mineiros vieram de todas as partes para
visitar e trazer presentes para a criança, até índios vieram
trazendo colares e penas. Angélique vira homens feitos
chorarem ao ver a criança, e o momento foi tratado com
tanta reverência que a lembrou do nascimento de Jesus
(embora mais tarde todos os homens tivessem ficado
bêbados, quase destruindo o acampamento com brigas e
tiros).
Mais do que tudo, ela estava saudosa de casa. Morria de
vontade de comer pimentões picantes e tortillas. Seus
ouvidos ansiavam pelo som de uma guitarra espanhola.
Sentia falta de andar pelos imensos e abertos mercados da
Cidade do México admirando as cerâmicas, tecidos e os raros
trabalhos de madeira esculpida. Ela gostaria que houvesse
alguém com quem pudesse falar espanhol.
Pegando a estatueta asteca e fechando os dedos em torno
dela, sua forma familiar uma lembrança reconfortante de
casa, ela mentalmente recitou uma prece para a pequena
deusa dar-lhe força, depois beijou o jade fresco e o recolocou
ao lado da cama.
— Olá? Srta. D'Arcy?
Angélique virou-se para encontrar Eliza Gibbons parada na
porta. — Oh! Srta. Gibbons! —disse ela, adiantando-se para
pegar uma cadeira e limpar o assento. — Que honra. Por
favor, entre.
Eliza reparou no vestido de cetim com inúmeras anáguas da
mulher mais jovem, pedras de água-marinha brilhando em
suas orelhas. Como se, pensou Eliza com desprezo, ela
estivesse pronta para um grande baile. Mas havia manchas de
farinha em seu rosto e cabelos, e olhando de perto podia-se
notar manchas no vestido que nenhuma quantidade de sabão
conseguira retirar. Não era de admirar que a criatura não
pudesse cozinhar. Ela se preocupava mais com as condições
de suas roupas do que com a alimentação de Seth Hopkins.
— Confesso meu descuido por não visitá-la — disse Eliza
enquanto permanecia de pé. — O Sr. Hopkins nos deu a
entender que a sua estada aqui seria temporária.
— Pensei que meu pai iria me encontrar logo.
— E agora o inverno está chegando. Quando as chuvas
chegarem, viajar é difícil, e a comunicação, impossível.
Inverno!, pensou Angélique com tristeza. Ela nunca resistiria
a um inverno neste lugar.
— Eu interrompi você no fogão — disse Eliza.
— Sou um desastre cozinhando. Tenho causado mais
problemas do que ajudado o pobre Sr. Hopkins.
— Vejo que está fazendo sopa?
— Eu tentei antes. Mas o Sr. Hopkins diz que minha sopa não
tem gosto.
Eliza tirou o toucado.
— Como é que você faz o tempero?
— A Sra. Ostler me disse para colocar duas pitadas de sal. E o
que eu faço, assim.
— Só isso? Só estas duas pitadas de sal para a panela inteira?
— Sí.
— Então é esse o seu problema. A Sra. Ostler quis dizer para
acrescentar duas pitadas de sal para cada porção. Esta é uma
panela grande, no mínimo dez porções. Derrame algum sal
na mão. Pronto. Essa é a quantidade que deve colocar na
panela.
— Tudo isso? — perguntou Angélique, os olhos arregalados.
Eliza sorriu.
— E isso que vai dar gosto à sopa. Agora vou lhe contar um
segredinho que uso em minha própria comida — disse ela,
estendendo o braço para pegar o pote de melado. — E que o
Sr. Hopkins diz ser o melhor molho que ele já provou...
Angélique estava esperançosa novamente quando Seth
chegou em casa. Ele se sentou à mesa e olhou de soslaio
quando Angélique pôs o prato diante dele, surpreendendo-o
com uma piscadela. Ele olhou para o molho. Depois levou o
prato até o nariz e cheirou.
— Tem alguma coisa errada? — perguntou ela.
— Este molho... parece diferente. Tem um cheiro diferente
também.
— Eu acrescentei o ingrediente secreto — disse ela, sorrindo.
Ele experimentou a sopa primeiro, derramando uma boa
colherada em sua boca faminta. Um segundo depois espirrou
tudo sobre a mesa. Rapidamente tomando um gole de água e
depois passando a mão sobre a boca, perguntou:
— O que pôs nesta sopa?
Ela ficou olhando para ele.
— O que há de errado com ela?
— Está horrível!
O silêncio reinou, deixando apenas o zumbido das moscas no
ar. Depois de um momento, pálida e lutando para se
controlar, Angélique colocou as palmas da mão sobre a mesa
e se levantou lentamente.
— Sr. Hopkins, o senhor me salvou de um destino terrível e
eu lhe serei grata para sempre. Mas esta não é uma boa
situação para nenhum de nós, e eu acho que devo ir embora.
Ele olhou assustado para ela.
— Ir embora! Eu só quero saber o que você fez com esta
sopa. Tem gosto...
— Tem gosto ruim. Tudo o que eu faço é ruim. Eu nunca vou
melhorar.
Ela foi até o pequeno barril de pólvora, com as costas retas
em sua dignidade, pegou a deusa de jade cor-de-rosa, olhou
para ela por um longo momento, depois voltou e colocou a
estatueta gentilmente sobre a mesa.
— Este é o pagamento pela minha dívida — disse ela
calmamente. — Isto vale mais do que lhe devo. Mas eu pago
com ela para ficarmos quites. Vou para Sacramento na
diligência quando ela passar daqui a três dias.
Não havia um só de seus vestidos que não tivesse pelo menos
uma pequena mancha. Ela tentara tanto mantê-los em bom
estado, mas fora impossível protegê-los da gordura e do
molho, do café e do suco, da fuligem e da poeira. Os aventais
não ajudaram, e Bill Ostler não tinha removedores de
mancha adequados. Quando chegasse a Sacramento,
planejava devotar suas energias restaurando seu lindo guarda-
roupa.
Enquanto punha cuidadosamente cada vestido no baú de
viagem, Angélique tentava não pensar no homem que estava
deixando. Seth estava em seus sonhos e pensamentos dia e
noite, às vezes ele aparecia como um salvador gentil, outras
vezes como um amante apaixonado. Quando foi que ele
entrara em seu coração? Como não viu isso acontecendo?
Seth estivera fora nos três últimos dias, e quando ela ouviu
barulho de passos lá fora, seu coração disparou. Mas era só
Bill Ostler, checando.
— Fiquei sabendo que estava indo embora, senhorita. Eu teria
vindo antes mas minha esposa está de cama com um
resfriado. Fiquei acordado a noite inteira com ela.
Ela notou as sombras sob seus olhos e a cor de suas faces.
— E uma pena estar partindo, Srta. D'Arcy. A senhorita é a
melhor coisa que aconteceu a Seth. Um pouco de boa sorte
lhe faria bem. Ele lhe contou que esteve preso?
— Contou. Ele quase matou um homem que estava batendo
numa mulher.
— Contou que o homem era seu próprio pai e que a mulher
era sua mãe? O velho Hopkins bateu com tanta força na
cabeça dela que quase a cegou. Foi quando Seth decidiu que
estava na hora de pôr um fim no reinado de terror do pai. Ele
não se arrependeu. Foi por isso que lhe deram uma pena
dura na prisão. Será que poderia me dar um copo de água?
Minha garganta está muito inflamada.
Ela lhe serviu água.
— Bem, adeus, Srta. D'Arcy. Foi um prazer.
Ela estava amarrando o toucado sob o queixo quando Seth
finalmente apareceu na porta. Ele parecia que não dormira
há dias. Observou suas roupas de viagem, o toucado e as
luvas, o baú perto da porta, pronto para a diligência, e disse
com voz cansada:
— Estive pensando nesses três últimos dias. — Pegando a
mão dela, devolveu o talismã de jade, fechando seus dedos
em torno da pequena deusa asteca. Depois pegou o livro-
caixa e rasgou a folha intitulada Angélique. — Eu cometi um
erro trazendo-a para cá. Não sabia o quanto seria difícil para
você. Não sabia como este mundo era diferente do mundo
de onde veio. Bom, você sabe onde estou. Quando encontrar
seu pai, ele pode vir me pagar a dívida. Mas eu não a
considero responsável por ela.
Ele olhou em volta. A cabana parecia deserta. Ela retirara
toda a cor, até a cortina de chita de uma janela que não
existia.
— Eu vou para Sacramento com você para garantir que
encontre um lugar decente para ficar — disse ele,
pressionando a mão na testa.
— O senhor está bem, Sr. Hopkins? — perguntou ela de
repente, preocupada, lembrando-se de Bill Ostler.
— Para dizer a verdade, já me senti melhor. Charlie Bigelow
pegou um resfriado forte. Acho que peguei um pouco
também. Se pudesse me sentar um pouco...
Ela puxou uma cadeira e deu a ele um pouco de água.
— Há quanto tempo está sentindo isso?
— Há dois, talvez três dias. Pensei que ia passar, mas parece
que está ficando pior. E agora minha cabeça...
— O senhor devia se deitar um pouco.
Ele não discutiu. Quando se levantou da cadeira, cambaleou,
e ela o segurou pela cintura.
— Ficarei bem — disse ele enquanto encostava a cabeça no
travesseiro. — Só preciso fechar um pouco os olhos. É
melhor você ir agora. A diligência chegará logo. Diga-lhe
que serão dois passageiros.
Ela ficou olhando enquanto ele fechava os olhos, depois
tirou uma das luvas e pôs a mão na testa dele. Seth estava
ardendo em febre".
Angélique pensou em Bill Ostler e sua esposa. Lembrou-se
do fazendeiro e dos pêssegos há oito dias e da visão que
tivera do acampamento caindo doente.
Lançou uma olhar para a porta. A diligência chegaria em
alguns minutos. E então Seth gemeu, e foi um gemido de
dor.
Tirando o toucado, puxou uma cadeira para perto da cama e
se sentou. Quinze minutos depois, ouviu a diligência
descendo a rua com o seu chiado. Ela permaneceu ao lado de
Seth.
Quando ele acordou, depois do pôr-do-sol, ela conseguiu
persuadi-lo a tomar um café morno. Ele tentou sair da cama,
dizendo que devia ir à tenda de Charlie, mas não teve força.
Então Angélique o acomodou melhor na cama e foi até o
armazém de Ostler onde comprou cobertores e outro
travesseiro, voltando para fazer uma cama para ela no chão.
Na manhã seguinte Seth estava pior.
Com a mão em sua testa febril, ela sentiu o pulso dele. Estava
lento demais para uma febre tão alta. De repente, ficou
apavorada quando se lembrou da febre que varrera a Cidade
do México dez anos antes. A febre alta e o pulso fraco
alarmaram os médicos, pois eram os sinais característicos de
uma terrível doença: febre tifóide.
Fechou os olhos com medo. Estivera certa sobre o vendedor
de pêssegos. Ele era o que as curandeiras no México
chamavam de portador. Trouxera a doença para Devil's Bar.
Angélique ficou paralisada de medo. As pessoas morriam de
tifo, até homens jovens e saudáveis.
Enquanto imaginava freneticamente o que deveria fazer,
quem deveria chamar para ajudar, Seth acordou e olhou para
ela com os olhos ardendo em febre.
— Você ainda está aqui — murmurou ele. — Pode me dar
um pouco d'água?
De repente, virou-se para o lado da cama e vomitou.
— Oh, meu Deus, sinto muito — gemeu, enquanto caía de
costas. Para seu desespero, Angélique viu que ele também se
sujara.
E de repente tudo o que acontecera nas semanas anteriores
— a viagem no Betsy Lain, o ringue de leilão, Devil's Bar —
caiu sobre ela como uma onda negra malevolente e ela não
pôde agüentar mais. Saiu correndo da cabana chorando,
querendo o pai, odiando aquele lugar, odiando Seth Hopkins.
Sem enxergar nada, fugiu do acampamento, atravessando o
riacho e subindo a colina coberta com tocos de árvores.
No topo da colina, chegou à floresta onde caiu no chão e
chorou amargamente, toda a solidão e sentimentos de
abandono e saudade expurgando-se dela. E então a dor
encheu sua cabeça e ela estava longe do remédio, assim
Angélique não teve escolha senão deixar a crise seguir seu
curso, aquela maldita doença que herdara de sua avó Angela.
Caída no chão, imobilizada de dor e paralisia, visões
invadiram sua mente, não profecias ou alucinações, mas
lembranças de anos atrás, quando tinha seis anos: aquela
estranha vez no Rancho Paloma quando devia ter havido um
casamento, mas alguma coisa aconteceu e todos saíram de
repente. Angélique não sabia o que fora, mas de repente
lembrou-se da crise de nervos de sua mãe. Carlotta, de quem
Angélique sempre lembrava como sendo uma pessoa forte e
prática, reduzida à histeria. Tinha algo a ver com o
desaparecimento misterioso de tia Marina, e algo
acontecendo com o avô Navarro. Mas o que sobressaía na
mente de Angélique, tão agudo como os picos das
montanhas que a rodeavam, era o rosto da avó Angela —
redondo, pálido e lindo — e sua voz, tão clara como o pio
das aves na floresta, quando ela disse: "Eu fiz o que tinha de
ser feito. Você pode dizer que foi errado, e talvez tenha sido
errado, mas era o que tinha de ser feito." E depois Carlotta
entrando em pânico: "Eles virão buscá-la, mãe! Eles vão
enforcá-la! A senhora precisa fugir, precisa se esconder." E a
avó, tão calma e forte: "Eu não vou fugir nem me esconder.
Eu vou enfrentar o que Deus reservar para mim. As
mulheres Navarro não são covardes."
D'Arcy levara a mulher e a filha embora no dia seguinte, e a
lembrança apagara na mente de Angélique. Imaginava agora,
no meio de uma terrível dor de cabeça, o que acontecera
naquela noite: por que sua mãe pensara que a avó Angela
seria presa e enforcada? Para onde fora tia Marina? Tinha sido
encontrada?
Quem saiu a galope naquela noite numa trovoada de cascos?
Finalmente, a crise começou a passar. A dor de cabeça
diminuiu, as vozes e visões enfraqueceram como sonhos ao
amanhecer. Quando Angélique abriu os olhos, pareceu ver,
ouvir e cheirar a floresta à sua volta pela primeira vez. Que
majestade! Que beleza! Respirou o ar e era como inalar
poder. Inalar a alma da floresta. As mulheres Navarro não são
covardes. Angélique olhou para o paraíso verde onde de
repente se encontrava e, por entre as árvores, viu o
acampamento rústico que há pouco desprezara. E pensou: eu
farei o que tiver de ser feito.
Voltou à cabana para encontrar Seth tentando se despir. Ele
colocara água numa bacia para se lavar, mas caíra no chão.
Os lençóis e cobertores estavam arruinados. Refazendo a
cama com os únicos lençóis que restaram, ela o fez deitar-se,
cobrindo-o com o acolchoado que ele guardava para o
inverno, depois foi até o hotel de Eliza, onde a arrumadeira
informou que a Srta. Gibbons estava doente, bem como os
quatro hóspedes do hotel. Mas a cozinheira estava na
cozinha, e lhe deu pão e sopa, creme de leite e lingüiça.
Depois de conseguir lençóis limpos com a arrumadeira, foi
até Bill Ostler que, embora claramente febril, insistiu em que
estava bem. Ele a preveniu, no entanto:
— A febre alta pode ser perigosa se não baixar rapidamente.
Pode causar ataques e danos mentais permanentes. Até a
morte. Mantenha a pele de Seth úmida e abane-o. Dê a ele
muita água fresca para beber. E não tente lavar os lençóis.
Tudo deve ser queimado, vestes, roupas de cama, tudo.
Por último, conseguiu com Llewellyn Welshman um catre
para fazer uma cama para ela.
Voltou para encontrar Seth apertando a barriga e gemendo.
Angélique esquentou a comida que comprara no hotel, mas
ele não conseguia reter o alimento.
A temperatura dele subiu gradualmente durante três dias e
depois permaneceu elevada. Acessos de vômito eram
seguidos pela diarréia, de modo que ela teve de voltar ao
hotel para buscar mais lençóis, queimando os que estavam
sujos atrás da cabana. Seth, enfraquecido na cama, tentava
não deixar sua dor transparecer, mas Bill Ostler dissera a ela o
que o tifo fazia e como atacava os intestinos com úlceras que
causavam grande agonia.
Era preciso banhá-lo. Então ela deixou de lado a timidez e,
lembrando a si mesma que fora casada, dava-lhe banhos com
uma bacia de água morna, mantendo o cobertor sobre suas
partes para a própria dignidade dele. Quando viu cicatrizes
nas costas dele, aproximou a lamparina e as examinou. Elas
cruzavam sua carne tantas vezes que não podiam ser
contadas. Elas tinham alguns anos, então soube que deviam
ser das chicotadas na prisão. Cicatrizes nos pulsos e tornoze-
los só podiam ter vindo de algemas e ferros. Ela começou a
chorar.
— Bendita Mãe das Dores — murmurou ela enquanto fazia o
sinal-da-cruz, as lágrimas caindo sobre as cicatrizes. — Pobre
homem, pobre homem.
A febre permaneceu alta, causando delírios e tremores
violentos. Manchas vermelhas apareceram em seu peito e
abdome, enquanto ele caía num sono que mais parecia um
coma. O medo a invadiu; ela tentava desesperadamente
baixar a febre dele com panos úmidos. Dedicou-se dia e
noite, colocando compressas nele e depois o abanando,
tentando fazê-lo beber água. Se cochilava, Angélique acor-
dava de repente e voltava ao trabalho. Lembrando como no
México, durante os verões quentes, as senhoras molhavam as
têmporas e pulsos com colônia, banhou Seth com seus
perfumes e águas-de-cheiro, a evaporação do álcool ajudando
a refrescá-lo um pouco. Quando os perfumes acabaram,
voltou ao bar, que estava deserto, pegou a última garrafa de
uísque e banhou Seth com ele.
Queimado o último lençol, foi até o hotel para buscar mais,
mas não havia mais nenhum, nem no armazém de Bill
Ostler. Devil's Bar estava sob uma mortalha de fumaça
fedorenta das muitas fogueiras onde vestimentas e roupas de
cama estavam sendo queimadas. Voltou à cabana, onde abriu
o baú e tirou suas anáguas. Elas cobriram a cama e eram feitas
de algodão macio. Quando as anáguas acabaram, rasgou os
vestidos, rolando Seth para o lado enquanto estendia a seda
verde-esmeralda ou o cetim cor-de-rosa embaixo dele,
juntando os que estavam sujos e os jogando na pilha de
cinzas fumegante. Angélique riscava fósforos e via suas sedas
e cetins escurecerem e desaparecerem nas chamas.
Como seus vestidos eram necessários como roupa de cama,
abriu a caixa onde Seth guardava as roupas dele e escolheu
uma calça estranha feita de algo chamado brim azul, com os
bolsos presos por rebites de metal, e uma de suas camisas
simples, que ela enfiou dentro da calça depois de amarrar
uma corda em volta da cintura para manter a calça no lugar.
Sem tempo para cuidar do cabelo, ela o penteou para trás e
fez duas longas tranças. Quando Bill Ostler a viu, ficou
chocado.
— Pensei que estava vendo uma índia — disse ele.
Seth não podia comer comida sólida. Então, Angélique
superou o medo do fogão — cozinhar agora era uma questão
de vida ou morte — e, mantendo o fogo aceso, descobriu
como fazer arroz na consistência certa, adicionando sal e
açúcar para fortalecer Seth. Um mingau de aveia. Caldo de
carne e legumes. Chá frio.
Quando a comida acabou, voltou ao hotel onde não viu
ninguém. A sala de jantar e a cozinha desertas. Mas ouviu
gemidos no andar de cima e barulho de alguém vomitando.
Havia uma pilha de lençóis fétidos e fumegantes atrás do
hotel. Ela foi até Bill Ostler novamente, que agora estava
muito mal e foi cambaleando até a porta.
— Posso fazer alguma coisa para ajudar? — perguntou ela.
— Está nas mãos de Deus, Srta. D'Arcy. Com tifo não se sabe
quem vai viver ou morrer. Essa decisão é do Altíssimo.
Ele caiu e ela o ajudou a voltar para a cama, vendo a Sra.
Ostler, que parecia à beira da morte. Angélique pegou os
suprimentos de que precisava e deixou um saco de pó de
ouro.
Indo até os Swenson na esperança de comprar ovos,
encontrou Ingvar lutando para cuidar da esposa. Quando deu
uma olhada na Sra. Swenson, viu o bebê dormindo nos
braços dela. Olhou mais atentamente. Depois fez o sinal-da-
cruz.
— Sr. Swenson, o seu bebê...
— Eu sei. Ela não me deixa enterrá-lo, pobrezinho.
O acampamento estava deserto, exceto pelos cachorros
revirando o lixo. Angélique viu covas novas na colina e ficou
imaginando quem fora enterrado nelas e quem tivera forças
para cavá-las. O cheiro da doença pairava sobre o povoado.
Lembrou-se do cheiro de alguns anos atrás, quando a febre
tifóide varrera o México. E também dos enterros, dia e noite.
Haveria mais aqui em Devil's Bar, antes que a doença
completasse seu curso.
Ficou o tempo todo ao lado de Seth. Quando ele se debatia e
revirava de dor e delírio, ela o abrigava nos braços. E quando
o levantava para alimentá-lo, quando afagava seu rosto, sentia
uma ternura que nunca experimentara antes.
Todas as noites caía exausta na cama.
Na décima sétima noite depois do dia em que devia ter
partido na diligência da tarde, Angélique olhou para o rosto
magro de Seth, para o corpo desgastado onde sobrara pouca
carne. Os olhos tinham afundado na cabeça, os cabelos
tinham caído sobre o travesseiro. Havia dias em que ele nem
abria os olhos. Uma pessoa não pode arder em febre por duas
semanas, ela sabia, e viver. Mas não havia mais nada que
pudesse fazer. Exausta e fraca pela fome, pensando que
enlouqueceria por não dormir direito, olhou fixamente para
o homem na cama com os olhos queimando com alguma
coisa que não era febre, mas com uma insanidade do espírito.
Devil's Bar estava em silêncio. Não se ouvia mais o som do
piano no bar, o ir e vir constante dos cavalos e carroças, o
barulho de gente. Ela não conseguia se lembrar quando falara
pela última vez com uma pessoa. Quando procurou Charlie
Bigelow, ela o encontrara morto sobre a própria sujeira, sem
atendimento, sem cuidados. As pessoas deixaram de visitar
Devil's Bar. A última diligência se fora há dias. Eles foram
abandonados pelo mundo, deixados para morrer.
Perto da meia-noite, quando o último óleo de sua lamparina
estava queimando baixo, ela se sentou na cama ao lado de
Seth e sentiu um curioso ajuntamento de sombras em volta
dela. A princípio, pensou que fossem os fantasmas de Charlie
Bigelow, do bebê Swenson e das duas camareiras de Eliza
Gibbons. Depois percebeu que não eram fantasmas mas suas
lembranças voltando -— lembranças que há muito suprimira,
coisas que sua mãe lhe dissera sobre sua família quando era
criança na Califórnia. Que Angélique em sua adoração pelo
pai voltara-se contra os Navarro por causa do tratamento que
lhe deram. Mas agora estava se lembrando que a avó Angela
recebera Jacques D'Arcy como a um filho. Lembrou-se de
quando um oficial fora até a fazenda para informá-la da
morte do marido na batalha de Chepultepec. Angélique
nunca se sentira tão só na vida. O pai já tinha partido, a mãe
estava morta. Ela não tinha ninguém. Mas agora de repente
estava se lembrando de todos os seus primos. Algo sobre um
urso ser trazido para o curral, e Angélique cercada de
crianças, todas parentes dela. Ela nunca pensara nisso antes,
mas ela tinha uma família grande. E que conforto para
aqueles que podem contar com os familiares em momentos
como este.
E agora eles estavam aqui, em suas lembranças, trazendo
conforto. E algo mais: ajuda em seu momento de maior
necessidade.
A avó Angela na mesa da cozinha, que a pequena Angélique
de seis anos mal podia alcançar, preparando alguma coisa
numa xícara, explicando pacientemente para a menina como
a mágica na casca acalmava a febre.
Sem pensar, Angélique saiu em disparada da cabana e correu
até o riacho para segui-lo no clarão da lua até chegar a um pé
de salgueiro. Ela se jogou contra ele, escavando a casca com
os dedos até soltá-la. Depois voltou correndo para a cabana
onde ferveu água e colocou a casca de salgueiro, deixando o
chá esfriar e tentando introduzir um pouco dele entre os
lábios de Seth. Ele tossiu e cuspiu o chá. Ela colocou a xícara
de novo na boca dele. Ele não conseguia beber. Então ela o
embebeu num lenço e o espremeu entre os lábios dele. Hora
após hora, fez o chá descer por sua garganta.
Finalmente, agarrando o terço, ajoelhou-se ao lado da cama e
inclinou sobre o corpo de Seth, enterrando o rosto em seu
peito e rezou com muita fé. Ela adormeceu nesta posição e
foi acordada com o toque da mão dele sobre os seus cabelos.
A febre baixara, a crise passara.

Embora Seth ainda estivesse doente, Angélique pôde deixá-
lo sozinho enquanto saía para cuidar dos outros. Ajudou a
banhar e alimentar as vítimas, cozinhou uma grande
quantidade de feijão para os que estavam bem, ajudou nos
enterros e a queimar as roupas, e contou o segredo do chá de
salgueiro. A noite, sentava-se na cama ao lado de Seth e lia
para ele o livro Criação de animais, o que o fazia sorrir
debilmente a princípio ao ouvi-la recitar, "Se você deseja
criar galinhas poedeiras, as legornes brancas são melhores", e
depois mais tarde, quando estava melhor, gargalhar quando
ela lia num tom mais sério, "A vaca malhada produz quatro
vezes mais leite do que a vaca de corte convencional...".
Finalmente o tifo foi embora de Devil's Bar. O último
enterro fora há dias, as pessoas estavam começando a
retomar suas vidas, a inspecionar suas concessões e a deixar o
horror para trás. Seth, que já podia se sentar numa cadeira,
olhou para Angélique com olhos claros, dissipadas todas as
sombras da doença, e disse:
— Estou morrendo de fome.
Ela preparou algo sólido para ele comer, e ele ficou
espantado com a perfeição das panquecas de batata feitas por
ela, macias no centro e torradinhas nas bordas, no tempero
certo. Enquanto comia, perguntou como estavam os outros.
— Ingvar Swenson perdeu a mulher e o filho. A Sra. Ostler
morreu — disse ela, com dificuldade para falar. Havia trinta e
duas covas recentes na colina.
— Eliza? — perguntou ele.
— A Srta. Gibbons ainda está muito doente.
— Vou visitá-la quando estiver melhor. Eu falei enquanto
delirava?
Ela sorriu.
— Devo pedir desculpas?
— O senhor acordou uma vez e olhou para mim e disse que
não sabia que havia anjos no inferno. E também falou de sua
mãe. O senhor vai até sua casa?
— Eu não posso ir para casa — disse ele. — Eles não me
querem.
— Seu pai eu ainda posso entender. Deve estar com muita
raiva, não é? Mas sua mãe certamente vai querer que o
senhor volte.
— No dia em que saí da prisão eu voltei para casa. Minha mãe
me disse para ir embora e nunca mais voltar. Disse que eu a
deixei com um aleijado inútil, que eu devia tê-lo matado ou
não ter feito nada. Disse que eu tornei a vida dela cem vezes
pior do que antes.
— Ela vai mudar de idéia. Continua sendo sua mãe.
— No ano passado mandei para ela todo o ouro que encontrei
no primeiro mês, valendo mais de quinhentos dólares. Ela
me escreveu de volta dizendo para ficar com meu dinheiro,
que tudo o que meu pai faria era comprar bebida com ele. —
Ele balançou a cabeça. — Eles não me querem. Eu estou
sozinho.Já me conformei com isso.
Angélique sentiu uma dor aguda no peito. Queria abraçá-lo e
chorar com ele, e dizer-lhe que ele não estava sozinho, que
era amado por alguém. Mas não conseguiu se mover ou
trazer as palavras à boca. Em vez disso, falou:
— Descanse agora. Logo o senhor estará forte o bastante para
descer o rio e trabalhar em sua concessão.
— Por que nós ficamos doentes e você não?
— Eu não comi os pêssegos.
— Nunca mais comerei um pêssego enquanto viver. Como
sabia que não os devíamos comer?
— No México, nossas curanderas dizem que há pessoas
portadoras de doenças, mas que elas mesmas nunca ficam
doentes. Se alguém comer a comida que elas fazem ou a água
que servem, a pessoa ficará doente com febre. Acho que o
homem dos pêssegos era portador.
Ele a olhou de cima a baixo.
— Exceto pelas tranças, você está parecendo um garoto.
— Não tenho mais vestidos — disse ela com um sorriso.
Depois cobriu o rosto e começou a chorar.

Quando Seth se sentiu forte o bastante, foi até Eliza Gibbons,
que agora estava completamente recuperada. Depois foi
inspecionar sua concessão no rio.
Voltou para casa para encontrar Angélique fazendo a mala.
Ela não precisava mais do baú. Tudo o que tinha cabia dentro
de uma pequena fronha.
— Quando cheguei a San Francisco — disse ela —, vim na
esperança de encontrar alguém para cuidar de mim. O Sr.
Boggs. Meu pai. Ou alguém com quem pudesse me casar.
Nunca imaginei que fosse capaz de cuidar de mim mesma.
Mas agora sei cozinhar, lavar e cuidar de uma casa. Aprendi
até a falar como uma americana. Vou viajar de acampamento
para acampamento, de uma cidade mineira para outra,
cozinhando e lavando e cuidando de mim até encontrar meu
pai.
— Você não pode ir embora!
Ela desviou os olhos, o queixo tremendo.
— Nossos caminhos se separam a partir de agora, Sr.
Hopkins. O senhor voltará para sua mineração de ouro e para
Eliza Gibbons, que é apaixonada pelo senhor, e eu preciso
encontrar meu pai.
Ele a surpreendeu ao segurá-la pelos ombros, e dizendo:
— Angélique, eu preciso de você. Antes de você chegar em
minha vida eu vivia num mundo sem cor. Era um mundo
pardo, cinza e preto. Mas você me trouxe arcos-íris e pores-
do-sol e todas as flores que a boa terra gera. Meu bom Deus,
o que deu em mim? Eu mantive você numa cabana escura
assim como fui mantido numa mina escura de carvão, e mais
tarde na cela escura da prisão. Você foi feita para viver na
claridade, Angélique. Todas as manhãs eu ia para o rio onde
há pedras e árvores e pássaros e luz do sol, deixando você
para trás na escuridão. Eu devia ter levado você para passear
na floresta. Eu nunca sequer lhe mostrei minha concessão no
rio. Prendi você como me prenderam um dia.
Ele segurou o rosto dela entre as mãos e disse com paixão:
— Escute, Angélique. Acabei com a procura de ouro. Ainda
há ouro no rio, mas não sou ganancioso, já tenho o que
preciso. Vou deixar o que está lá para o próximo homem. E
afinal de contas sou um homem rico. O banco em American
Fork guarda minha fortuna e estou pronto para dividi-la com
a mulher por quem estou muito apaixonado e com quem
quero ficar o resto de minha vida. Por favor, diga que será
minha esposa. Além disso, como vou começar uma fazenda
sem a sua ajuda? Sem você por perto para ouvir o vento en-
quanto ele lhe diz o que fazer?
Mas como ela podia responder se ele a estava beijando tão
apaixonadamente?
— Ó de casa! Olá?
Eles se viraram para ver um estranho na porta, um homem
branco com roupas de couro e chapéu de pele.
—- Me disseram que estão procurando um francês de nome
D'Arcy. Eu posso levar vocês até ele, se quiserem.

Como a viagem seria longa, eles compraram mulas de carga e
abastecimento para o inverno e seguiram para as montanhas,
parando primeiro em American Fork para fazer os votos de
casamento diante de um juiz de paz. Quando chegaram à
sepultura de D Arcy bem ao norte, havia neve nova no chão.
Angélique ajoelhou e rezou. Depois pendurou o rosário na
cruz de madeira, o terço que o pai lhe dera em sua primeira
comunhão.
O caçador que os levara disse a Angélique:
—- Lá está a índia com quem seu pá vivia.
Angélique olhou por entre as árvores e viu uma mulher com
roupas de couro, os cabelos longos e grisalhos presos em
duas tranças.
— Nunca se casou de verdade — disse o caçador. — Mas Jack
era dedicado a ela.
Ele estalou a língua, balançando a cabeça.
— A vida vai ser difícil para aquela uma. Sem homem para
proteger ela — disse ele, e depois encolheu os ombros. —
Fazer o quê? Não se pode fazer nada sobre isso. O povo dela
já desapareceu quase todo, de qualquer modo.
Elas ficaram olhando uma para a outra no silêncio da mata, a
mulher da floresta e a mulher da cidade, ambas com longas
tranças e olhos escuros, amendoados. O momento encerrou
uma breve magia enquanto o silêncio do inverno abraçou as
duas. Depois a mulher mais velha desapareceu entre as
árvores.
Angélique segurou a mão de Seth e disse:
— Eu quero voltar para Los Angeles. Quero ver se a fazenda
ainda está lá, se minha avó Angela ainda está viva.
— Vamos sem demora, minha querida. E lá que teremos nos-
sa fazenda. Na claridade da luz do sol, e nunca mais veremos
a escuridão.

Capítulo Quinze

Érica não conseguia parar de pensar no beijo de Jared.
Fora tão inesperado, tão eletrizante, que por um instante ela
pensara que pegaria fogo e explodiria. E então desmaiara.
Falta de oxigênio, tinham dito os paramédicos. Por ficar
presa na caverna tanto tempo.
Ela só conseguia pensar no beijo, mesmo depois da
descoberta estonteante que fizera naquela manhã enquanto
limpavam os últimos entulhos do desabamento. Mesmo
depois de abrir o misterioso saco de tecido impermeável e
perceber o que estava vendo, mesmo depois de levar a
descoberta para Jared e ver como ele ficara imediatamente
excitado com ela, mesmo depois de absorver o significado da
nova descoberta — ela ainda não podia pensar em nada além
do modo como Jared a beijara ao resgatá-la da caverna.
A polícia pegara Charlie "Coiote" Braddock e ele confessara
ter plantado explosivos na entrada da caverna para impedir
escavações adicionais. E como o incidente gerara debates
acalorados em todos os lados — daqueles que queriam o
fechamento da caverna àqueles que a queriam aberta como
atração turística —, Érica e Jared intensificaram a corrida
para encontrar o descendente mais provável do esqueleto. O
saco impermeável que Érica encontrara naquela manhã
parecia prestes a fornecer-lhes uma pista inesperada.
O saco contivera um pergaminho, mofado mas ainda legível,
que era uma concessão de terra para uma propriedade
chamada Rancho Paloma, concedida a alguém chamado
Navarro. Os marcos divisórios descritos na escritura — la
denegas (os pântanos), la brea (os poços de alcatrão), El
Camino Viejo (A Estrada Velha) — marcavam uma região
dos primórdios de Los Angeles que era claramente definida
até hoje. El Camino Viejo mudara de nome muitas vezes
desde os espanhóis — Orange Street, Sixth Street, Los
Angeles Avenue e Nevada Avenue — até ganhar o nome
atual: Wilshire Boulevard.
Érica e Jared foram ao escritório dos Arquivos da Cidade de
Los Angeles, onde passaram a manhã observando registros
públicos datados desde 1827, sentados à mesa com pilhas de
documentos, registros, fronteiras demarcadas, mapas,
fotografias, disquetes de computadores e videoteipes. Jared
examinava títulos, escrituras e concessões de terra enquanto
Érica pesquisava os nomes de famílias.
Ela finalmente recostou-se na cadeira e espreguiçou-se,
tirando um momento para observar Jared que estava
concentrado sobre os velhos registros. O beijo fora urgente e
suave, e quando ela abrira os lábios a língua dele tocara a
dela. Terminara num instante, mas tivera mais força do que
uma vida de mãos dadas e olhares de relance. Jared acendera
um fogo nela que continuava queimando até agora, de modo
que quando ele estendeu a mão para pegar o café ela achou
que este era o gesto mais sexy que já vira.
— Descobriu alguma coisa? — perguntou ela.
Ele coçou a nuca e olhou para ela. Érica poderia jurar que
vira um arco de eletricidade sair dos olhos dele para os dela.
Aquelas pupilas negras positivamente fulminavam.
— Meu cálculo é que o Rancho Paloma foi dividido e
vendido para os recém-chegados americanos em 1866 —
disse ele numa voz que traía o desejo de falar de coisas mais
íntimas do que registros históricos. Ou assim imaginou Érica.
Na verdade, ela não tinha idéia do que Jared estava
pensando. Depois daquele beijo impulsivo não houve outro.
— Então foi quando a escritura foi enterrada na caverna? —
disse ela. —Em 1866?
Por causa da explosão e do desmoronamento, e da limpeza
subseqüente do entulho, não havia como determinar
precisamente em que nível a escritura fora enterrada.
— Talvez alguém estivesse tentando impedir a venda e achou
que enterrando a escritura resolveria a situação.
— Mas por que em nossa caverna? Por que enterrar a
escritura de posse na caverna da Primeira Mãe?
Jared massageou o queixo, absorto.
— E quase como se — murmurou ele —, ao enterrar a
escritura na caverna, alguém estivesse devolvendo a terra
para a Primeira Mãe.
— Alguém ligado a ela, talvez um descendente?
Eles se entreolharam e o mesmo pensamento ocorreu a
ambos ao mesmo tempo:
— Se for assim — disse Érica num excitamento repentino —,
e se pudermos descobrir os descendentes atuais dos Navarro
originais, então é possível que encontremos a identidade de
nosso esqueleto!
Jared empurrou a cadeira para trás e se levantou, erguendo os
braços acima da cabeça. Érica deleitou os olhos no modo
como sua camisa esticava sobre os músculos esculpidos.
— O que descobriu sobre os Navarro? — perguntou ele. Jared
estava tendo dificuldade para se concentrar na tarefa que os
levara até ali. Sua mente estava cheia com a história incrível
que Érica lhe contara depois de sair da caverna.
Jared se sentara com Érica enquanto ela se acalmava.
Contou- lhe que fora abandonada quando tinha cinco anos e
vivera em lares de adoção até ser salva por uma advogada que
não conhecia. E era por isso que estava lutando tanto para
salvar a Mulher de Emerald Hills, disse ela, porque ninguém
mais o faria. Agora ele entendia a motivação dela. Segundo o
sistema legal, o Estado supostamente já tomara conta de
Érica, quando estava com dezesseis anos, e no entanto uma
séria deturpação dos fatos em seu caso estivera prestes a
causar a grande injustiça de atirar a moça dentro de um
sistema penal de onde ela poderia nunca mais sair. A atitude
da advogada foi ver o aspecto pessoal do caso. Érica não fora
apenas um número no registro de processos judiciais, mas
uma pessoa com direitos. Assim como a Mulher de Emerald
Hills, que, de modo semelhante, estava supostamente sendo
cuidada pelo Estado, mas prestes a ser enterrada, a ser
esquecida para sempre.
Ele gostaria de ter conhecido Lucy Tyler. Depois de ser
apontada como guardiã ad litem de Érica, encontrou um lar
de adoção melhor para ela e fez visitas regulares. "Ela se
tomou minha mentora", explicara Érica. "Só Deus sabe o que
ela viu em mim que valia a pena salvar, mas eu queria agradá-
la e me sair bem por ela. Acho que no fundo eu não tinha
amor-próprio, então minha motivação para me tornar
alguém não veio por acreditar em mim mesma, mas por
acreditar nela. Passei a usar o seu nome depois que me
formei no colégio. Ela morreu na semana em que recebi meu
Ph.D. Linfoma. Manteve a doença em segredo para não me
atrapalhar nos estudos."
— Não descobri muita coisa — disse Érica agora, em resposta
à pergunta dele sobre os Navarro. Ela estava olhando um
livro grande chamado Famílias fundadoras da Califórnia. —
Tudo o que diz aqui é que a família Navarro morava no
Rancho Paloma. Mas não dá informações adicionais sobre
eles. Há milhares de Navarro morando no condado de Los
Angeles atualmente. Mesmo se decidíssemos checar cada um
deles, isso seria presumir que os Navarro do Rancho Paloma
permaneceram em Los Angeles.
Ele concordou.
— Estou com fome. Tem uma barraca de burrito no térreo.
Você quer carne ou feijão?
— Frango — disse ela. — E qualquer refrigerante diet.

Érica ficou olhando ele sair, maravilhada com a virada súbita
e inesperada em sua vida. De todos os homens que tentara
penetrar a barreira em volta de seu coração, Jared Black, seu
velho inimigo, não era a pessoa que ela previra como o
vitorioso. E agora? O próximo passo seria dela? Mas como
podia estar certa de que ele tencionava começar algo com
aquele beijo? E se ele estivesse arrependido e quisesse
desfazer o que fez? De repente o futuro, com sua promessa
de mistério e surpresa, a excitava e amedrontava ao mesmo
tempo.
Ela forçou a mente a voltar para a realidade; como associar a
escritura à caverna?
Érica contemplou a quantidade formidável de evidência
histórica disponível para pesquisa: artigos de jornais;
nascimentos, mortes, e registros de casamentos; agência de
concessão de licença; assessor fiscal de imposto municipal;
arquivos policiais. Havia milhares de registros, estatísticas,
listas, livros-razão, papéis públicos e transcrições oficiais.
Por onde começar?
Decidindo começar com estatísticas — para ver se poderia
encontrar qualquer Navarro que morrera entre 1865 e 1885
—, pegou um terminal de computador disponível e
selecionou o banco de dados. Os registros daquela época
eram incompletos, com pontos de interrogação depois de
muitos nomes. Quando Jared voltou com o lanche e se
sentou perto dela, desembrulhando os burritos aromáticos,
ela disse:
— Talvez devêssemos apenas colocar um anúncio no jornal.
"Qualquer pessoa com informação sobre o paradeiro do Sr. e
Sra. Navarro, circa 1866..."
Ele balançou a cabeça e riu. Érica pegou o copo de
refrigerante.
— Tenho vontade de fazer um registro de pessoas
desaparecidas!
Eles comeram em silêncio por algum tempo, enquanto
olhavam as pessoas que chegavam e saíam — professores,
historiadores, escritores, pessoas fazendo pesquisas
genealógicas sobre suas famílias — até Érica perceber que
estava olhando uma jovem de cabelos ruivos que pedia ajuda
ao balconista para localizar os antepassados de uma família
chamada McPherson, que viera para Los Angeles na virada
do século. "Eles eram da família de minha mãe", Érica ouviu
a jovem dizer.
E Érica sentiu o coração saltar.
Deixando o burrito de lado rapidamente, voltou ao
computador, fechou o banco de dados sobre estatísticas, e
abriu o banco de dados do DPLA sobre arquivos encerrados
e não-correntes. Parâmetros de busca eram indicados por
divisão, departamento e datas. Selecionou Pessoas
Desaparecidas e ficou olhando para a tela por um longo
tempo antes de tomar consciência da idéia que começara a
tomar forma em sua mente: Será que o desaparecimento de
minha mãe foi comunicado?
Embora houvesse tentado procurar pela família anos atrás, os
bancos de dados disponíveis agora não existiam na época. Era
necessário pesquisar enormes quantidades de papéis,
arquivos e registros. Tarefa demorada e que terminava sendo
em vão. Mas agora, num impulso repentino de esperança,
em vez de procurar pelos Navarro ela digitou "1965", o ano
em que sua mãe chegara na comunidade hippie. E acres-
centou: "sexo feminino", "caucasiana", "grávida" e "menos de
trinta anos de idade". Dizendo a si mesma que era uma
tentativa com pouca possibilidade de sucesso, tamborilava os
dedos enquanto esperava o resultado aparecer. Quais eram as
chances? Era só um palpite, que sua mãe tivesse fugido de
casa para virar hippie. Ela podia ter saído de casa com o
conhecimento dos pais. Talvez eles até ficaram felizes em se
livrar dela, então não houve registro de desaparecimento.
Quando o resultado da busca apareceu, ela, ansiosamente,
examinou os nomes. Muitas adolescentes fugiram naquele
ano, algumas grávidas. Qualquer uma delas poderia ter sido
minha mãe.
Voltou ao início da lista e percorreu os nomes com mais
atenção, silenciosamente repetindo os nomes para ver se
algum deles vinha à lembrança.
ENTÃO: Mônica Dockstader. Dezessete anos. Cabelos
castanhos, 1,70m, 60 kg, quatro meses de gravidez. Vista
pela última vez na Rodoviária Greyhound, Palm Springs.
Dockstader. O nome ressoava com alguma coisa no fundo de
sua memória. E a data! Junho. O que significava que a criança
de Mônica Dockstader nascera em novembro. O mês em que
Érica nasceu.
Indo até o balcão principal, Érica solicitou microfilmes e
jornais de 1965, limitando sua busca ao Los Angeles Times e
Herald Examiner. Ela os levou até um visor e, com dedos
trêmulos, carregou o primeiro filme.
Levou menos de cinco minutos.
— Oh, meu Deus!
— Descobriu alguma coisa? — perguntou Jared, olhando para
ela.
— Acho que descobri... — disse ela, olhando para ele com os
olhos esbugalhados. — Minha mãe...
Ele se levantou, ficou atrás dela e franziu as sobrancelhas
para a manchete do jornal no visor: Desaparecida Herdeira
do Império de Tâmaras de Palm Springs. As buscas
prosseguem. Recompensa oferecida. O artigo de trinta e
cinco anos era curto, com declarações dos pais da moça
pedindo a ela para voltar para casa. "Ela atualmente é chama-
da de Moonbeam", Kathleen Dockstader, mãe de Mônica,
dissera à polícia.
— Moonbeam... — murmurou Érica. O homem calvo, há
trinta anos, dizendo para a assistente social. "O nome dela é
Moonbeam".
— Parece que não foi seqüestrada — disse Jared. — Ela fugiu.
O caso só recebeu essa atenção da mídia porque a família era
rica. Diz aqui que os Dockstader eram os maiores e mais
antigos exportadores de tâmaras nos Estados Unidos. Será
que ainda estão no ramo?
Érica estendeu a mão e tocou o monitor. Será que o
transtornado casal de meia-idade na foto do jornal eram os
seus avós?
Jared chegou mais perto.
— Deus do céu, Érica! Olhe para a foto no pé da página. A
moça, Mônica Dockstader. Ela poderia ser uma versão mais
nova de você!

— Alguma coisa lhe parece familiar? — perguntou Jared
enquanto saía da auto-estrada 111 com seu Porsche e entrava
na rua Dockstader.
Érica olhou para as fileiras de palmeiras majestosas que
pareciam continuar por milhas, e além, para o deserto
castanho cercado pelas montanhas com os picos cobertos de
neve mudando para rosa no pôr-do-sol
— Não. Mas eu nasci numa comunidade no norte e até onde
me lembro não saí de lá até ser levada para o hospital em San
Francisco. Eu tinha cinco anos na época, e depois disso fui
colocada em lares de adoção. Acho que nunca estive aqui.
Na internet eles encontraram um site para Fazendas
Dockstader, mais de mil acres de ricas tamareiras localizados
perto de Palm Springs em Coachella Valley, ostentando um
restaurante, loja de presentes e excursões pelas terras e
fábrica de empacotamento, com amostras grátis para todos os
visitantes. O site tinha uma seção chamada "Nossa Família".
Érica esperara que fosse a história dos Dockstader. Em vez
disso, era uma descrição da família corporativa — do vice-
presidente aos catadores de tâmaras.
Érica telefonara do escritório de arquivos para saber se a Sra.
Dockstader não estava marcando nenhuma entrevista e não
estaria disponível até voltar de umas férias de seis meses.
Érica, por um instante, pensara em dizer à secretária quem
era — certamente a Sra. Dockstader estaria disponível para
sua neta há muito perdida —, mas depois achara melhor
simplesmente dirigir até lá. Notícias como esta não deviam
vir por telefone e através da secretária, e não podia demorar,
já que a Sra. Dockstader estaria viajando no dia seguinte.
Eles passaram por uma placa que dizia "Fundada em 1890",
passaram pelo estacionamento para visitantes e seguiram por
uma pequena vereda ladeada de grandes carvalhos e
salgueiros. Quando chegaram a uma placa que dizia
"Residência Particular, Acesso Público Proibido Além Deste
Ponto", Jared continuou dirigindo. Érica fechou os olhos e
sentiu o coração galopando. Sabia o que encontrariam no fim
da estrada: uma vistosa casa vitoriana construída na virada do
último século, cheia de antiguidades e histórias da família e,
no centro, Kathleen Dockstader, uma avó viúva, gentil e
maternal, de setenta e dois anos com artrite nas mãos e
cabelos brancos. Érica quase podia sentir o cheiro de lavanda
da mulher enquanto dizia, "Sim, eu sou sua avó", e abraçava
Érica longamente.
A vereda chegou ao fim numa entrada semicircular para
automóveis e os carvalhos e salgueiros deram lugar a verdes
gramados palacianos, fontes elegantes, e uma casa que
parecia ter sido construída no futuro. Metade de estuque
branquíssimo e metade vidro, a residência dos Dockstader
era térrea , discreta, com linhas planas e sem decoração, par-
te Santa Fé, pensou Érica, e parte estufa. Havia um Rolls
Royce estacionado na frente, e um homem com uniforme de
mordomo estava colocando dentro dele um conjunto de
malas e um saco de golfe.
Quando Jared parou o carro, olhou para Érica.
— Pronta?
— Estou nervosa — disse ela, segurando a mão dele
impulsivamente. — Obrigada por ter vindo comigo.
— Eu não perderia isso por nada — disse ele, apertando a
mão dela. — Essa mulher está à sua procura há trinta e cinco
anos. Até ofereceu uma recompensa impressionante para
encontrá-la. — O sorriso dele alargou-se. — Espero que ela
tenha sais aromáticos à mão.
Érica olhou nos olhos dele e percebeu que não eram
sombrios, afinal, mas de um cinza expressivo que a fez
pensar em lealdade e honestidade.
— Tenho pensado em algo em toda a minha vida... Será que
minha mãe voltou àquela comunidade à minha procura?
Talvez ela não soubesse do homem que me levou para o
hospital em San Francisco e da mulher que morreu de
overdose. E se ela passou todo esse tempo me procurando?
— Talvez ela tenha voltado para casa, talvez esteja aqui —
disse ele, voltando os olhos para a estrutura de estuque e
vidro montada como uma maquete entre árvores e arbustos.
Eles foram parados na porta da frente pelo mordomo.
— Por favor, é urgente — disse Érica para o homem. — Diga
à Sra. Dockstader que se trata da filha dela.
Eles foram levados para o vestíbulo, pintado nas cores suaves
do deserto, com piso de calcário que brilhava como vidro e
uma clarabóia expondo o impecável céu do deserto. Ficaram
esperando por quase trinta minutos, durante os quais a luz do
dia enfraqueceu e a iluminação indireta da casa surgiu.
A mulher que finalmente apareceu não era nem gentil nem
maternal.
— Eu sou Kathleen Dockstader — anunciou ela diretamente
para Jared. — O que sabe sobre minha filha?
Érica ficou momentaneamente sem voz. Com a pele
bronzeadíssima, bermuda cor-de-rosa, blusa branca de jogar
golfe e os cabelos louros presos atrás de uma viseira que dizia
Dinah Shore Golf Classic, Kathleen Dockstader, atlética e em
boa forma, parecia anos mais jovem do que sua idade real.

Érica recuperou a voz.
— Meu nome é Érica Tyler, Sra. Dockstader, e eu tenho
motivos para acreditar que sou sua neta.
A mulher olhou para Érica pela primeira vez. Suas feições
congelaram. Ela pestanejou. Depois disse:
— Por quê?
Sua voz era fria.
Desejando poder entrar e sentar, desejando que lhe
oferecessem chá gelado para ajudar seus lábios e língua a
formarem as palavras apropriadas, Érica contou sua história
para a Sra. Dockstader, terminando com o achado do
relatório de pessoas desaparecidas e o artigo de jornal na sala
de arquivos.
— Senhorita Tyler—disse Kathleen, impaciente. -— Estou
prestes a embarcar para uma turnê mundial de golfe. Meu
avião sai hoje à noite. Não tenho tempo para especulação.
Mostre-me uma prova — disse ela, estendendo a mão, que,
com a pele castigada pelo tempo e as veias saltadas, era a
única evidência de sua idade verdadeira. — Certidão de
nascimento? Cartas? Fotografias?
— Eu não tenho nada disso.
— Só uma história. Na qual devo acreditar -— disse a mulher,
franzindo os lábios. — Você está me fazendo perder tempo.
— Sra. Dockstader — disse Érica, apressada e com desespero
na voz. — Eu me lembro de ter vivido na floresta com um
monte de gente. Acho que era uma comunidade hippie. Eu
me lembro de uma viagem de carro da floresta para a cidade,
e do homem que estava dirigindo, que tinha cabelos longos e
barba, levando a mim e a uma mulher para o hospital. Ele
não ficou muito tempo. Disse que não era marido da mulher
e que eu não era sua filha e que nem sabia o nome
verdadeiro dela. Eu me lembro vagamente de uma mulher
gentil, uma assistente social, me fazendo perguntas. Meu
nome e minha data de nascimento, coisas do tipo. Disse a ela
que eu era Érica mas que nunca tive um sobrenome. Mas eu
sabia minha idade e data de nascimento, e então eles fizeram
uma certidão para mim. Investigaram a comunidade. Ouvi
um homem dizer que minha mãe, que usava o nome de
Moonbeam, tinha ido embora com um motoqueiro, me
deixando com os hippies. Foi então que eu fiquei sob a
guarda do Estado. Isso é tudo o que eu sei. Isso é tudo o que
posso lhe dizer.
Os lábios de Kathleen curvaram num sorriso seco.
— Você acha que eu não sei o que está querendo? Eu
conheço o seu tipo, aproveitadores de viúvas ricas e velhas.
— Perdoe-me, senhora, mas eu dificilmente a chamaria de
velha — disse Jared.
Ela olhou diretamente para ele.
— Não me venha com galanteios. Sou velha, rica e sem
herdeiros, o que me torna um alvo para os vigaristas e
interesseiros. Você não é a primeira a dizer que é minha
neta. Anastasia Romanov não teve menos imitadoras! A
história sobre o desaparecimento de minha filha em 1965 é
bem conhecida, bem como o fato de que ela estava grávida.
Coloquei anúncio nos jornais de todo o país. Ofereci
recompensas. Você ficaria surpresa com o número de "netas"
que me apareceu. Reconheço que sua história sobre ser
criada numa comunidade hippie é nova, porém um tanto
melodramática. Agora, se me derem licença.
— Eu não quero dinheiro. Não estou aqui para reivindicar
nada. Tudo o que eu quero é descobrir de onde vim, quem é
minha família. Quem eu sou.
— Minha jovem, minhas esperanças foram elevadas e
frustradas tantas vezes que já passei do ponto de me
preocupar. Seja qual for o seu plano, não vai funcionar aqui.
— Mas... não me pareço com sua filha? Há pouco, quando
entrou, a expressão em seu rosto...
— Você não é a primeira a perceber sua semelhança com
uma herdeira e tentar aprimorar isso. E minha filha não tinha
traços distintos. Era simplesmente bonita, como você.
— Quem era o meu pai?
Sobrancelhas aristocráticas se arquearam.
— Como vou saber quem era o seu pai?
— Quer dizer, quem engravidou sua filha?
Kathleen emitiu um som impaciente.
— Devo insistir para que saiam agora.
— Sra. Dockstader, alguma vez minha mãe sofreu com fortes
dores de cabeça, como enxaquecas, que a faziam ver coisas,
ouvir vozes? A senhora, talvez?
Kathleen foi até a parede e apertou um botão no painel
intercomunicador.
— Segurança, pode vir aqui por favor? Temos visitantes que
precisam ser acompanhados — disse ela. E deixou a sala.
— Sra. Dockstader — disse Érica, seguindo-a. — Acredite em
mim, tudo o que eu lhe disse é verdade...
Érica parou.
Do outro lado de uma sala com carpete branco e estatuária
branca, acima da lareira de calcário claro, pendia uma tela
enorme com dois sóis pintados, um vermelho flamejante, o
outro amarelo brilhante.
Jared segurou o braço de Érica e disse calmamente:
— É melhor sairmos ou ela vai mandar nos prender. — E
então ele também parou e ficou olhando para o quadro. —
Deus do céu, é a pintura da caverna!
Érica olhou em volta à procura de Kathleen Dockstader, mas
a mulher desaparecera, e no momento seguinte um homem
grande usando um paletó e um crachá que dizia Segurança
das Fazendas Dockstader apareceu no vão da porta. Érica e
Jared saíram sem dizer uma palavra, entraram no Porsche e
voltaram para a estrada.
Quando ingressaram no trânsito da auto-estrada no
contraforte da montanha, Jared desviou os olhos da estrada
para olhar para Érica. Olhando diretamente para a frente, ela
mostrava um perfil tenso para ele, e olhos brilhando com
lágrimas. Ele queria parar o carro e tomá-la nos braços, e
beijá-la como fizera quando a tirara da caverna. Queria virar
o carro e voltar para a Sra. Dockstader e lhe dizer com todas
as palavras que perua sem coração ela era. Queria encontrar
dragões para matar. Em vez disso, perguntou:
— Você está bem?
Ela balançou a cabeça, os lábios apertados.
Quando pararam num sinal vermelho, Jared olhou para a
direita — onde campos de golfe e hotéis exclusivos eram
banhados por uma iluminação caríssima como para desafiar
as estrelas que estavam começando a surgir — e depois para a
frente onde o tráfego fluía por entre blocos de restaurantes,
lojas e postos de gasolina, as luzes vermelhas dos freios
piscando. Depois olhou para a esquerda, onde uma estrada
subia íngreme dentro de contrafortes cobertos de arbustos,
pedras grandes e flores silvestres. Quando o sinal mudou para
verde, ele virou à esquerda. Érica não protestou.
As estrelas estavam brilhando e a lua começando a subir
quando chegaram ao cume repleto de pinheiros e silêncio
florestal. Érica não dissera uma palavra desde que deixara a
casa dos Dockstader e continuou calada quando Jared
finalmente parou o Porsche à beira da floresta e desligou os
faróis. Imediatamente, as estrelas pareceram mais brilhantes,
o céu mais próximo. O ar estava frio e um pouquinho
cortante.
Jared virou-se no assento e olhou para Érica, esperando.
— Ela é minha avó — disse Érica suavemente depois de um
momento. — E ela sabe disso. — Érica virou-se para encará-
lo. Ela estava muito pálida. — Você viu a expressão no rosto
dela quando me viu pela primeira vez? Era uma expressão de
reconhecimento. Por que, depois de gastar tanto dinheiro e
esforço para me encontrar, me mandou embora? — Érica
olhou para as mãos. — O relatório sobre pessoas
desaparecidas dizia que Mônica estava com quatro meses de
gravidez, o que significa que o bebê nasceu em novembro de
1965. Eu nasci em novembro de 1965. Por que minha avó
está me rejeitando?
— Não se pode ver o coração dos outros — disse Jared,
esticando os braços ao longo das costas do assento de modo
que as pontas de seus dedos tocaram os cabelos dela. A
escuridão da floresta parecia cingir o carro, como para dar
privacidade aos ocupantes. Ou talvez para ouvir, prestar
atenção ao que tinham para dizer. — Quando Netsuya
morreu, fugi para me esconder do mundo. E fui encontrado
por biólogos marinhos. Tudo o que meu pai pôde me dizer
quando me levaram para casa foi como eu havia
envergonhado a família. Mais tarde ele pediu desculpas e
tentou retirar o que disse, mas as palavras uma vez ditas são
difíceis de esquecer. As coisas não foram as mesmas entre
nós desde então.
Ele tocou um anel de cabelo em sua nuca. Ela estremeceu. A
noite ficou mais escura, as estrelas mais brilhantes. Olhos
dourados piscavam nas moitas. Um pássaro da noite piou
perto — um som pesaroso e solitário.
— Quando eu era garoto — continuou Jared, — sonhava em
ser arquiteto, mas meu pai queria que eu fosse advogado,
então me tornei um advogado. Sempre o admirei e respeitei,
mas naquele instante, quando ele disse que eu tinha
envergonhado a família, vi nele um completo estranho, um
homem de que não gostava. E pensei que nunca poderia
perdoá-lo. Mas agora... — Jared suspirou e olhou para as
árvores. — Ouvindo sua história e vendo a reação da Sra.
Dockstader, fico pensando que pais e avós, irmãs e irmãos
são apenas pessoas e como tal não podem ser perfeitas. Dê
tempo a ela, Érica. Você sabe que ela está pensando no
assunto.
Ela finalmente olhou para ele com os olhos cor de âmbar
como aqueles dos moradores da floresta que os vigiavam.
— Mas a pintura... Jared, aquele deve ser o lugar da visão que
assombra meus sonhos desde que eu era criança.
Jared franziu as sobrancelhas.
— Visão? Do que está falando?
Ela abriu a porta do carro e saiu. Jared foi atrás. Do ponto alto
onde estavam podiam ver abaixo o Coachella Valley
estendido até o horizonte como um mar negro cintilando
com o reflexo do céu estrelado. Eles ficaram respirando o ar
frio da montanha por algum tempo, respirando o cheiro dos
pinheiros e do solo argiloso. Depois Érica começou a andar
por uma trilha deserta iluminada pela luz da lua.
Jared media os passos ao lado dela, enquanto ela explicava:
— A pintura na caverna... Eu tenho um sonho recorrente
sobre ela desde que era criança. Foi por isso que pedi a Sam
que me designasse para o projeto, quando vi a pintura no
noticiário. Deixei que Sam acreditasse que estava desesperada
pelo projeto por causa do fiasco do naufrágio de Chadwick,
que queria recuperar minha reputação. Mas não foi por isso.
Foi porque venho sonhando com aquela pintura toda a
minha vida e achei que poderia encontrar respostas na
caverna. Em vez disso, só há mais mistérios.
Eles chegaram a um riacho gorgolejante e sussurrante, como
se estivesse contando segredos. Quando Érica sentiu um
calafrio, Jared tirou o paletó e o colocou sobre os ombros
dela.
— Por que perguntou à Sra. Dockstader sobre dores de
cabeça?
— Eu sofro com elas desde que me entendo por gente. Não
são dores de cabeça normais, mas algo parecido com
enxaquecas. Lancinante, muito forte. Minhas professoras
sempre achavam que eu estava fingindo. Diziam que eu fazia
aquilo para ganhar atenção ou para fugir de um teste. Uma
enfermeira da escola acreditou em mim e mandou um
médico me examinar. Mas eu era uma caso de previdência
social, então não recebi mais cuidados do que um médico
examinando meus ouvidos e me mandando dizer "Ah". Foi
quando caí no campus da faculdade que alguém finalmente
me levou a sério. Passei por todo tipo de testes e programas,
estive em especialistas em dores de cabeça, neurologistas, até
em psicólogos. Ninguém sabe o que causa as dores, mas o
que realmente os confunde é o fenômeno auditivo e visual
que às vezes vem com elas.
O atalho por onde o riacho corria estava iluminado pela lua,
com pedras grandes e amentos e fios d'água prateados e
mercurial. Era como se todas as cores tivessem sido tiradas
do mundo, deixando apenas os matizes fantasmagóricos.
— Que tipo de fenômeno? — perguntou Jared, notando
como a luz da lua deixara a pele bronzeada de Érica branca
como o marfim.
— Eu vejo coisas. Ás vezes ouço coisas.
— Por que não me falou dos sonhos?
— Porque achei que você zombaria.
— Não estou zombando.
O olhar deles se encontraram ao luar.
— Eu sei.
— Como são as visões?
— A primeira vez que tive uma crise — disse ela, esfregando
os braços —, que posso me lembrar, começou com uma dor
de cabeça que me deixou cega. Não sei se dormi ou desmaiei,
mas de repente vi milhares de borboletas na sala de aula.
Lindas, fascinantes, voando por toda parte. Quando acordei,
estava na enfermaria. Minhas primeiras palavras foram:
"Onde estão as borboletas?" E a enfermeira replicou: "Que
borboletas?" Foi por isso que nunca fui adotada. Por causa das
dores de cabeça. Ninguém queria adotar uma criança doente.
Érica passou os olhos pelos picos das montanhas que
apagavam as estrelas. Seus olhos estavam procurando, como
se esperasse ver alguém parado lá, bem no alto.
— Passei por uma fase de estar sempre de malas feitas e
pronta para partir quando meus pais viessem me buscar.
Sempre que era transferida de uma casa para outra, ligava
para a assistente social para que dessem meu novo endereço
à minha mãe. Às vezes eu ligava para o serviço social e
perguntava se minha mãe tinha ligado. Ela nunca ligou. — A
voz de Érica ficou dura. — Ela simplesmente não me queria.
— Você não sabe disso — disse Jared, tocando-lhe o braço.
— Então que me diz do motoqueiro com quem ela fugiu? —
disse ela, desafio na voz.
— Isso foi algo que você ouviu por acaso de um homem que
estava repetindo um boato. Talvez ela quisesse sair apenas
pelo fim de semana. Talvez tivesse planejado voltar para
buscar você e alguma coisa aconteceu. Érica, você pode não
saber nunca o que realmente aconteceu com sua mãe.
Ela balançou a cabeça, amargura no gesto. Depois ajoelhou-
se perto do riacho e mergulhou a mão na água. Jared
inspecionou os arredores, tentando lembrar o que lera sobre
leões da montanha nesta área, e depois percebendo que,
embora estivessem a uma curta distância do carro, ele não
podia ser visto por entre as árvores, nem as luzes de Palm
Springs. Ele observou Érica tomar um gole da água clara da
montanha, e, quando ela se levantou e passou as mãos pela
saia, ele disse:
— Tem mais coisa, não tem? Algo que não está me dizendo?
Ela balançou a cabeça, evitando os olhos dele.
— Érica, quase fiquei louco quando você ficou presa na
caverna. Não sabia se estava morta ou viva. Pela primeira vez
desde a morte de Netsuya, percebi que gostava de alguém.
Acho que começou quando vi você enfrentando Charlie
Braddock com aquela tomahawk. Lá estava você de salto alto
e vestido de festa, brandindo a machadinha para aquele
gigante. E depois, na reunião secreta de Sam em Century
City, o modo como enfrentou a ele e aos outros, como lutou
pelos direitos da mulher que morreu há dois mil anos. Você
é uma tremenda lutadora, Érica. E vendo você daquele jeito
me fez lembrar que eu também já fui um lutador, antes da
morte de Netsuya.
Ela se virou e andou um pouco até ver no clarão da lua
petróglifos entalhados nas grandes pedras: figuras humanas
retilíneas com arco e flecha caçando grandes animais. Ela as
traçou com as pontas dos dedos e disse:
— Elas são tão velhas. — E virou-se com os olhos cheios
d'água para ele. — Tudo com que lido é velho e morto. Eu
quero vida, Jared.
— Então deixe-me entrar — disse ele, segurando-a pelos
ombros. — Diga-me o que ainda não me disse.
— Jared — disse ela, começando a chorar —, será que minha
mãe me abandonou por causa de minha doença?
Ele ficou olhando para ela.
— Deus do céu, é isso o que acha?
— Com todas aquelas dores de cabeça, eu devia ser difícil de
cuidar! Foi por isso que nunca fui adotada! Uma família
tentou ficar comigo, os Gordon. Eles eram muito gentis e
tentaram muito, mas a Sra. Gordon não pôde agüentar
minhas crises que podiam acontecer em qualquer lugar.
Então me devolveram para o serviço social.
— Érica, não pode se culpar por sua mãe ter deixado você.
Você era apenas uma criança. Meu Deus, foi por isso que
nunca se casou, é por isso que não tem nenhum
relacionamento? Por causa das dores de cabeça e das crises
de desmaios? Nas semanas que passamos trabalhando em
Topanga não vi essas coisas acontecerem.
— Sou muito cuidadosa — disse ela enquanto as lágrimas
desciam-lhe pelo rosto. — Conheço os sinais. Quando sinto
uma certa tensão no pescoço ou ouço um som como se fosse
um rugido, sei que estou prestes a ter uma de minhas crises,
então vou rapidamente para minha tenda e fico sozinha até
ela passar. Não posso sobrecarregar outro ser humano com a
responsabilidade de cuidar de mim. E tenho pavor de ter um
filho, porque acho que isso pode ser hereditário.
— Eu cuidaria de você — disse ele, puxando-a para si e a
beijando com força. Os braços dela envolveram o pescoço
dele. Érica agarrou-se a ele por um longo e inebriante
momento.
Depois ele afastou-se e disse:
— Érica, eu tenho simplesmente passado pelas emoções da
vida. Meu coração não tem estado na luta pela caverna de
Emerald Hills. É você quem está verdadeiramente lutando.
Eu a admirei há quatro anos quando brigamos no caso
Reddman. E admirei você há um ano, também, durante todo
o incidente de Chadwick. Não foi culpa sua o naufrágio ter
sido uma fraude. Chadwick conseguiu enganar os mais
experientes arqueólogos subaquáticos do mundo. Você era só
uma parte da equipe toda. Seu trabalho era autenticar a
cerâmica chinesa, e isso você fez admiravelmente, porque a
cerâmica não era falsa. E o modo como você defendeu sua
participação no episódio, e sua desculpa pública por ter
participado dele, isso também foi muito admirável. Mas eu
não tenho feito nada desde que Netsuya morreu. Eu tenho
me escondido atrás de uma máscara e pronunciado palavras
vazias. Você me faz lembrar como é estar vivo e lutar por
causas novamente. — Ele segurou o rosto dela entre as mãos.
— Nunca pensei que me apaixonaria de novo e aqui está
você, mulher-guerreira, boa, forte e sábia.
Ele a beijou novamente, mais devagar e gentilmente desta
vez, até o beijo ficar urgente, e a paixão e a necessidade os
dominarem. Jared deitou Érica sobre a grama fresca, e, bem
alto no céu, as estrelas tão velhas de repente pareciam novas
em folha.

Capítulo Dezesseis

Angela
1866 da era cristã

Fantasmas a perseguiam.
Não só fantasmas de pessoas, mas também fantasmas das
lembranças de anos passados; fantasmas de árvores e pores-
do-sol, de amores e tristezas, de palavras ditas com raiva e no
escuro. Até a própria Angela era um dos fantasmas que a
assombravam nesta manhã de seu nonagésimo aniversário,
seguindo-a, sussurrando lembranças de tempos há muito
passados.
Durante o dia, enquanto cuidava desta fazenda que
sobrevivera a oito décadas de enchentes, incêndios e
terremotos, fazendo dela a casa mais velha de Los Angeles,
Angela estava lembrando de coisas pela primeira vez em
oitenta e cinco anos. Os anos perdidos, ela sempre pensara
neles, pois não se lembrava de nada antes dos seis anos nesta
casa. Seus cabelos estavam brancos agora, tão brancos como
a neve que cobria o topo das montanhas San Gabriel no
inverno, mas suas costas ainda estavam retas e ela andava
sem ajuda, e sua mente afiada como vidro. Mas, quando
acordara no início do dia de seus noventa anos, fora para
descobrir sua mente cheia de perplexas lembranças há muito
esquecidas.
Como um bando de convidados inesperados, as lembranças
de eventos de décadas passadas surgiram em cores
caleidoscópicas e sons, enquanto ela permanecia deitada
olhando o nascer do sol derramar luz nova em seu quarto.
Inexplicavelmente, deu consigo mesma pensando em cestos
tecidos por mulheres indígenas e lembrando que os padrões
tecidos continham histórias. E então ouviu a si mesma, com
oito anos de idade, perguntando a Dona Luisa: "Mami, por
que este povoado é chamado de anjos?" E Luisa
respondendo: "Porque foi construído em solo sagrado. Por
que outra razão poderia ser?" Histórias de Coiote, o
Trapaceiro e Avô Tartaruga que causava terremotos na
cabeça dela. E então Angela estava lembrando de uma tarde
quente há muito tempo quando a nova plaza estava sendo
dedicada pelo governador Neve e todos receberam uma
pequena cruz feita de estanho. Ela estivera lá com seus pais...
ou fora só com sua mãe? Os colonizadores do México eram
quarenta e quatro naquele dia, há oitenta e cinco anos. Uma
população tão pequena... Franziu as sobrancelhas. Mas não,
havia outros lá, afastados da celebração, espectadores si-
lenciosos sem expressão no rosto. Os índios. Eram milhares
naquele dia. Quantos sobraram? Umas poucas centenas.
Mas havia um espaço em branco entre as memórias, como se
com todas essas lembranças ela tivesse esquecido algo.
Depois de banhar-se e vestir-se com a ajuda de sua dama de
companhia, e depois de tomar o chocolate matutino e
silenciosamente recitar as primeiras preces do dia, ela fora
direto para a cozinha, pensando que a coisa que esquecera
envolvia a comida para a festa de hoje.
Como a grande família de Angela era agora uma mistura
cultural de espanhóis, mexicanos e americanos, todos os
gostos deviam ser considerados. Junto com as tortillas,
tamales e frijoles também havia frutos do mar à moda
espanhola e carne à moda americana. A enorme cozinha
com três fomos gigantescos, grandes mesas e lareira profunda
já estava, a esta hora da manhã, em plena atividade com o
alvoroço de mulheres indígenas cozinhando, conversando,
enchendo o ar com palavras e aromas exóticos. Angela parou
para inspecionar o puchero, um refogado feito com mocotó,
carne, legumes e frutas dispostos em camadas e cozidos por
horas. O erro estava em mexer. Puchero nunca devia ser
mexido. Ela levantou a tampa e viu que o refogado de
camadas estava cozinhando satisfatoriamente.
Quando tudo pareceu estar indo bem na cozinha, Angela
imaginou se a coisa que havia esquecido envolvia os músicos
e os dançarinos. Ou será que esquecera de convidar alguém?
As cadeiras eram suficientes, os pratos, as luzes de jardim?
Embora a festa estivesse sendo feita para comemorar o seu
próprio aniversário, Angela insistiu em supervisionar todos
os preparativos pessoalmente.
Ela parou em uma janela para olhar as colinas na névoa. A
primavera acabara, a estação das enchentes passara, agora era
verão, a estação da fumaça. Logo viriam os ventos do deserto
que anualmente limpavam o ar levando a fumaça para o mar,
depois viria a estação do fogo, quando as escarpas das
montanhas ficavam enfurecidas com os arbustos em chamas.
Havia conforto na progressão das estações e no ciclo
previsível da natureza. Califórnia benevolente, pensou ela
com melancolia. E de vez em quando o chão tremia para
lembrar aos angelenos que eles eram mortais.
Ela continuou andando pela casa, procurando algo para
encher o espaço vazio entre suas lembranças clamorosas.
Parou no quarto que fora de Marina, há trinta e cinco anos.
Naquela mesma cama, a moça de dezoito anos chorara e
confessara seu amor por um ianque. Angela não soubera de
sua filha desde então, e nem um dia se passou nos seguintes
trinta e cinco anos sem que Angela reservasse um momento
para enviar seus pensamentos através do horizonte distante e
fazer uma prece silenciosa à Virgem Bendita para que
cuidasse de Marina e a mantivesse segura.
No corredor, deparou-se com o antigo conjunto estofado de
quatro cadeiras de braços que fora trazido para a Califórnia há
muito tempo por Dona Luisa. O brocado de seda estava gasto
e desbotado agora, e a madeira dos braços e pernas, lascada
pelos ataques de netos e bisnetos. As cadeiras eram para ter
sido um presente de casamento para Marina. Mas Marina
fugira e as cadeiras ficaram.
Angela passou os dedos pela madeira antiga e pensou: Nós
cinco viemos juntas do México. Mas por que eu não consigo
me lembrar da viagem? Por que minhas lembranças
começam no meu sexto aniversário?
Vozes interromperam seus pensamentos. Dois netos
conversando enquanto vinham pela colunata.
— O gado não anda muito bem desde a seca.
E as palavras desencadearam outras lembranças. Gado.
Angela com cinco anos e vendo estrangeiros chegarem com
animais grandes e assustadores. Não era para existir gado
nesta terra. Eles foram trazidos do outro lado do mar. E por
isso que estão morrendo.
— E o capitão Hancock encontrou petróleo em sua
propriedade. Isso torna a terra imprestável para plantio e
pastagem. Nós não estamos muito longe dos poços de
alcatrão. Podemos ter petróleo também. Precisamos
convencer a vovó de que ela deve vender o rancho
enquanto a terra ainda está boa.
— Todos estão vendendo. Os Picos e os Estrada já venderam
boa parte de suas terras para os anglos recém-chegados,
George Hearst e Patrick Murphy. Seríamos prudentes se
fizéssemos o mesmo.
Os homens estavam acompanhados por mulheres em amplas
anáguas de crinolina. A própria Angela não usava as
incômodas estruturas sob o vestido, mas apenas uma
combinação. E ela deixara de usar corpete há quinze anos. A
moda para mulheres, pensou ela, estava ficando cada vez
mais torturante.
Ela foi ao encontro dos netos e suas esposas com um sorriso
e de braços abertos. Era sempre tão maravilhoso ter a família
reunida.
Navarro não estava presente, é claro. Ele morrera há vinte
anos, exatamente dezesseis anos depois da noite em que
Angela o apunhalou. Exceto Carlotta, ninguém sabia do
ataque. Naquela noite fatal, quando Angela vira que Navarro
ainda estava vivo, ela chamara um médico, que costurara e
prendera o ferimento, e ajudara a pôr seu marido na cama. O
médico foi pago para manter segredo e quando
Navarro recobrou os sentidos ele ordenara à esposa e à filha
mais velha que não contassem a ninguém a verdade sobre
sua condição — um homem apunhalado pela própria esposa
era muito humilhante.
É claro, Marina não estava presente também.
Seis meses depois do desaparecimento da irmã na noite de
seu casamento, Carlotta recebeu uma carta de Marina
dizendo que estava segura. Carlotta respondera dizendo que
o pai não morrera, que ele sobrevivera ao ferimento e que
ela nunca mais poderia voltar para casa, ele a mataria por ter
fugido com um americano. Carlotta nunca mais soube da
irmã depois disso, e quando Navarro morreu a família não
sabia para onde escrever para dizer a Marina que ela já podia
voltar para casa. Eles também não sabiam sequer se ela estava
viva.
— Viemos buscá-la para a fotografia, vovó — disseram os
netos, ficando ao seu lado, cada um segurando um braço
frágil. — Ele está quase pronto para tirar as fotografias. E a
luz, ele disse. A luz está perfeita agora.
Mas havia algo que Angela esquecera, se ao menos pudesse
lembrar o quê.

Em setembro de 1846, no princípio da Guerra do México,
havia rebeliões contra as forças americanas que ocupavam o
Pueblo de Los Angeles. Um caçador de peles americano
chamado John Brown viajou quinhentas milhas em seis dias
para informar o comodoro Stockton em Monterey sobre a
resistência. Tropas americanas tinham sido enviadas
imediatamente e, pouco tempo depois, o New York Herald
enviou um repórter novato chamado Harvey Ryder para
cobrir a história.
Isso foi há vinte anos. Ryder nunca retornou a Nova York.
— Irônico quando se pensa nisso — dizia ele ao fotógrafo que
estava montando o equipamento sob as árvores perto da
fazenda Navarro. — Os espanhóis vieram para cá há
trezentos anos à procura de ouro e quando não o
encontraram abandonaram a Califórnia. Deixaram-na para os
mexicanos e depois os mexicanos a perderam para os Estados
Unidos. E então o ouro foi encontrado. — Ele riu. — Aposto
que o rei deles não desejaria nunca ter abandonado essa mina
de ouro! Essas pessoas deviam ser gratas aos americanos. Sem
nós o ouro nunca seria encontrado. Ainda estaria no chão e
Los Angeles ainda seria uma cidade estábulo com quinhentos
habitantes — disse ele, empurrando o chapéu-coco mais para
trás na cabeça. — Bem, ela ainda é uma cidade estábulo, só
que agora é uma cidade estábulo com cinco mil habitantes.
O repórter fixou os olhos numa índia que estava passando
com um cesto de frutas na cabeça, suas longas tranças
balançando.
— O New York Herald me enviou para cobrir a guerra com o
México — disse ele para o fotógrafo que poderia estar
ouvindo ou não. — Eu devia escrever sobre a guerra, mas ela
tinha acabado quando cheguei lá. Mas nunca voltei para
Nova York. O ouro foi descoberto logo depois que o tratado
foi assinado e, como todo mundo, fui para o norte fazer
minha fortuna. Encontrei um pouquinho de ouro. Não
muito. Perambulei pelo Oregon por algum tempo depois
disso, me casei e me divorciei. Até tive alguns filhos em
algum lugar. Depois encontrei um velho amigo em San
Francisco, que me disse que o Los Angeles Clarion estava
procurando um repórter.
Os empregados estavam aprontando o jardim para a festa.
Fruteiras estavam sendo dispostas, de onde Ryder serviu-se.
— Este lugar está crescendo — disse ele, enquanto
descascava uma laranja. — Sem dúvida nenhuma. Todos
estão comprando os ranchos e nomeando cidades com seus
nomes. Conheci um dentista chamado Burbank outro dia,
comprou uma concessão de terra espanhola na parte leste de
San Fernando Valley. E Downey, alguém que foi governador
há alguns anos, subdividindo seu rancho e vendendo lotes.
Algumas pessoas estão até mantendo os nomes indígenas,
acham que é romântico.
Ele balançou a cabeça.
— Como... Pacoima e Azusa pode parecer romântico?
Ele separou um gomo da laranja e jogou dentro da boca, o
suco descendo pelo queixo.
— Os angelenos são uma raça imprevisível. Pensa-se que
tudo o que eles fazem é jogar e fazer siestas. Mas deviam vê-
los quando a guerra entre os estados começou. Essa cidade
ficou instantaneamen- te dividida sobre as questões de
escravidão e secessão. Estou falando de lutas e tiroteios
entusiasticamente divididos. A metade dos homens saiu para
lutar pela Confederação ou pela União, a outra metade ficou
em casa e destruiu a cidade com brigas de socos e tiroteios.
Mas a questão da guerra foi rapidamente obscurecida pela
seca de 62, que devastou a indústria do gado por aqui. Logo
após veio a epidemia de varíola que levou a metade dos
índios. Me parece irônico, já que eram os índios quem
trabalhavam com os rebanhos. Quando o gado morreu,
pareceu não haver mais necessidade de índios.
Ele sorriu e olhou para o fotógrafo por aprovação. O homem
continuou trabalhando.
— Mas há um problema sério de bandoleiros por aqui. A
maioria, de inúteis, se quer saber. Eles reclamam que estão se
vingando dos ianques por roubarem suas terras. Ora, isso não
é roubo! Muitas dessas velhas concessões de terras
espanholas não eram válidas. Nenhum juiz dos Estados
Unidos vai permitir que um mapa grosseiro com o nome de
alguém vigore como título legal. Os mexicanos sequer
fizeram levantamentos apropriados. Apenas foram até
algumas árvores e as desenharam no mapa, depois foram para
uma pedra ao sul, desenharam a pedra, atravessaram um rio,
desenharam o rio, e eles chamam isso de legal. Foi assim que
eles tomaram as terras dos índios. Agora, os americanos
fizeram corretamente, vieram com agrimensores e
advogados e obtiveram a terra direto e sem rodeios. Mas não
se pode fazer os bandoleiros entenderem isso.
Ele comeu um pouco mais de laranja e inspecionou o
elegante colete de cetim manchado por gotas de suco.
— Muitos linchamentos por aqui também. Um grupo de
texanos exaltados vivendo em El Monte chamam a si
mesmos de El Monte Rangers, quase começaram uma guerra
civil na cidade quando um camarada chamado Bean, irmão
do juiz Roy, foi encontrado morto num campo perto da
Missão. Os caras saíram atirando em tudo o que viam e
enforcaram quase tudo que não se afastou. Mas não se pode
culpar o povo por ficar vigilante. Só há um xerife e dois
delegados cobrindo todo o país, e um oficial de justiça como
o único homem da lei para a cidade.
O povo é forçado a fazer justiça com as próprias mãos. Claro,
Los Angeles não é mais um povoado. Foi promovido. Cinco
mil pessoas vivendo em vinte e oito milhas quadradas são
agora oficialmente uma cidade — pelo menos de acordo com
a legislação da Califórnia. Mas, meu amigo, eu já vi Paris e já
vi Londres. E Los Angeles não é uma cidade.
Ele tirou o chapéu e abanou-se com ele.
— Mas posso ver que um dia será. As estradas de ferro estão
chegando e, com elas, levas de novos imigrantes do leste
famintos por terra. Não se vêem mais muitos índios. Havia
milhares deles, mas durante o quarto de século passado,
apesar de algumas revoltas, eles morreram, as Missões foram
secularizadas, os índios largados, e eles simplesmente
desapareceram, a maioria para morrer.
Enquanto lambia os dedos e os limpava no lenço, olhou em
volta procurando a família. Ele enviara alguns homens para
reuni-los para o retrato. Devia entrevistar a matriarca, Senora
Angela, e perguntar a ela como era estar com noventa anos.
— Algo misterioso aconteceu nesta família em 1830 — disse
ele enquanto o fotógrafo continuava a montar seus
dispositivos e chapas e olhava freqüentemente para o sol. —
A filha mais nova desapareceu no dia do casamento, e
Navarro, que era dono do rancho, foipara cama com uma
doença inexplicável. Acamado por semanas, ouvi dizer, e
quando se recuperou era um homem diferente. Perdeu o
interesse pela administração do rancho, assim sua esposa foi
forçada a assumir o controle. Dizem que a princípio poucas
pessoas a levaram a sério, já que ela era apenas uma mulher e
Navarro ainda estava em cena. Mas num ano as chuvas de
inverno estavam chegando e a senhora avisou a todos que
haveria uma enchente terrível. Ela até mandou seus tra-
balhadores cavarem valas de drenagem nos declives de sua
propriedade. Outros rancheiros não lhe deram ouvidos,
então, quando a planície alagou e a colheita foi destruída, o
Rancho Paloma foi poupado por causa dos canais de
escoamento. Depois disso, eles começaram a prestar atenção
nela. Quando ela diminuiu a produção de gado e introduziu
pomares de frutas cítricas e vinhedos na propriedade, os
outros rancheiros disseram que estava louca. Mas veja o que
está acontecendo aos outros ranchos. O gado está morrendo
e os donos estão sendo forçados a vender suas terras. Mas
não Angela Navarro. Alguns dizem que ela é a mulher mais
rica da Califórnia. Eu me lembro de quando a vi pela
primeira vez, quando estive aqui em quarenta e seis. Eu
estava vindo pela Estrada Velha quando a vi. Magnífica!. Ah,
eu já vi mulheres andarem a cavalo em Nova York, mas
Angela Navarro andava como um homem. Sem silhão para
ela. E usando um chapéu preto de abas largas, como os
caubóis mexicanos usavam. Dizem que ela percorria a
propriedade todos os dias inspecionando os pomares de
laranja e limão, fileiras de parreiras, pomares de abacate, até
se tornar parte da paisagem. Foi forçada a mudar para
carruagem quando a idade finalmente a alcançou.
Ele tirou o relógio de bolso e o abriu. Supostamente todas as
velhas famílias califomio estavam vindo para a festa, além
dos abastados anglo-saxões. Tratando-a como se fosse da
realeza. Como se ela fosse uma rainha. Ele riu da própria
piada. Angela Navarro, Rainha dos Anjos!
— Mas não se limitava a administrar o Rancho — continuou
ele em voz alta, embora o fotógrafo estivesse claramente
mais interessado em suas substâncias químicas, o que não
incomodava Ryder, já que o seu solilóquio era o modo de
preparar o artigo que ia escrever. — Ela também canalizava
suas energias para obras de caridade e demonstrações de
orgulho cívico. Sim, senhor, a viúva de Navarro tem sido
uma verdadeira força nesta cidade. Foi por causa dela que se
fizeram as calçadas de madeira para que as senhoras
pudessem andar nas ruas sem arrastar seus vestidos na lama e
na poeira. Ela ajudou a fundar a entidade das Irmãs de
Caridade Católicas em 1856, que estabeleceu um orfanato
para crianças de todas as denominações. Ela também ajudou
a fundar o primeiro hospital e duas vezes por ano, no Natal e
na Páscoa, manda distribuir comida e roupa para as viúvas e
os órfãos. Quando o primeiro conselho educativo foi
estabelecido em 1853 pela Câmara de Vereadores da cidade,
Angela Navarro foi um dos seus primeiros membros, e,
quando a Escola Pública Número Um foi construída na
esquina da Spring Street, foi Angela quem insistiu para que a
escola fosse aberta para meninas assim como para meninos.
Lembre-se, portanto, meu caro, que você não vai tirar
fotografias de uma pessoa qualquer.
— Estou pronto — disse o fotógrafo, finalmente.
Os nove filhos de Angela geraram mais de trinta netos, dos
quais brotaram bisnetos numerosos demais para contar. Nem
todos sobreviveram, assim como nem todos os seus filhos
estavam vivos. Carlotta morrera há muito tempo no México,
mas Angélique e seu marido americano, Seth Hopkins, que
descobriu ouro no norte e desceu para iniciar uma plantação
de cítricos, estavam presentes, junto com seus filhos.
Contudo, apesar desta grande família que Angela
particularmente considerava como sua "pequena tribo", ela
ainda sentia uma falta imensa de Marina.
Talvez fosse essa a parte que faltava em sua mente. Marina.
O fotógrafo acomodou Angela numa cadeira grande,
entalhada e adornada que mais parecia um trono, e a rodeou
dos filhos, netos e bisnetos. Ela usou um vestido preto
sombrio com gola e punhos de renda branca, e um pequeno
véu de renda branca preso nos cabelos brancos. Houve
muitos arranjos e rearranjos dos participantes, enquanto o
fotógrafo tentava enquadrar toda a família numa foto. Mas
crianças se deslocavam, bebês choravam e homens
maldiziam o calor. Assim a pose para a fotografia
rapidamente se tornou uma experiência penosa. Apenas
Harvey Ryder parecia estar gostando, enquanto comia uma
laranja sentado à sombra e de olho nos traseiros roliços das
índias.
No meio de toda a agitação e reclamação, mudança de lugar,
tira e põe chapéu e perguntas ao fotógrafo sobre o que ficaria
melhor, Angela de repente ficou tensa, Ryder, instintos
aguçados pelos anos de experiência, percebeu imediatamente
e ficou de pé. Os olhos da velha senhora adquiriram uma
expressão das mais estranhas.
Ninguém notou a princípio que Angela se levantara. Mas
quando ela começou a se afastar das pessoas, o fotógrafo
disse:
— Desculpe-me, senhora, precisamos de sua presença nesta
foto.
Angélique saiu atrás dela imediatamente.
— Vovó? A senhora está bem?
Angela ficou imóvel perto do jardim onde um muro baixo de
pedra separava a casa das edificações da fazenda. Seus olhos,
encaixados em dobras de pele e rodeado de rugas, mas ainda
vivos e aguçados, estavam fixos na vereda que dava para a
Estrada Velha.
Os outros vieram para se juntar a ela, enquanto todos
expressavam preocupação, insistindo em que a avó se
sentasse, pensando se deveriam chamar um médico,
gesticulando e falando enquanto Angela permanecia imóvel
e olhando para a vereda.
Logo todos ficaram em silêncio, e no vento puderam ouvir
vagamente o som de cascos de cavalos, o chiado de rodas de
carroça. Antes mesmo de poderem ver o que era, os lábios
de Angela se abriram num sorriso, e ela murmurou uma
palavra:
— Marina.
E no momento seguinte, enquanto o grupo permaneceu
boquiaberto, eles viram as carroças e as pessoas nelas, e a
pilha de malas, sinal de viajantes de longa distância. No
assento da primeira carroça, um homem de um só braço com
cabelos brancos, amarelados, e barba branca, e ao lado dele
uma bela mulher de meia-idade usando um vestido fora de
moda e um toucado. Na segunda carroça um homem mais
jovem com uma mulher a seu lado, duas crianças entre eles.
E na terceira carroça, um rapaz segurando as rédeas.
— Dios mio! — exclamou um dos filhos de Angela, um
homem na casa dos sessenta que lembrava Navarro só na
aparência, não no temperamento. — Mamá! — gritou ele.—
E Marina! Ela voltou para casa!
O grupo correu para eles, cercando as carroças como um
povoado recebendo soldados de volta da guerra. Angélique
ficou para trás com Angela, no muro do jardim, observando
a cena com os olhos cheios d'água. Enganchando seu braço
no da avó, ela sentiu a mulher idosa tremer de alegria e viu
lágrimas brilharem no rosto enrugado de Angela.
— E mesmo a tia Marina — disse Angélique, admirada.
Foi uma procissão jubilosa que acompanhou as carroças para
a fazenda, com os adultos dando vivas e as crianças correndo
em volta.
Só um punhado delas se lembrava de Marina, mas todas
ouviram histórias sobre ela. Seu súbito aparecimento era
como uma aparição santa. Todos, incluindo o fotógrafo
frustrado e o repórter cínico, sentiram a magia do dia.
Finalmente, as carroças chegaram ao muro de pedra, e
Marina permaneceu no assento por um instante, olhando
para a mãe. Depois, com a ajuda dos irmãos, desceu e foi para
os braços da mãe como se tivessem se separado no dia
anterior, em vez de há trinta anos.

Os fantasmas estavam de volta. Sussurrando, provocando,
lembrando-a de coisas há muito passadas. Angela viu através
das venezianas abertas a posição da lua: era perto de meia-
noite.
Ela estava bem acordada na cama de quatro colunas onde
dera à luz seus filhos, pensando em como o dia fora cheio. A
comida, a música e a dança. Em todos os amigos que vieram,
os velhos rancheros espanhóis, os artesãos mexicanos, os
recém-chegados anglo-saxões. Até os dignitários como
Cristobal Aguilar, o prefeito de Los Angeles, e uma
mensagem de feliz aniversário via telegrama do governador
em Sacramento. E Marina voltando para casa! Um dia de
satisfação para qualquer mulher. Mesmo assim, ainda havia o
espaço em branco em sua mente, aquele que a acordara ao
amanhecer.
Nesta hora escura e silenciosa quando os pensamentos
estavam claros, ela começou a perceber que não era apenas
algo que esquecera mas algo que devia fazer. Mas o quê?
Angela saiu da cama e calçou os chinelos. Sorriu para todos
os seus presentes de aniversário. Os dois mais apreciados
eram a estatueta asteca cor-de-rosa de Angélique e as
aquarelas que Daniel pintara na China. Quando ela declarara
que tragédia para ele perder um braço para a bala de um
bandido, Daniel dissera que graças a Deus não perdera o
braço "pintor".
Jogando um xale sobre os ombros, ela guardou a estatueta no
bolso, pensando que precisaria da sorte de uma deusa antiga
esta noite, depois pegou uma vela e andou pela colunata
escura e silenciosa, passando por portas fechadas onde
pessoas dormiam, até chegar a um quarto no final.
Este era seu escritório particular, com seus grandes
candelabros de ferro, móveis pesados, estantes de livros até o
teto e uma lareira tão grande que uma pessoa podia ficar de
pé dentro dela. Sobre a mesa estavam pilhas de cartas
esperando para serem respondidas, pessoas pedindo
dinheiro, conselhos, oportunidade para fazer negócio com
ela. Como a visão de Angela não era mais o que fora e suas
mãos trêmulas não mais podiam escrever legivelmente, ela
empregara uma secretária para ajudá-la. Mas nunca passava
um dia sem se sentar nesta cadeira e verificar os livros, as
contas e os recibos em geral.
Este fora um dia o centro de poder de Navarro, onde
recebera visitas importantes e dispensara favores como um
rei, ou impusera castigos como um déspota, onde
repreendera seus filhos e censurara seus trabalhadores, e
assinara contratos e acordos envolvendo grandes somas de
dinheiro, e negociara bens legal e ilegalmente. Ele ajudara os
amigos e destruíra os inimigos nesta sala. Certa vez até
recebera o governador da Califórnia aqui e tivera a arrogância
de permanecer sentado quando o homem entrou. Navarro se
sentara nesta magnífica cadeira, semelhante a um trono, e
manejava sua balança do bem e do mal, e durante todos os
anos em que reinou aqui nunca permitiu que Angela
ultrapassasse a soleira da porta.
Lembrou-se então da noite em que visitou Navarro quando
ele estava de cama se recuperando do ferimento. Embora
tivesse vivido, ele perdera muito sangue, e uma infecção
subseqüente o deixou acamado por semanas. Naquela época,
Angela assumira a administração temporária do rancho,
como era o costume local que permitia às esposas agirem
como rancheras durante a ausência dos maridos. Ela fora até
a beira da cama e olhara para ele, deitado e indefeso, e disse:
— Esta terra é minha. Eu não me preocupo com o que você
fizer depois disso, mas você nunca mais administrará o
Rancho Paloma. E, se voltar a tocar em mim ou em qualquer
de meus filhos, eu o esfaquearei até que você morra.
Quando ele finalmente se recuperara e fora até o escritório
para retomar o trabalho, ele a encontrara atrás da mesa,
verificando o livro-caixa. Seus olhares se encontraram em
um breve e silencioso desafio. Depois, Navarro saíra
silenciosamente. E nunca mais entrou no escritório.
Ela destrancou a gaveta e tirou de lá um saco de tecido
impermeável, enfiando-o debaixo do braço. Depois saiu e
andou silenciosamente pela colunata até chegar ao quarto
onde Marina e Daniel Goodside dormiam.
Quando bateu de leve na porta, sabendo que mulheres de
meia-idade tinham o sono leve e homens de meia-idade
dormiam como os mortos, Angela maravilhou-se novamente
com a história da filha. Nos primeiros dez anos de casada,
Marina ficara em Boston para dar à luz quatro filhos. Depois
Daniel foi chamado ao Ministério e tiveram de ingressar em
um missão para a China. Eles foram, filhos e tudo, e lá
propagaram a palavra de Deus durante vinte anos. Marina
explicara que quando julgou seguro escrever para casa,
achando que Navarro estava tão velho que não era mais uma
ameaça, tentara enviar as cartas, mas era tão difícil. Muitos
chineses não confiavam em estrangeiros. Uma carta que
Marina viu pessoalmente a bordo de um navio afundou com
o navio numa tempestade.
E então, há apenas um ano, o tempo de serviço de Daniel
chegara ao fim e a missão o aposentara. Primeiro eles
navegaram até o Havaí, onde Marina começou a enviar
cartas novamente, mas decidiu depois das primeiras
tentativas que era melhor voltar para casa. Ela não tinha
muitas esperanças de que a mãe estivesse viva ou de que os
Navarro ainda estivessem por aqui. Mas... chegar no dia do
aniversário da mãe!
Angela viu isso como um sinal. Tudo isso estava
predestinado. Assim como Marina estava predestinada a
acompanhá-la na jornada final.
Quando Marina abriu a porta, Angela disse:
— Vista-se. Você deve vir comigo.
— Aonde?
— Vamos precisar de uma carruagem.
— Mas mãe, é tarde.
— A noite está quente.
— Isso não pode esperar até amanhã?
— Filha — disse ela —, o passado é uma voz muito insistente
dentro de mim esta noite.
E acrescentou:
— Devemos levar Angélique também.

Angélique, quarenta e dois anos e roliça com as sete
gestações, não teve pressa para vestir uma ampla e incômoda
anágua de crinolina que quase não deixou espaço na
carruagem para as outras duas mulheres. Mas Marina, aos
cinqüenta e quatro, era magra por causa dos anos de
sacrifício e trabalho duro, e usava um vestido simples que
estava há vinte e cinco anos fora de moda, e Angela era
pequena e frágil. O espaço era suficiente para as três.
Sua filha e neta protestaram enquanto subiam na carruagem
ajudadas pelo leal cocheiro de Angela. Ele a conduzia pelo
rancho há quinze anos e não fez perguntas agora, tirado da
cama no meio da noite, para levar sua senhora numa missão
urgente. No entanto, elas não se recusaram a ir, pois Marina
e Angélique, sabiam que, se não concordassem em ir, Angela
faria a viagem sozinha.
— Vamos ao menos levar Seth e Daniel conosco.
Mas Angela balançou a cabeça. Esta era uma expedição de
mulheres. Deixe os homens dormirem.
Quando chegaram à Estrada Velha e o cocheiro virou para o
leste, Marina disse, alarmada:
— Mas mãe, é perigoso entrar na cidade à noite!
— Não corremos nenhum perigo.
— Como pode saber?
Quando ela não respondeu, Marina trocou um olhar receoso
com a sobrinha. Depois as duas buscaram conforto na visão
do cocheiro, um homem alto e troncudo que trazia uma
longa espada embainhada, uma faca e uma pistola enfiadas no
cinto.
Elas viajaram pela zona rural em silêncio e quando passaram
por um bosque familiar de carvalhos, Angélique explicou
para a tia que o rancho dos Quinones não existia mais. Pablo,
que devia ter se casado com Marina há trinta anos,
recentemente vendera a terra para um americano chamado
Crenshaw.
Quando se aproximaram da cidade, elas podiam sentir o mau
cheiro das valas de irrigação dentro das quais despojos de
casas e lojas escoavam por meio de tubos de madeira. As ruas
eram iluminadas por lanternas penduradas do lado de fora
pelos donos das casas e das lojas, o que era exigido por lei.
Mas a novidade era que a iluminação a gás estava vindo para
Los Angeles. Os bares ainda estavam bem-iluminados com
músicas de cabaré a todo vapor. Tiroteio podia ser ouvido à
distância. Dois homens estavam brigando na calçada de
madeira.
E elas viram índios dormindo no vão das portas ou
cambaleando pelas ruas, embriagados pela bebida do homem
branco.
A carruagem passou pela Escola Pública Número Um na
esquina da Spring Street. Na rua da igreja e na rua principal,
onde a cidade costumava ter apenas construções de adobe,
elas viram como os ianques estavam dominando com novas
construções de madeira e tijolos. Pátios espanhóis e fontes
estavam sendo substituídos por estilos arquitetônicos com
nomes pomposos como Romanesque, Queen Anne, Colonial
Revival, e usando pilares, frontões e telhados de mansarda.
Os nomes das ruas foram mudados: o que um dia fora Loma
agora era Hill, Accytuna era Olive, Esperanzas, Hope, e
Flores agora era Flower. Mudados por causa dos ianques.
Enquanto davam a volta pela Plaza, que fedia a uma tourada
recente, Angélique disse a Marina que falavam de um novo
hotel que seria construído aqui e que ele teria um banheiro
em cada andar, luz a gás e um restaurante francês. Com três
andares, ele seria o edifício mais alto de Los Angeles.
Mas Marina não estava interessada.
— Mãe, por que estamos aqui?
Angela não sabia, só que ela precisava continuar.
Deixaram então o âmbito da cidade e continuaram na estrada
rumo a nordeste, três mulheres numa carruagem dirigida por
um cocheiro calado. Elas passaram por Chavez Ravine, um
cânion onde a cidade colocara a vala comum, um cemitério
para os estrangeiros e pobres desamparados, até finalmente
chegarem à Missão, suas janelas longas e estreitas entre altos
botaréus deixando-a mais parecida com uma fortaleza do que
com uma igreja. Quando o México tomou posse da Alta
Califórnia, o novo governador aboliu o sistema de Missão e
doou ou vendeu as terras para seus amigos e parentes. San
Gabriel permanecera negligenciada por anos, seus índios
vivendo em esqualidez, as paredes e teto desabando,
vinhedos dando em nada, até 1859, quando o novo governo
americano devolveu a propriedade à Igreja. Mas já não era a
mesma coisa. Choças e barracões cercavam a igreja outrora
formosa.
Enquanto se sentavam solenemente na carruagem, o
cocheiro esperando que sua senhora desse novas ordens,
Angela teve a vaga lembrança de um jardim que outrora
estivera aqui, e de uma índia que cultivava ervas,
cantarolando ao sol. Mas depois a febre e a tosse tomaram
conta dela, e ela ficou fraca e doente durante a cerimônia de
inauguração na nova Plaza. Depois disso, uma viagem de
burro até montanhas perto do mar...
Angela suspirou. E, então, soube. O conhecimento que fora
enterrado em seu coração durante oitenta e cinco anos saiu
de sua prisão e voou como um pássaro.
Eu nasci neste lugar. Não no México como minha mãe me
disse. Ou melhor, como Luisa me disse. Pois Luisa não era
minha mãe verdadeira.
E agora entendia por que seus pensamentos estiveram
repletos de lembranças de sua infância durante todo o dia.
Talvez, quando nos aproximamos do fim, nós também nos
aproximamos do começo.
Ela também viu claramente o que a perseguira o dia todo — a
sensação de que havia algo por fazer, um dever final que
devia cumprir. Agora ela sabia o que era e por que saíra
andando por Los Angeles à meia-noite.
Ela viera dizer adeus.

Quando se aproximaram do contraforte, elas sentiram o
cheiro do mar, sabiam que estavam passando pelo Rancho
San Vicente y Santa Mônica, da família Sepúlveda. Ouviram
os sinos das ovelhas pastando próximo.
Quando chegaram ao cânion, Angela viu as pedras com os
petróglifos mas esquecera o que significavam. Tinha uma
vaga lembrança de ter sido trazida para cá quando criança,
alguém lhe dizendo que aprenderia histórias. Mas essas
histórias nunca lhe foram ensinadas. Ela não entendia o
significado da caverna, ou de suas pinturas, ou por que sentia
que algum dia este fora um lugar importante. Lembrava de
ter vindo aqui na noite de seu casamento e cortado sua
trança.
Marina e Angélique a acompanharam até a caverna. Elas
desengataram a lanterna da carruagem para iluminar o
caminho e ajudaram a velha senhora, uma de cada lado.
Marina lembrava-se do lugar. Foi onde Daniel a encontrara
na noite em que começaram suas vidas juntos.
Elas ajudaram Angela a entrar. A caverna estava fria e úmida,
e cheirava a séculos. A lanterna da carruagem lançou uma
luz dourada nas paredes cobertas com estranhos desenhos e
palavras entalhadas: La Primera Madre. Quando viram a
pintura dos dois sóis, elas suspiraram, era linda.
Ordenando à filha e à neta que se sentassem, pedindo que
ficassem em silêncio, Angela acomodou-se no chão frio. A
lanterna no centro do pequeno e estranho círculo, os rostos
das três mulheres envoltos num brilho irreal.
Angela ficou alguns minutos em silêncio até começar a sentir
nos ossos e no sangue o que era que estava faltando. Ela
fechou os olhos.
Mama, a senhora está aqui! E instantaneamente ela sentiu a
presença, quente, protetora e amorosa. Percebeu que existira
um buraco dentro dela durante toda a sua vida, um pequeno
vazio para que nunca se sentisse completa. Sempre sentira
que devia estar buscando algo. Sabia agora o que era: sua
linhagem, seus laços de sangue.
De repente entendeu por que viera até aqui, por que
trouxera o saco impermeável com ela, pois ele continha um
pergaminho dando a posse da terra ao povo que não tinha
direito à terra, cujos ancestrais moravam muito longe. Para
surpresa de suas companheiras, Angela começou a cavar o
chão da caverna, enterrando seus velhos dedos na terra dura.
Quando Marina e Angélique tentaram protestar, ela as
silenciou, e havia algo em sua voz, uma expressão em seu
rosto, que as fizera obedecer.
Elas olharam enquanto o buraco cresceu até ela parecer
satisfeita. Não sabiam o que havia no saco impermeável nem
por que Angela o colocara no buraco. Observaram fascinadas
enquanto ela lentamente depositava a terra sobre ele,
cobrindo também a estatueta asteca que caíra de seu bolso.
Angélique abriu a boca, mas algo a fez calar. A deusa asteca,
que a vira passar por tempos estranhos e maravilhosos, estava
sendo enterrada no chão desta caverna estranha.
Depois de enterrar a escritura do Rancho Paloma, Angela
sentiu uma sensação de paz cair sobre ela. A terra pertencia à
Primeira Mãe e a seus descendentes, não aos intrusos, aos
invasores, mas ao povo de origem de quem foi roubada.
Enquanto dava palmadinhas na terra, pensou: Eu preciso
dizer aos outros. Marina, Angélique. Elas têm sangue
indígena. Daniel, Seth... seus filhos descendem da Primeira
Mãe.
Ela começou a falar, apressadamente agora porque sabia que
o seu tempo era curto:
— Nós somos indígenas, nós somos topaas, nós descendemos
da Primeira Mãe que está enterrada aqui. Nós somos as
guardiãs desta caverna. Cabe a nós continuar a passar a
tradição, as histórias e a religião de nosso povo. Precisamos
manter as memórias vivas.
Elas ficaram olhando para Angela.
— O que vovó está dizendo, tia Marina?
— Não tenho a mínima idéia. Ela está falando numa língua
estranha.
— É uma língua que ela está falando? E não é espanhol
mesmo.
— Vocês devem se lembrar deste lugar — disse Angela, sem
perceber que estava falando topaa, a língua que falava
quando era criança e sua mãe a chamava de Marimi e lhe
disse que um dia ela deveria ser a curandeiras do clã. —
Vocês devem contar aos outros sobre esta caverna.
Angela pegou a mão de Marina e disse:
— Eu lhe dei o nome de Marina. Entendi errado a mensagem
do meu sonho. Seu nome era para ser Marimi.
— Mãe, nós não entendemos o que a senhora está dizendo.
Deixe-nos tirá-la deste lugar. Deixe-nos levá-la para casa.
Mas Angela pensou: EU ESTOU EM CASA.
— Mãe, por favor, a senhora está nos assustando.
Angélique e Marina tentaram segurá-la.
Mas agora os pensamentos de Angela estavam na Primeira
Mãe, que atravessara o deserto sozinha, expulsa da tribo, e
grávida. Apesar disso ela suportara. Angela olhou para
Marina, que passara por rigores na China e suportava muita
adversidade e mesmo assim encontrara forças para trabalhar
ao lado do marido, e para Angélique, que sofrera grandes
privações no campo de mineração no norte. E a própria
Angela, não obstante o que Navarro lhe fizera, manteve o
seu orgulho, o amor-próprio e a dignidade. Nós somos as
filhas da Primeira Mãe. Esta é a sua herança para nós.
Angela sabia agora por que trouxera Marina e Angélique com
ela. Ambas teriam sido, em outro tempo e lugar, curandeira
de suas tribos. Mas agora estavam casadas com americanos e
tinham filhos chamados Charles, Lucy e Winifred. Ela
fechou os olhos e via a silhueta de um corvo contra um pôr-
do-sol vermelho como sangue. Ele estava voando para a terra
dos mortos, para onde os ancestrais tinham ido, e onde
estavam esperando por ela, Marimi, para unir-se a eles.


Capítulo Dezessete

Ela nunca usava truques. Os espíritos que apareciam não
eram ilusões ou produtos de chicana e embromação — ou
assim dizia irmã Sarah. Ela sempre aceitou que
desmascaradores de médiuns visitassem sua Igreja dos
Espíritos em Topanga e fizessem qualquer análise que
quisessem em suas sessões espíritas. Eles chegavam com suas
câmeras e gravadores, sensores de calor e detectores de
movimentos, os aparelhos científicos mais sofisticados da
época, esperando pegá-la em flagrante. Mas nunca pegaram.
Psiquiatras e homens da Igreja diziam que as aparições eram
resultado de histeria em massa — pessoas vendo o que
queriam ver. Mas irmã Sarah sustentava que os espíritos
eram reais e que ela era o instrumento humano por onde eles
passavam do reino do além para o reino dos vivos.
Érica estava grudada na televisão no trailer de Jared. Quando
encontrara o documentário espírita de 1920, não imaginara a
riqueza da mina que descobrira: uma montagem de arquivos
raros com os sermões de irmã Sarah onde audiências de seis
mil entravam em êxtase quando viam pessoas queridas se
materializarem, com a carismática irmã Sarah no palco com
suas túnicas flutuantes, braços abertos, cabeça para trás, olhos
fechados, tremelicando com energia espiritual.
Ela fora uma beldade estonteante. Clipes de alguns filmes que
fizera antes de ser descoberta mostravam uma sereia de olhos
ardentes que recebera vários títulos de mulher fatal, deusa e
sedutora. O público a amava. A montagem também incluía
filmes caseiros feitos por Edgar Rice Burroughs em seu
Tarzana Rancho, onde Sarah era uma visitante assídua, junto
com Rodolfo Valentino, Douglas Fairbanks, Mary Pickford.
Foi nessa época que seu talento foi descoberto, quando ela lia
a sorte dos amigos, aconselhava-os em decisões importantes
e até ajudava a polícia a localizar crianças desaparecidas em
Baldwin Hills. A notícia se espalhou e a demanda por sessões
particulares aumentou. Sarah mudou para jurisdições
maiores, descobrindo que podia chamar vários espíritos tão
facilmente como podia chamar apenas um. As pessoas a
veneravam. Ela as reunia com seus entes queridos que
partiram. Ela também era a promessa viva de vida depois da
morte.
Enquanto Sarah levantava os braços e os olhos para o céu no
vídeo, sua audiência paralisada pela antecipação espiritual,
Érica consultou o relógio. O que estava retendo Jared?
Ele saíra horas antes para uma reunião urgente com as Tribos
Confederadas do Sul da Califórnia, esperando dissuadi-las de
impedir o teste de DNA no esqueleto de Emerald Hills. O ato
surpreendente delas, resultando na ordem judicial
suspendendo todo o trabalho arqueológico e forense na
caverna, poderia arruinar qualquer possibilidade de
identificar o esqueleto de uma vez por todas. Impedida
temporariamente de trabalhar na caverna, Érica decidira
aproveitar o tempo para continuar sua busca pela fonte da
pintura em seus sonhos.
Se a Sra. Dockstader não fosse sua avó, e se Érica nunca vira
antes a pintura sobre a lareira da Sra. Dockstader, então seus
sonhos de infância devem ter vindo de outra fonte. Parecia
lógico que, tendo irmã Sarah comprado esta propriedade e
aterrado o cânion, alguém tivesse tirado uma fotografia de
dentro da caverna e até publicado em algum lugar.
Mas Érica não estava conseguindo se concentrar.
Só conseguia pensar nela e Jared fazendo amor sob as
estrelas. Era assim que era estar apaixonado? Não admira que
as pessoas escrevam músicas sobre isso! Ela se sentia frívola e
boba, feliz e delirante. Mas com medo também de que tudo
fosse um sonho ou de que ela o perdesse antes mesmo de tê-
lo. Talvez tudo fizesse parte de...
De repente ela olhou para a tela. Uma montagem de filme
restaurado, filmado em 1922, estava mostrando irmã Sarah
entrando na caverna. Érica ficou dura na ponta da cadeira.
A câmera estava na crista sul e focalizava a entrada da
caverna abaixo. Sarah, com sua túnica branca tradicional,
desapareceu na escuridão enquanto o grupo de repórteres
esperou dramaticamente do lado de fora. Quando ela saiu
minutos depois, sua expressão estava transfigurada. O
narrador dissera: "Irmã Sarah realmente teve uma revelação
espiritual como disse mais tarde ou estava apenas repre-
sentando? Logo depois que comprou a propriedade, ela
mandou aterrar o cânion, enterrando a caverna de modo que
nunca saberemos o que ela viu lá."
O clipe do filme do desfecho do documentário, filmado em
1928, mostrava uma irmã Sarah perturbada na frente dos
microfones e dos jornalistas, dizendo adeus a seus
seguidores. A notícia surgiu abrupta e inesperadamente,
quando a Igreja dos Espíritos estava no auge da popularidade.
Sarah não explicou por que estava deixando o trabalho com o
público, só que era "a vontade de Deus". Ela então desapa-
receu de vista e, embora esforços tivessem sido feitos para
encontrá-la — jornais fizeram concursos, repórteres
competiram pela grande reportagem —, nunca mais se soube
de irmã Sarah.
O documentário terminou e, enquanto desligava a TV, Érica
pensou: Tudo se resume à caverna. Foi a pintura que me
trouxe aqui em primeiro lugar, e outros durante séculos
foram atraídos para a caverna — o povo que deixou os
óculos, o relicário, o crucifixo, a trança, a pedra mística, a
estatueta asteca, a escritura do rancho. Irmã Sarah. De que
modo estão todos relacionados? De que modo estão relacio-
nados com a pintura na casa de Kathleen Dockstader? De
que modo tudo isso se relaciona comigo!
O que ela e Jared descobriram dos donos originais do Rancho
Paloma foi que os Navarro foram uma família proeminente e
fundadora em Los Angeles. Aparentemente a matriarca, uma
mulher chamada Angela, fora de importância vital na
formação da cidade. Uma de suas realizações foi a militância
para a construção de um parque na cidade onde as pessoas
pudessem se sentar e caminhar, e onde não houvesse
touradas, já que estavam na Plaza. O parque foi criado em
1866 e originalmente chamado de Central Park -—seu nome
contemporâneo foi Pershing Square. Hoje, em San Fernando
Valley há uma escola com o nome de Angela Navarro
Elementary, em sua homenagem. Érica e Jared também
descobriram que Angela Navarro vivera no Rancho Paloma e
morrera lá em 1866, e que a família teve problemas legais
quando não puderam apresentar a escritura da propriedade.
Porque ela foi enterrada em nossa caverna. Quem quer que a
tenha escondido na caverna sabia do esqueleto enterrado lá,
e quem ela era. E as pessoas que visitaram a caverna através
dos séculos sabiam quem era a mulher. Os testes de DNA
pelo menos nos apontaria uma direção.
— Oi.
Ela levantou os olhos para o sorriso de Jared. Seu coração
executou um salto mortal.
— Oi.
As sessões espíritas de irmã Sarah não foram os únicos
milagres por aqui. Jared finalmente ligara para o pai. Eles
falaram por uma hora. Não era perfeito, mas era um começo.
E Jared ia desenhar uma casa só para Érica. Ela disse que
gostava da maquete onde moravam os Arbogast.
— Acho que tenho más notícias. Não consigo fazê-los mudar
de idéia sobre impedirem o teste de DNA.
— Vamos ter de continuar tentando.
Ele parou, enchendo os olhos com a presença dela. Érica
imaginou se ela e Jared algum dia se cansariam da emoção
deliciosa de ficar de repente na presença um do outro.
— Tenho notícias ainda piores — disse ele. — Os ossos serão
removidos e enterrados em um cemitério nativo local.
— Não! Quando?
— O mais rápido possível. Sinto muito, Érica. Você sabe, eu
nunca pensei que pudesse pensar como você, mas agora
acredito que é errado remover os ossos até que uma filiação
cultural possa ser identificada. Nunca fui um homem de
religião ou espiritualizado, mas nós sabemos quem a mulher
enterrada na caverna era, e quem as pessoas que prestaram
homenagem a ela também eram. Temos de respeitar isso e
também temos o dever de encontrar quem são os legítimos
guardiões de sua última morada.
Ele curvou-se para beijá-la.
Luke apontou a cabeça na porta.
— O, Érica? Você tem visita. Dizem que é importante.
Ela saiu e cobriu os olhos contra o sol.
— Sra. Dockstader!
A velha senhora usava uma calça branca e blusa rosa-clara,
sandálias e uma pequena bolsa pendurada nos ombros por
uma longa corrente dourada. Os olhos estavam escondidos
atrás de enormes óculos escuros.
— Conte-me sobre as dores de cabeça — disse ela.

Jared convidou Kathleen Dockstader e seu advogado para
conversarem com Érica em seu trailer, que era mais
confortável e oferecia mais privacidade do que a tenda de
Érica ou o trailer do laboratório.
— Dra. Tyler — disse a mulher. — Depois que você saiu,
pedi ao meu advogado que investigasse o seu passado. Como
você pareceu lícita, uma antropóloga trabalhando para o
Estado com credenciais impressionantes, decidi investigar
sua história. Contratei um detetive particular para fazer uma
busca nas comunidades hippies, qualquer pessoa que tivesse
vivido em uma e pudesse se lembrar da época. Ele descobriu
alguém que dirigia uma taberna em Seatle, que vivera numa
comunidade durante os anos que minha filha teria vivido.
Disse que se lembrava de uma moça Dockstader, uma
herdeira que fugira e não queria saber dos milhões da mãe.
Todos a admiravam por isso na época. Em retrospecto, ele
acha que ela estava louca. O detetive perguntou se ele sabia o
que acontecera com ela. Ele respondeu que deixara a
comunidade com um músico numa motocicleta Harley.
Kathleen fez uma pausa, cruzando e descruzando as mãos.
Aconteceu exatamente como Jared previra: depois que ele e
Érica deixaram a casa dela há uma semana, a Sra. Dockstader
não conseguira parar de pensar em Érica. Chegara cancelar
sua turnê de golfe.
-— E depois veio isso — disse ela, enquanto fazia sinal para o
advogado, que tirou um livro da pasta, entregando a ela.
Érica ficou surpresa ao ver que era o seu livro da turma de
1982, o ano em que se formou. Kathleen abriu o livro na
página marcada com uma pequena fotografia em preto e
branco que parecia ter sido recortada de um livro antigo. A
moça na foto tinha um penteado armado com as pontas
viradas para cima. — Esta foto foi tirada em 1965 — disse
Kathleen. — Quando Mónica tinha dezessete anos. — Ela
colocou a foto perto da de Érica. — Vocês duas tinham a
mesma idade nestas fotos. A semelhança é impressionante,
não é?
— Parecemos gêmeas — murmurou Érica.
Kathleen fechou o livro e o devolveu ao advogado.
— Mas o que finalmente me convenceu de que você era
minha neta foi quando você perguntou sobre as dores de
cabeça. Minha mãe tinha dores de cabeça terríveis. Não
apenas enxaquecas, mas estranhas crises de desmaios em que
ouvia e via coisas. Visões. Aparentemente isso é um traço
herdado. Ela me disse que uma tia-avó sofria da mesma coisa.
Ninguém sabia disso. Era um tipo de segredo familiar. Outras
fingiram ser você, vinham na esperança de reivindicar re-
compensa ou herança, mas nada sabiam sobre as dores de
cabeça.
— Sra. Dockstader...
— Por favor, me chame de Kathleen.
— Por que minha mãe fugiu?
— Porque nós queríamos que ela ficasse em uma casa para
mães solteiras e mantivesse a gravidez secreta. Depois
deixaríamos a criança com uma das irmãs de Herman —
Herman era meu marido, pai de Mónica. A criança seria
criada como prima dela. Nós achávamos que um filho
arruinaria a vida de Mônica. Depois que ela fugiu, ficamos
desolados. Ela era uma princesa para Herman, a luz da vida
dele. Quando partiu, alguma coisa morreu dentro dele.
Colocou anúncios em todas as seções de classificados
pessoais dos principais jornais do país dizendo a ela que nós
queríamos que ela e o bebê voltassem para casa. Mas... nunca
tivemos resposta.
-— A senhora sabe quem é o meu pai? — perguntou Érica
num murmúrio.
— Mônica nunca nos disse — respondeu Kathleen, tirando
um lenço com monograma da bolsa. — Eu não sei quem ele
é. Ela não era uma menina má. Era apenas muito espirituosa.
Você não imagina quantas vezes desde que ela partiu desejei
que o pai tivesse usado palavras diferentes. Ela queria ter o
bebê em casa. Ela teria ficado conosco. — Kathleen virou-se
para Érica com olhos trêmulos e vulneráveis. — Você teria
sido criada em nossa casa.
— Eu não sei o que dizer.
Kathleen secou os olhos com o lenço.
— Eu também não. Vamos ter de dar tempo ao tempo para
nos acostumar.
Elas olharam uma para a outra, a jovem escrutinando o rosto
da mulher mais velha em busca de sinais familiares — elas
tinham o mesmo bico-de-viúva — a mulher mais velha
olhando para o rosto que teria sido o de sua filha um dia.
— Será que eu poderia ver a caverna? — perguntou Kathleen.
— A caverna?
— Se for possível.
Jared acompanhou as duas mulheres até o andaime, ajudando
a mais velha a descer os degraus, enquanto Érica pegava a
chave do cadeado do portão de ferro. Lá dentro, ela ligou as
luzes fluorescentes que banharam a caverna em um clarão
irreal, iluminando vigas de madeira e escoras, trincheiras
abertas no chão, a parede coberta com sóis escarlate e
dourados e símbolos misteriosos, e finalmente a Senhora,
deitada pacificamente de lado sob uma cobertura transpa-
rente que parecia um sarcófago de vidro.
O suspiro de Kathleen sussurrou como uma brisa, seus olhos
estavam maravilhados.
— Eu sei tudo sobre esta caverna — disse ela suavemente,
como se não quisesse perturbar o sono da Senhora. — As
pinturas na parede, as palavras Primera Madre. E tudo como
eu imaginei.
Érica olhou surpresa para ela.
— A senhora esteve aqui?
— Não, não. Este cânion já estava aterrado quando eu era
criança. Mas alguém que esteve aqui me falou sobre ela.
— Quem?
— A mulher que pintou o quadro dos dois sóis que está
pendurado em minha sala — respondeu ela, sorrindo. — A
mulher que construiu um retiro aqui chamado Igreja dos
Espíritos. Irmã Sarah, minha mãe. Sua bisavó. Eu sou a filha
ilegítima dela. Foi por minha causa que ela desapareceu.

— Minha mãe sempre soube que havia alguém enterrado na
caverna — disse Kathleen. Ela e Érica estavam sentadas na
sala ensolarada da casa da Sra. Dockstader em Palm Spring,
vendo álbuns de fotografias, recortes de jornais e
lembranças. — Ela podia sentir, embora nunca tivesse tido
prova. Disse inclusive que o espírito que morava na caverna
a instruíra a construir a Igreja dos Espíritos naquele lugar.
— O que aconteceu com ela? Por que ela desapareceu?
— Ela estava apaixonada por um homem casado, mas a esposa
não queria dar o divórcio a ele. Quando minha mãe
descobriu que estava grávida, sabia que isso perturbaria seus
seguidores, então preferiu desaparecer. Foi para uma cidade
pequena onde não havia cinema e onde as pessoas não a
reconheceriam. Eu nasci, e ela me criou sozinha. Nunca vi
meu pai. Não sei se eles tiveram algum contato depois disso.
Tudo o que sei é que foi muito trágico. Minha mãe morreu
quando eu tinha vinte e dois anos. Ela foi enterrada no
cemitério daquela cidade pequena e até hoje ninguém sabe
que a mulher no túmulo é a famosa irmã Sarah.
— Foi por isso que a senhora quis que minha mãe
abandonasse o bebê?
Kathleen sorriu tristemente.
— Cresci vendo a tristeza de minha mãe. Ela tentou
esconder, mas uma criança percebe essas coisas. Eu sabia que
ela era uma proscrita porque não era casada e tinha uma
filha. E sabia que eu também carregava uma marca. Ela fingia
que era viúva, então nós vivemos uma mentira. Nós não
queríamos que Mônica passasse por isso.
Érica quase não conseguia absorver tanta informação. Sentia-
se como uma pessoa faminta que fora levada a um banquete.
Todas as fotos e histórias, pessoas que se pareciam com ela,
que eram parentes dela, uma vasta família de tios e tias,
primos, avós e bisavós que retrocediam.
— Este é — disse Kathleen — Daniel Goodside. Ele era
capitão de um navio de Boston. Eu encontrei esta foto num
velho baú. Era uma do par de retratos tirados em 1875. O
outro na outra moldura era de uma mulher, mas estava muito
mofado, irrecuperável. No verso pude ler o nome escrito:
Marina, mulher de Daniel. Não sei nada sobre Marina, qual
era seu nome de família. Acho que ela era bostoniana
também. Ele perdeu um braço, como pode ver, talvez na
Guerra Civil. Ele era artista também.
Na página oposta havia uma pequena aquarela feita por
Daniel Goodside em 1830 — Curandeira da tribo topaa
vivendo na Missão San Gabriel Arcangel.
— Topaa — murmurou Érica. — Nunca ouvi falar nessa tribo.
Kathleen fechou o livro e levantou-se.
— Provavelmente ele quis dizer tongva. Havia muitos nomes
trocados naquela época. Venha, deixe-me acompanhá-la
numa excursão pela propriedade. — Ela deu o braço para
Érica. — O pai de meu marido, que seria seu bisavô —
importou as primeiras palmeiras da Arábia e iniciou a fazenda
em 1890. Eu me casei com um membro da família
Dockstader em 1946, logo depois da guerra. Eu tinha dezoito
anos. Sua mãe nasceu dois anos depois, em 1948.
Uma empregada as interrompeu informando que havia uma
ligação para Érica. Era Jared.
— É melhor você vir para cá. Aconteceu algo surpreendente.

Eles ouviram fortes gargalhadas vindo do trailer de Jared. Sua
visitante era uma mulher troncuda com bochechas coradas e
um forte aperto de mão.
— Dra. Tyler, meu nome é Irene Young e acho que tenho
algo de seu interesse. Sou professora de educação física em
Bakersfield, mas o meu passatempo é genealogia. Estou
pesquisando a árvore de minha família e quando vi o
noticiário sobre a descoberta da escritura de um rancho que
pertencia a uma família chamada Navarro, soube que
precisava vê-la. — Ela enfiou a mão na bolsa de lona e tirou
um portfólio de couro. — Tracei minha família pelo lado
materno a uma família chamada Navarro que viveu no
Rancho Paloma. Aqui está uma fotografia deles — disse ela,
estendendo uma fotografia antiga protegida por um plástico.
—- Veja que há algo escrito no verso. Esta fotografia foi
tirada em 1866 por ocasião do aniversário desta mulher —
disse ela, apontando para uma senhora distinta sentada no
centro do que parecia ser um grupo de familiares.
Irene prosseguiu explicando que contatara muitos dos
descendentes das pessoas na foto, mas que não conseguira
identificar um casal. E apontou o casal.
Érica apertou os olhos para olhar o homem de um braço só.
— Meu Deus! E Daniel Goodside. Meu antepassado.
-— O quê?! — disse Jared, olhando para a fotografia.
— Goodside? — perguntou Irene. — É esse o nome dele?
Acho que ele era casado com a mulher sentada ao lado dele.
— Esta seria Marina — disse Érica, lembrando o que
Kathleen lhe dissera.
— Ela é muito parecida com a mulher no centro, que eu acho
que deve ser a matriarca da família. O nome dela era Angela
Navarro, o que faria da esposa de Goodside uma Navarro.
— Minha avó disse que nunca soube qual era o sobrenome de
Marina e que achava que ela era bostoniana. Meu Deus... Eu
sou parente dos Navarro?
Irene apontou um casal na parte de trás.
— Estes são meus trisavôs, Seth e Angélique Hopkins.
Angélique era sobrinha de Marina Goodside e neta da
matriarca, Angela.
Érica olhou novamente para a fotografia. Intrigada, pegou
uma lente de aumento e silenciosamente escrutinou a foto.
— Esta mulher é indígena.
— Infelizmente, não consegui determinar sua tribo. Estou
supondo que ela tenha sido de uma tribo missionária...
— Jared! — disse Érica de repente. — Kathleen tem uma
aquarela que Daniel Goodside pintou — de uma mulher
topaa!
— Topaa! Você acha que as pessoas nesta foto são dessa tribo?
— Tudo se encaixa, não está vendo? — Érica ficou animada
de repente. — Daniel Goodside estava interessado em pintar
membros da tribo topaa. Ele se casou com uma mulher que
era meio indígena ou talvez uma quarta parte indígena. Uma
mulher cujo sobrenome era Navarro. E então alguém
enterrou a escritura do Rancho Paloma, nas terras de
Navarro, na caverna em Topanga. Topanga! — repetiu de
repente. — Ninguém sabe o que a palavra realmente
significa. Há várias teorias. Mas algo em que todos
concordam é que "nga" significa "lugar de". Se uma tribo
chamada topaa viveu aqui, então tudo se encaixa!
— Por que nunca ouvimos falar deles? — perguntou Irene.
— Talvez os topaas estivessem entre os primeiros a serem
reunidos e levados às Missões. Eles teriam sido assimilados
rapidamente. Este seria o motivo pelo qual nós não sabemos
nada sobre a existência deles. — Ela virou-se para Jared. —
Com essa nova informação, podemos impedir as Tribos
Confederadas de levarem os ossos para serem novamente
enterrados. Nosso esqueleto pode ser a única evidência de
uma tribo perdida. Agora que temos um nome tribal, temos
mais chance de encontrar um provável descendente.
Ele sorriu enigmaticamente para ela.
— O que foi?
— Érica, até agora você é a descendente mais provável.

Sam não estava convencido, tampouco os membros das
Tribos Confederadas, que chegaram com um caixão e um
pajé. A evidência da Dra. Tyler era muito fraca, diziam eles,
se ao menos pudesse ser chamada de evidência. Estava na
hora de colocar a mulher-xamã para descansar em solo
americano nativo.
Érica recusou-se a destrancar o portão para a caverna. Para
frustração de Sam, ele não conseguiu encontrar sua chave e
Jared possuía a única restante. Eles ficaram no penhasco
acima da caverna, Érica barrando o caminho deles, Sam
ameaçando cortar o cadeado. Érica olhou para o relógio.
Onde estava Jared? Ele telefonara mais cedo e lhe dissera
para barrar os membros da Tribo dos Confederados até que
ele voltasse. Parecia excitado, embora não tivesse dito por
quê. Mas isso tinha sido horas antes.
— Mas o que é aquilo? — disse Luke de repente, apontando.
Todos se viraram para ver Jared vindo devagar com duas
pessoas
pequenas e morenas, velhas e curvadas, um casal idoso de
irmãos que viviam em East Los Angeles. Jared os encontrara
através do Departamento de Pesquisa Indígena na UCLA,
onde um enorme banco de dados sobre os índios da
Califórnia estava sendo compilado. Antropólogos de campo
estavam indo às cidades do interior, procurando por
americanos nativos "escondidos" ou "esquecidos".
Ele os apresentou como os Delgado, Maria e José.
— Nós sabemos que há grupos de índios que não foram para
as Missões, que ficaram em suas aldeias e mais tarde foram
para o povoado para serem assimilados dentro da população
mexicana, mas casando-se somente entre si. Estas duas
pessoas sustentam que cresceram sabendo que eram topaas,
mas ninguém acreditou neles porque ninguém ouviu falar
dos topaas.
— Há muitos anos — disse a mulher idosa — nós fomos ao
museu e falamos com as pessoas de lá. Eles eram instruídos e
muito educados. Eles nos disseram que estávamos
enganados, que não havia uma tribo topaa e que nós éramos
gabrielinos. Quando um escritor foi até nosso bairro para
escrever uma história sobre os índios da Califórnia, e nós
dissemos a ele que éramos topaas, ele escreveu "tongva"
porque pensou que nós estávamos enganados.
Os irmãos nasceram em 1915, ambos viúvos agora e vivendo
juntos. Eles ouviram histórias quando eram crianças e
adolescentes de um homem muito velho que viveu até os
cem anos. Ele nascera na Missão e achava que foi por volta
de 1830. Embora o velho nunca tivesse vivido numa aldeia,
ele aprendeu sobre a vida nas aldeias com outros velhos na
Missão, e histórias sobre a Primeira Mãe, e como o seu guia
espiritual, o corvo, a guiou pelo deserto até o leste. Fora o
velho quem disse a eles para lembrarem que não eram
gabrielinos, o nome que os homens brancos deram à tribo
deles. A tribo deles era topaa.
A referência à Primeira Mãe fez Érica se sobressaltar.
— Vocês ouviram isso no noticiário ou leram no jornal?
— Jornal! — exclamou a mulher idosa, rindo. —Eu não sei
ler. E meu irmão também não sabe. Nós não assistimos
noticiário na TV, sempre más notícias, sempre armas e
mortes. Meu irmão e eu, nós gostamos de shows de jogos.
O sorriso dela era sem dentes.
— Esta é uma prova de que eles são realmente topaas. —
disse Érica, virando-se para Jared. — Não existe outro meio
deles ficarem sabendo que esta era a caverna da Primeira
Mãe, se não tivessem ouvido dos mais velhos.
— Este homem nos falou da caverna — disse a mulher idosa.
— Podemos entrar nela? Podemos visitar a Primeira Mãe?
Eles estavam reunidos na caverna, despedindo-se. Sam e
Luke foram os primeiros a partir, desejando a Érica e Jared
boa sorte. Eles tinham muito trabalho pela frente. Análises
de DNA dos ossos igualaram-se aos do par idoso de índios,
identificando a senhora adormecida como membro da tribo
topaa. José e Maria Delgado queriam estabelecer um museu
para ensinar as pessoas sobre os topaas. Eles queriam que a
Primeira Mãe permanecesse enterrada na caverna, com sua
sepultura protegida para não ser pisada, mas com a caverna
aberta para visita de pessoas.
— É o que ela gostaria — disse o homem idoso. — Pessoas
vindo aqui para falar com ela e ler sobre sua jornada.
Kathleen Dockstader foi a última a sair. Ela cancelara suas
férias de seis meses para mais uma vez dedicar seu tempo na
busca de Mônica.
—- Uma coisa me intriga — disse ela para Érica. — A pintura
em minha sala, aquela com os dois sóis, pintada por minha
mãe. Você disse que sonhou com ela durante toda a sua vida.
— Desde que era muito pequena. Provavelmente alguém
tirou uma fotografia do quadro e usou como parte da
biografia de irmã Sarah e eu o vi em algum lugar, num livro
ou revista, e acabei esquecendo.
— Isso é o que me intriga, porque, veja bem, aquele quadro
foi roubado quando minha mãe desapareceu e
aparentemente foi descoberto depois e guardado num
depósito da polícia, esperando que o dono registrasse seu
roubo. Há cinco anos o quadro foi finalmente identificado
como sendo meu, eles me contataram e foi então que o
adquiri. Antes disso, o quadro ficou enterrado e esquecido
durante décadas. Então, minha querida, você não pode tê-lo
visto antes de duas semanas atrás.
— Bom — disse Jared quando todos haviam saído e Érica
estava sozinha com a Primeira Mãe dormindo em seu
sarcófago transparente —, isto é uma ironia para você. Meu
trabalho era localizar o descendente mais provável, e ela
estava aqui o tempo todo, bem debaixo do meu nariz. — Ele
olhou para os sóis flamejantes na parede. — Por que acha
que sonhou com eles quando nunca tinha visto a pintura?
Ela não tinha a resposta, embora seu palpite fosse que podia
ser uma espécie de memória racial. — Os sóis são círculos, e
círculos são sagrados para os topaas, bem como em muitas
tribos americanas nativas hoje em dia. Talvez eu estivesse
simplesmente sonhando com o sagrado. Ou talvez fosse uma
profecia.
— Uma profecia?
Ela pensou no casal de velhinhos topaa.
— De que algum dia nós completaríamos o círculo.
Jared pegou a mão dela e, olhando para o esqueleto, disse:
— Quem quer que ela tenha sido, sua jornada não está
terminada. Cabe a nós agora dar prosseguimento a ela.
E quando saíram da caverna e viraram em direção ao sol, um
corvo desceu veloz do céu e voou à frente deles, como para
indicar o caminho.


A pesquisa em museus e livros é conveniente e boa, mas
nunca tão esclarecedora ou "enriquecedora" como lidar com
seres humanos reais. Estas pessoas especiais precisam ser
agradecidas:

Agradecimentos

Élmer De La Riva do bando Agua Caliente dos índios
cahuillas pela excursão particular ao mal-assombrado Cânion
Taquiz e por compartilhar a história aterrorizante do lendário
xamã; Dra. Michelle Anderson, professora de pesquisas sobre
os americanos nativos, que generosamente compartilhou
suas experiências no trabalho de campo em reservas; Dr.
Raymond Wong, patologista forense, por explicar as
questões legais relativas ao trabalho com ossos; Mike Smith,
por me permitir acesso à sua impressionante coleção de raros
e antigos objetos de arte americana nativa do sul da
Califórnia; Richard Martinez, por caminhar comigo pelos
"atoleiros" legais de terras reivindicadas pelos índios; Shana
Dominguez, que me levou à minha primeira cerimônia
indígena e me ensinou a dança da pele de gamo; e os
membros dos povos pala, pechanga, morongo, e os bandos
(chumashes) das missões indígenas de Santa Inês, que
espontaneamente compartilharam as histórias e os
conhecimentos de suas famílias, e suas esperanças para o
futuro dos americanos nativos.
Finalmente, gratidões eternas vão para Jennifer Enderlin,
minha sábia e previdente editora, e para Harvey Klinger, o
maior agente literário do mundo.
Paz para todos vocês!


Rare Médium, Well-Done, em tradução direta, malpassado, ao ponto e bem-passado; mas como
Médium também significa médium, e Well-Done, bem-feito, pode-se traduzir o trocadilho para: "uma
atuação mediúnica para todos os gostos". (N. da T.)
squaw, mulher pele-vermelha. (N. da T.)
Squaw-weed, erva daninha. (N. da T)
4 squaw-bush, moita. (N. da T.)
Squaw-fish, peixe. Comum no oeste dos Estados Unidos. (N. da T.)



 
 
Lançamento Arcanjo Micael
Solo Sagrado - Barbara Wood
 
 
links abaixo
 
 
digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
Sinopse:
 
Há dois mil anos, no lugar hoje conhecido como Califórnia, Marimi, uma índia topaa, é expulsa de sua aldeia após salvar um garoto marcado para morrer pelo curandeiro da tribo, que joga sobre ela e seus descendentes uma terrível maldição.
Dois milênios mais tarde, Erica Tyler, uma antropóloga talentosa, descobre, durante uma escavação, vestígios do grupo em que viveu Marimi. A partir daí, revela-se uma trama cheia de reviravoltas que dura 20 séculos. Da vida dos nativos à descoberta da América pelos europeus, desde a chegada dos colonizadores até os nossos dias, Barbara Wood conta aos seus leitores a história das mulheres descendentes de Marimi. De seus amores e traições, de suas perdas, de suas famílias e de suas ambições, que acabaram por forjar um país. Um grande romance com um olhar espiritualizado sobre o passado, protagonizado por gerações de mulheres que nunca serão esquecidas.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

PASTAS LANÇAMENTOS Arcanjo Micael:
 
 
Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras
 
 
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